Literatura: Gonzalo Unamuno expõe os limites da brutalidade humana em “Para acabar com tudo” e “Lila”

texto de Gabriel Pinheiro

“A desordem, mais do que geral, é genérica. Sinto cheiro de carne podre, apesar do meu pouco olfato. Como alguém consegue viver assim? Parece que houve uma guerra que não presenciei, uma hecatombe que não se deu ao trabalho de me incluir”, diz Germán Baraja, narrador de “Para acabar com tudo”, breve romance do argentino Gonzalo Unamuno. Ele descreve aquilo o que vê, o que o cerca: seu apartamento em Buenos Aires, onde vive sozinho, cada vez mais isolado da irmã, rompido com a mãe – que parece estar à beira da morte – e infeliz com um emprego medíocre. Mas essa poderia ser uma descrição da própria mente do personagem, um ambiente que beira inóspito, onde a fúria, a raiva e a frustração parecem dominar o cenário.

“Para acabar com tudo” é escrito em reverso. Acompanhamos três dias na vida do narrador, ainda que esses dias sejam constantemente permeados pelas lembranças, nos levando para o passado e suas estranhas sincronias. Domingo, sábado e sexta-feira: é assim que o seguiremos, de trás para frente, num exercício de narrativa interessante proposto por Gonzalo Unamuno. Conheceremos as consequências antes de descobrirmos as causas.

A narração de Germán Baraja, por vezes, beira o fluxo de consciência. “E aqui estou. Emulando a vida de um drogado fodido qualquer, com alguns cigarros e 10 pesos no máximo, farto da minha história”. O texto de Unamuno é febril, emulando as dores e frustrações de uma geração que começa a se formar e a se perceber enquanto indivíduos no início dos anos 2000, numa Argentina – “esse erro gramatical chamado argentina”, ele nos diz – marcada pelo desastre socioeconômico do neoliberalismo e uma melancólica frustração com o peronismo e a esquerda.

“Para que negar que, em linhas gerais, me entretenho esperando alguma grande notícia, algum grande acontecimento que, claro, nunca chega (o que me mantém em permanente estado de vigília) enquanto gasto o pouco que ganho em alienações do sistema para acreditar que estou bem e, como todo produto do ocidente, me sinto uma vítima da época, um desperdício.”

Germán Baraja é um homem que encara o abismo e o abismo o encara de volta, refletindo, em sua escuridão sem fim, o mais profundo tédio. Se o tédio domina o personagem, ele está longe de se apresentar na construção textual de Gonzalo, engenhosa e labiríntica, tendo como clímax um potente discurso em suas últimas páginas.

Se “Para acabar com tudo” revela certo machismo e misoginia do seu narrador – nas relações afetivas e sexuais passadas, na não-relação com a mãe, uma ex-presa política da ditadura argentina – o romance seguinte de Gonzalo Unamuno, “Lila”, potencializa essa faceta deste personagem logo em suas primeiras linhas: um daqueles inícios de livro que deixa o leitor em suspenso, em choque com sua brutalidade.

Em “Lila” reencontramos Germán Baraja alguns anos depois da narrativa anterior. Lila, aquela que dá nome ao livro, acaba de ser espancada até a morte pelo homem, pai do filho que carrega no ventre. Ele está deitado ao lado do cadáver. “Levanto da cama, estico os braços, espreguiço. Penso no primeiro antecedente sério da minha misoginia, dos meus problemas com as mulheres”.

Breve e brutal, “Lila” dá prosseguimento ao estudo de um personagem tortuoso, numa construção narrativa também não-linear. Parágrafos se alternam entre o presente imediato – o corpo, ainda quente, que jaz, desfigurado, na cama de casal – e o passado. Tanto aquele do próprio personagem, quanto, sobretudo, o de Lila. Conheceremos Lila do nascimento à morte a partir daquilo que ela compartilhou com Baraja no passado.

“Lila” é marcado por uma masculinidade tóxica e por relações abusivas. Não apenas de Baraja. Assédio, abuso, adultério, violência, assassinato. Ações perpetradas pelos homens da narrativa. Uma escalada em direção ao horror. “Você é um monstro programado para o mal. O que te fizeram quando você era criança para você acabar assim?”, questiona Lila, enquanto viva, à Germán.

Ao expor o mais íntimo e, por isso mesmo, perturbador da mente de um homem que pode ser facilmente descrito como monstro, Gonzalo Unamuno foge de qualquer tentativa de justificar seus atos, mas nos dá possíveis respostas para a escalada da perversidade que marca este seu último ato irreversível. Germán Baraja não é um monstro. É fácil demais descrevê-lo como alguém fora do normal. Ele é um homem comum, um homem como outro qualquer, morador de um apartamento qualquer num país qualquer. É aí que reside o assombro do texto de Gonzalo Unamuno, ao expor os limites da brutalidade humana.

“Para acabar com tudo” e “Lila” chegam juntos em mais um acerto editorial da Ponto Edita. Esses são os primeiros livros de Gonzalo Unamuno publicados no Brasil. Com um projeto editorial e gráfico soberbo, com arte de Vinicius Alves, os livros – acondicionados num box caprichado – têm tradução de Maurício Tamboni.

Gonzalo Unamuno / Foto de Maxi Failla

– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel



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