Faixa a faixa: Davi Fonseca apresenta “Viseira”, seu segundo disco

texto de Renan Guerra
faixa a faixa por Davi Fonseca

Pianista, compositor, arranjador e cantor, o mineiro Davi Fonseca é essencialmente um contador de histórias. Quem já assistiu um show do artista – por aqui conferimos sua apresentação na 8ª Mostra Cantautores – sabe que Fonseca tem a sedução de quem nos envolve em seus causos e que torna histórias simples em narrativas envolventes, divertidas e até mesmo emocionantes, ao melhor estilo mineiro. “Viseira”, seu segundo disco, é um exemplo muito amplo de sua conexão ampla com essa oralidade e com a criação de universos narrativos que vão das experiências pessoais à ficção. Fonseca é também um instrumentista virtuoso e faz um casamento fantástico entre suas narrativas textuais e musicais, em um encontro que torna em personagens fundamentais cada nota musical e cada instrumento inserido na canção.

Esses universos ganham camadas no encontro de Davi Fonseca com Lucas Filipe Oliveira, seu parceiro nas composições do disco; mas além disso há uma ficha técnica imensa que constrói esse trabalho que mais uma vez reforça essa figura agregadora do contador de histórias que é Fonseca. Em “Viseira”, o compositor e arranjador reuniu 22 músicos, sendo que cada faixa apresenta uma instrumentação distinta e uma sonoridade única. E pra completar, o trabalho também conta com participações especiais do cantor baiano Xangai, na canção “Presepeira”; o cantor, compositor e violonista mineiro Artur de Pádua em “Apocalipse à brasileira”; a mineira Luiza Brina, em “Barra Grande”; e da pernambucana Isaar, em “A Laje de Hermeto”.

O título do disco e sua capa reforçam uma relação ampla desse olhar do artista para o interior do Brasil e seus múltiplos imagéticos, aqui resumido na figura do jumento. Para isso, Fonseca relembra Luiz Gonzaga que afirmava que “o jumento sempre foi o maior desenvolvimentista do sertão!”. Para Davi isso se completa em sua experiência em Minas Gerais: “aqui não é muito diferente, o jumento é peça fundamental na construção objetiva e subjetiva da nossa identidade, das nossas cidades, da cultura tropeira, da nossa gastronomia, da nossa música.” Com isso seu disco “Viseira” parte desse símbolo dicotômico que é ao mesmo tempo tão rico e tão rechaçado para desenhar o seu olhar sobre o Brasil – marcado especialmente pelas experiências vividas durante a pandemia e todo o turbulento cenário político nacional da última década.

Além disso, a tal “viseira” também já aparecia no apelido de Davi desde a adolescência: “DaViseira”. Pensando nisso, o músico encomendou uma máscara da artista plástica e atriz Mariana Teixeira e se vestiu com ela, encarnando esse personagem, espécie de Jumento-Homem-sem-viseira em fotos de Ciro Thielmann, com direção de arte de Júlia Filgueiras. As imagens apenas ajudam a compor ainda mais esse imaginário criado em torno do disco, há algo de muito real e palpável nas canções de Fonseca, mas há também um espaço para o lúdico, para o fantástico, como nas boas histórias contadas na beira da calçada no interior – daquelas que envolvem luta e fé, cansaço e esperança, entre a dura realidade e a possibilidade da fantasia.

Para mergulhar de forma mais profunda no universo de “Viseira”, Davi Fonseca preparou um faixa a faixa especial para o Scream & Yell contando um pouco mais sobre cada canção do disco. Confira abaixo:

1) Apocalipse à Brasileira – Essa é uma das minhas preferidas do disco. Sinto que ela mostra qual a energia e proposta do trabalho, além de trazer em si o título do álbum no verso “Viseira não é visão”. Fiz essa música depois de uma viagem na qual demos a volta na Chapada Diamantina de bicicleta. Logo no segundo dia sofremos um acidente enquanto descíamos uma pirambeira de cascalho e fomos acolhidos pelo pessoal do Assentamento Boa Sorte. Acabou que a pirambeira virou metáfora pros absurdos políticos que vivíamos (e ainda vivemos) no Brasil da pandemia de Bolsonaro, além dos crimes ambientais cometidos pelas mineradoras aqui em MG. Por outro lado, “no fim desta ladeira” havia pessoas lutando por moradia digna, que nos acolheram e compartilharam o que tinham conosco.


2) Presepeira – Essa música celebra o “Brasil que deu certo”, das feiras, mercados, das cores, dos encontros, da diversidade religiosa, dos cheiros, da música e por aí vai. Pra mim é uma honra ter a participação do Xangai nessa canção, ele que faz parte da minha vida e formação desde que me entendo por gente. Pro arranjo pensei num caminho bastante sinestésico, quase como um filme: à medida que a Presepeira, nossa protagonista, caminha pela feira, a instrumentação vai mudando, novos elementos e personagens aparecem, até que todos se encontram em uma grande festa no fim da música.


3) Lasca – “Lasca” é a pura dor de cotovelo, a música na qual mais exponho minha intimidade. Há algum tempo, vivendo um relacionamento não-monogâmico, me deparei com várias das minhas incapacidades afetivas e inseguranças. Sempre me esforcei para transformá-las em sentimentos mais leves e saudáveis, mas nem sempre consegui. Na história que virou esta canção eu fracassei, a própria letra diz que “como um burro velho empaquei”, paralisei, não consegui me mover diante daquele obstáculo. O arranjo da música também afirma essa solidão: em grande parte dela toco sozinho, piano elétrico e voz, depois têm umas surpresinhas, mas aí só ouvindo!


4) Barra Grande – Com uns 12 anos de idade eu tive uma experiência de quase afogamento no mar de Barra Grande, na Bahia. Lembro que foi uma experiência tranquila, fui ficando exausto de tanto bater perna e, de tanta exaustão, simplesmente relaxei e entreguei, desisti. Por sorte, um amigo que estava comigo conseguiu voltar pra areia e isso me deu um click, despertei, peguei um jacarezinho e voltei pra terra firme. Anos depois, com 19 ou 20 anos, lembrei desta experiência e compus essa música. Nessa época ela tinha só o primeiro verso: “Dizem que é tranquilo morrer no mar”. Depois o Arthur Bortolus me ajudou a terminar a letra.


5) Melô do Coach – Entrei pro Instagram há alguns anos na intenção de divulgar meu trabalho como músico. Rapidamente o algoritmo entendeu minhas expectativas e começou a colocar conteúdos de coachs de música para eu consumir. Hoje em dia sei que é tudo picaretagem, ninguém aprende a “tocar piano em uma semana” ou “crescer sua carreira rapidamente”, mas na época isso me gerou bastante ansiedade. Fiz essa música como uma vingança bem humorada, na qual ridicularizo esse “heroi muderno” que vem pra nos salvar de terno (desde que a gente pague ele…claro!).


6) Guimba – Guimba talvez seja a música mais prosaica do disco. Eu e Lucas Filipe Oliveira criamos um personagem que vive a correria clássica do brasileiro, com uma sorte que não dura quase nada e um esforço hercúleo para conseguir o mínimo.


7) Sagarana – Esta é a música mais pandêmica do disco. Fiz ela nos primeiros meses de quarentena, quando ainda havia alguma esperança de que aquilo que estávamos vivendo nos faria crescer como humanidade. Depois ficou claro o tamanho da destruição que viria. De qualquer forma, a pandemia me fez pensar sobre o fio da vida e do tempo, tão fortes e tão frágeis, que nos unem às nossas famílias e às pessoas que amamos. Lucas Filipe me ajudou a colocar palavras nesta canção que pretende misturar os tempos passados, presentes e futuros.


8) A Laje de Hermeto – Fiz essa música como quem observa a arquitetura de uma casa maluca e instigante como é a de Hermeto Pascoal. Sou MUITO fã dele há muitos anos. Por sorte, meus pais sempre me levaram para ver os seus shows e isso me formou como músico. Essa música é uma homenagem ao nosso Campeão, que é inspiração pura! Por ser a última música do disco, o arranjo dela acaba com os músicos “indo embora”, “festa acabada músicos a pé”, como um cortejo que segue para a próxima parada.

– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava



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