Literatura: “Bate-Estaca”, de Camilo Rocha, cria um panorama rico sobre o desenvolvimento da cena eletrônica em SP

texto de Renan Guerra

Em uma capa de 1993, a Veja São Paulo trazia no título: “O estouro dos clubbers – quem são os novos, extravagantes e divertidos tipos da noite paulistana”. Era um olhar da grande mídia sobre uma cena que começa a nascer e que iria ganhar muito mais espaço nos anos 1990 e na virada do século, seja para o bem ou para o mal – clubbers viraram sentido de moda, hedonismo e liberdade e foram alvo constante da patrulha careta que sempre movimentou a “guerra às drogas” e a defesa da moral e dos bons costumes. Palco de importantes transformações culturais na capital paulistana, a cena de música eletrônica tem muitas memórias contadas no boca a boca, mas poucos registros fundamentais, mas agora que chega às livrarias o interessante e importante livro “Bate-Estaca – Como DJs, Drag Queens e Clubbers Salvaram A Noite De São Paulo” (2024), do jornalista Camilo Rocha, um lançamento da Editora Veneta.

O livro de Camilo habita aquele mesmo mundo pelo qual navegam “Todo DJ Já Sambou” (2003), de Claudia Assef, e o seminal “Babado Forte” (1999), de Erika Palomino – que, aliás, está sendo reeditado e chega em edição revista em outubro pela Editora Ubu. Rocha, assim como Assef e Palomino, não estava lá apenas cobrindo esses acontecimentos nos anos 1990, mas vivendo essas experiências e descobertas in loco, com o encantamento de quem entende que está inserido em um momento importante de transformação e de ruptura cultural. Com isso, a narrativa de “Bate-Estaca” ganha uma nuance múltipla, que navega pelas experiências pessoais do autor – que não tem receios de caminhar por histórias em primeira pessoa –, mas que ainda assim se sustenta em uma base sólida de pesquisas, de acervo bibliográfico e de amplas entrevistas com figuras centrais dessa cena.

O trabalho jornalístico de Camilo Rocha é interessantíssimo por seu olhar curioso de pesquisador, que consegue concatenar uma ampla gama de informações e de bases de pesquisa em um texto simples, saboroso de ler e que nos envolve – ou melhor, que nos chama pra pista de dança. Com um recorte bem definido que vai do final dos anos 1980 até o início dos anos 2000, “Bate-Estaca” cria um panorama muito rico sobre o desenvolvimento da cena de música eletrônica em São Paulo e seus desdobramentos, indo desde as primeiras casas no centro da capital paulista, que eram povoadas por poderosas drag queens, até o importante desdobrar da cena eletrônica na zona leste da capital, com o boom do drum’n’bass e o surgimento de DJs brasileiros de renome internacional, como DJ Marky e Patife.

Com a possibilidade do distanciamento temporal, Camilo consegue fazer análises muito interessantes sobre conjecturas políticas e sociais dessa história, entendendo nuances como as diferenciações (e os preconceitos) de classe na cena, a importância desse movimento aliado às experiências de pessoas LGBTs e as complexidades enfrentadas por mulheres para adentrar espaços de comado ou para assumir as pick-ups em um cenário em que o machismo ainda imperava (e impera). Mas mais uma vez, esses debates são sempre propostos a partir de bases argumentativas sólidas, que partem de uma pesquisa que vai muito além do empirismo, ancorando-se em relatos importantes dos entrevistados, em dados e pesquisas nacionais e internacionais e num cruzamento de bibliografias de jornais, sites e revistas.

“Bate-Estaca – Como DJs, Drag Queens e Clubbers Salvaram A Noite De São Paulo” é uma narrativa ampla, com múltiplos personagens, mas que nos ajuda a construir um panorama complexo de uma cena cheia de meandros e que se transformou de forma gigantesca nos anos 2000 – é só pensarmos no tamanho que os eventos eletrônicos assumiram no país e nas estruturas utilizadas por grandes nomes atuais como Alok. Escrevendo sobre as bases do que conhecemos hoje como cena eletrônica em São Paulo, ele nos ajuda a revisitar personagens e locais icônicos. Com esse recorte temporal, Camilo Rocha nos leva numa viagem pelos anos 90 e a sensação final é uma nostalgia boa de tudo aquilo que nem vivemos.

– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava



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