textos de Marcelo Costa
Título original: “Los Olvidados”, 1950
Título nacional: “Os Esquecidos”
Ainda que tenha estreado como roteirista em 1928 com “A Queda da Casa de Usher”, de Jean Epstein, e debutado como diretor com o revolucionário curta “Um Cão Andaluz” em 1929 (codirigido por Salvador Dali), a carreira de Buñuel demoraria a deslanchar: seu primeiro longa, o clássico “A Era do Ouro”, sairia em 1930, e após anos fazendo curtas e trabalhando com cinema na França, na Espanha e em Hollywood, ele só voltaria a filmar em 1947, quase que por um acaso: em uma escala no México, que vivia o auge financeiro de seu cinema, Buñuel conseguiu financiamento com Óscar Dancigers para “Gran Casino”, que seria seguido de “El Gran Calavera”, de 1949, uma comédia que fez um enorme sucesso e garantiu ao cineasta liberdade criativa para seu quarto filme – ainda assim, quem deu o tom de “Os Esquecidos” foi Dancigers, que queria uma obra mais séria. Buñuel entendeu o recado e, ao lado de Luis Alcoriza (roteirista de “El Gran Calavera”), escreveu um filme duro, crítico e sem julgamentos, como se a câmera apenas observasse fatos. A produção foi tensa, com funcionários abandonando Buñuel devido ao tom opressivo da história. A estreia na Cidade do México também foi caótica, com ameaças de agressão ao cineasta (Frida Kahlo se recusou a falar com Buñuel). O filme ficou apenas três dias em cartaz, mas bastou chegar, quatro meses depois, ao Festival de Cannes para ser celebrado e render a Buñuel o prêmio de Melhor Diretor. Passados mais de 70 anos, ainda é assombroso assistir a “Os Esquecidos” e perceber não só a sua atualidade, mas, principalmente, sua força textual e estética: centenas de filmes sobre jovens e pobreza devem ter sido feitos de lá pra cá, e “Os Esquecidos” se sobrepõe a todos de maneira exemplar. Logo nos primeiros segundos, uma voz em off conta: “As grandes cidades, Nova York, Paris, Londres, escondem sob sua grande riqueza lares miseráveis, onde crianças subnutridas, sem saúde, sem escola, estão sentenciadas ao crime”. Buñuel acompanha um grupo dessas crianças, e sem melodramas nem romantismos, constrói uma obra prima de realismo social. Hoje, “Os Esquecidos” é considerado o segundo melhor filme mexicano de todos os tempos (o primeiro é “Vámonos con Pancho Villa”, de Fernando de Fuentes). Obrigatório!
Cotação: *****
Título original: “The Young One”, 1960
Título nacional: “A Adolescente”
Uma década se passou entre “Os Esquecidos” e “A Adolescente”, e mesmo tendo produzido 17 filmes em 10 anos (quatro deles filmados em 1954!), Buñuel não conseguiu criar nada que alcançasse o status da obra prima de 1950 – dos filmes deste período, apenas “Nazarin”, de 1959, conseguiu um prêmio em um festival importante, no caso, Cannes. Há consenso de que o cineasta criou uma linha de montagem e fez diversos filmes – ainda que interessantes – no piloto automático. Em 1960 (um ano antes de mais uma grande reviravolta em sua vida, com a obra prima “Viridiana”, que irá dar um novo gás em sua carreira), ele decide filmar (no México) seu segundo longa em língua inglesa. Os temas, porém, não poderiam ser mais provocativos, já que “A Adolescente” versa sobre racismo, estupro de menor de idade e… a humanidade tal qual ela é. São cinco personagens (quatro homens e uma adolescente) e nenhum deles é totalmente bom ou mau, mas sim… humanos demasiadamente humanos. “Essa recusa do maniqueísmo foi provavelmente a principal razão para o fracasso comercial do filme”, diria Buñuel depois, completando: “Um jornal do Harlem até escreveu que eu deveria ser enforcado de cabeça para baixo em um poste de luz na 5ª Avenida… Fiz este filme com amor, mas ele nunca teve uma chance. A moralidade americana não conseguiu aceitar isso.” Praticamente apagado de sua filmografia, este excelente “A Adolescente” conta a história de um músico negro de uma banda de jazz, Traver, que durante a fuga de um linchamento, após ser acusado de estuprar uma mulher branca, vai parar em uma ilha onde vivem os zeladores Miller e Pee-Wee mais Evalyn, neta do segundo. Pee-Wee morre, e Miller percebe que a adolescente está “crescida”, e decide seduzi-la. Enquanto isso, Traver, que está faminto, se aproxima de Evalyn e compra comida dela. Ela, então, conta para Miller sobre Traver, e iniciam confrontos e trocas de poder entre os dois, culminando no estupro da adolescente e na chegada de um padre e um homem que quer caçar Traver. Repleto de “ironias sombrias e ambiguidades sutis” (como descreve Jonathan Rosenbaum neste texto primoroso), “A Adolescente” é um autêntico e poderoso Buñuel.
Cotação: ***1/2
Título original: “Tristana”, 1970
Título nacional: “Tristana, Uma Paixão Mórbida”
Diferente da década de 1950 para 1960, quando dirigiu 17 filmes, de 1961 para 1970, Buñuel fez apenas 6 longas-metragens, metade deles clássicos absolutos (“Viridiana”, de 1961, “O Anjo Exterminador”, de 1962, e “A Bela da Tarde”, de 1967). Em 1961, ele havia filmado pela primeira vez em seu próprio país, a Espanha, mas o resultado blasfemo do antológico “Viridiana”, que ganhou a Palma de Ouro em Cannes, lhe rendeu uma denúncia do Vaticano, que acusou o filme de ser um insulto ao catolicismo e ao cristianismo, e o banimento pelo órgão censor do ditador Francisco Franco, que destruiu todos os papéis que identificavam o filme como sendo espanhol (Cannes o reconheceu como uma produção mexicana), e o proibiu não apenas de ser exibido no país nos 17 anos seguintes, mas também de ser citado na imprensa. Sendo assim, o roteiro em que ele estava trabalhando em 1962, “Tristana”, também foi censurado, e Buñuel só voltaria a ele em dezembro 1968, quando seria autorizado a voltar a trabalhar na Espanha, sem sossego do órgão censor. Ainda assim, o cineasta não só conseguiu finalizar “Tristana” como imprimiu sua marca clássica. Na trama, Tristana (Catherine Deneuve em sua segunda colaboração com o cineasta, logo após “A Bela da Tarde”) é uma jovem órfã que é acolhida pelo nobre Don Lope (Fernando Rey), um playboy galante comunista que vive do dinheiro da família e que prometeu à mãe da garota que iria cuidar dela como se fosse sua filha. Ele alega defender os fracos de instituições corruptas, mas não tardará a seduzir Tristana, fazendo dela sua filha fora de casa perante a sociedade, e sua esposa entre quatro paredes. No primeiro ato, Tristana é a vítima, e Don Lope, o demônio. Já no segundo ato ela irá fugir de casa com um amante, mas retornará depois, doente, e perderá uma perna (Hitchcock amava essa parte). Daí em diante, posando de demônia com roupas escuras e maquiagem pesada no terceiro ato, Tristana transformará em um inferno a vida de Don Lope, que cederá aos seus caprichos da mesma forma que ela cedeu aos dele. Rendeu a Buñuel uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro (que ele perdeu para Elio Petri, mas iria vencer em 1972 com “O Discreto Charme da Burguesia”, outro clássico). Mais um filmaço do cineasta.
Cotação: ***1/2
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.