Cinema: “A Substância”, de Coralie Fargeat, coloca Demi Moore em uma jornada de terror em busca da juventude

texto de Renan Guerra

Em uma sociedade em que o novo e o jovem estão em constante celebração, envelhecer se transformou praticamente em um crime – e isso ganha camadas ainda mais complexas quando falamos do envelhecimento feminino. Vivemos em uma distopia em que filtros de redes sociais influenciam na autopercepção de nossos corpos e assim procedimentos estéticos são cada vez mais feitos para nos deixar com o rosto do momento, com o nariz que é tendência ou com as maçãs do rosto caricaturais que serão o novo ‘must-have’ até a próxima estação – e a próxima injeção. Esse universo ganha contornos mais estilizados e extremos na narrativa construída pela diretora francesa Coralie Fargeat em “A Substância”, filme estrelado por Demi Moore e premiado como Melhor Roteiro no Festival de Cannes 2024.

Na narrativa de Fargeat, Demi Moore é Elisabeth Sparkle, uma atriz renomada que se torna uma estrela na TV norte-americana com seu programa de aeróbica. Com seu corpo encaminhando-se para um natural envelhecimento, ela se vê ficando em segundo plano na emissora, até ser demitida por seu caricatural chefe, maravilhosamente interpretado por Dennis Quaid. Em meio ao desespero e o desamparo de se ver sem perspectiva de futuro, Elisabeth entra em contato com uma “substância” que promete lhe transformar em uma versão aprimorada – e jovem – de si mesma. E quando falamos em uma versão, estamos realmente falando de um segundo corpo, uma cópia “revisada e atualizada pelo editor”, digamos assim, porém há uma cláusula específica: você precisará viver sete dias no seu corpo principal, no seu corpo modelo, e sete dias apenas no seu corpo ideal, na sua cópia. Elisabeth, obviamente, se propõe a essa experiência sem pensar em qualquer consequência.

Após utilizar a tal substância, Elisabeth irá passar por sua mutação e irá praticamente “parir” a sua cópia, que “nasce” por sua coluna vertebral em uma das sequências mais absurdas e assustadoras do cinema recente – e que de algum modo aponta para momentos clássicos de transformações animalescas na tela do cinema, como a icônica deterioração física de Jeff Goldblum em “A Mosca” (David Cronemberg, 1987) ou mesmo a transformação de David Naughton em lobisomem no excelente “Um Lobisomem Americano em Londres’’ (John Landis, 1981). Dessa mutação nasce Sue, interpretada por Margaret Qualley, a versão jovem e melhorada de Elisabeth. A partir daí, Sue ocupa os seus sete dias indo atrás de conseguir o espaço televisivo que era de Elisabeth e começa uma jornada complexa em busca de fama, reconhecimento e o carinho do povo.

Nessa jornada, Elisabeth e Sue vão entender que brincar com o corpo, o tempo e o nosso envelhecimento é um jogo arriscado, que as levará em uma jornada de horror e sangue ao melhor estilo “body horror”, o subgênero de terror com foco nas mutações corporais e nos limites do corpo. Coralie Fargeat obviamente bebe na fonte de David Cronemberg, o pai do body horror no cinema, porém a diretora francesa – que já assinou o filme “Vingança”, de 2017 – leva o seu filme por caminhos ainda mais extremos, se conectando com toda uma gama de filmes da New French Extremity, os filmes de horror sanguinolentos e estranhamente sexuais que cresceram na virada do século no cinema francês e que surge em diferentes momentos no cinema de Gaspar Noé, Catherine Breillat, Claire Danes e mais recentemente nos intensos filmes de Julia Ducournau. Se muitos desses filmes caminham por tensões mais existencialistas em que o corpo serve como metáfora para outras transformações sociais, no filme de Fargeat o corpo é um modelo de sua própria mutilação real que vemos cotidianamente em nome da beleza e da juventude e, ao invés do drama, a diretora prefere olhar isso pela perspectiva de um humor mordaz, que nos coloca frente a frente com a monstruosidade e o horror que os nossos desejos podem esconder.

Em um cenário solar, estilizado, de uma Los Angeles dos “sonhos”, quem brilha é Demi Moore, que surge aqui completamente entregue a todas as intenções de Fargeat. O filme foi uma espécie de comeback para a atriz, que foi extremamente bem recebida em Cannes, e tudo tem um motivo: ela se entrega de corpo total para o filme, sem limitações, sem medo dos excessos e se joga nas cenas mais grotescas e absurdas possíveis, dando complexidade para sua personagem mesmo naqueles momentos em que a dignidade já foi jogada no lixo. A conexão de Demi Moore com Margaret Qualley também é de se celebrar, já que elas funcionam no filme como esses dois polos de uma mesma personagem, com suas contradições, dicotomias e angústias.

Chegando essa semana aos cinemas brasileiros através de uma parceria da MUBI Brasil com a Imagem Filmes, “A Substância” é uma experiência ao mesmo tempo grotesca e absurdamente divertida, assustadora e completamente envolvente, em uma espécie de jornada do herói em que não haverá redenção, na qual a ótica da monstruosidade é a única possibilidade plausível. Veja de peito aberto e se deixe sujar com todo o sangue que esguicha da tela.

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– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava



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