texto de Davi Caro
“Quanto melhor a voz de um cantor, mais difícil é acreditar naquilo que ele diz”, David Byrne comentou certa vez. Ainda que discutível, a frase convida a um questionamento talvez mais pungente: o que resta de um cantor – daqueles com uma voz capaz de conduzir hinos entoados por multidões, com um alcance vocal invejável; um grande performer, em outras palavras – quando seu grande diferencial começa a se dissipar? Como enfrentar este tipo de dilema, quando sua numerosa audiência perde uma parte vital de sua comunicação com seu trabalho? Como olhar para trás e analisar seus feitos de forma madura, tomando novas perspectivas sobre seu passado ainda que a promessa de um futuro não seja muito mais que isso?
Todas estas perguntas são suscitadas, em graus variados, ao longo dos quatro episódios da série documental “Thank You, Goodnight: The Bon Jovi Story” (2024), que chegou ao público brasileiro por meio da plataforma Star+. Algumas são elucidadas, enquanto outras acabam, pasme, gerando ainda mais mistério e dúvida: fazendo uso de um vasto arquivo audiovisual que vai de demos há muito perdidas à algumas das mais marcantes performances da banda liderada por Jon Bon Jovi, a série surge como oportunidade de fazer um balanço da carreira daquela que, para o bem ou para o mal, se consolidou como uma das maiores e mais inescapáveis bandas do mundo. Seu diferencial, conforme já exibido no trailer e comentado extensivamente em entrevistas e comentários prévios ao lançamento, está no fato de a produção ter contado com o aporte extensivo de todos os ex-membros do grupo, que se dispuseram a colocar quaisquer rusgas e mágoas de lado, tudo isso a fim de esclarecer o que se passou, realmente, por trás da ascensão de um garoto de classe média de Nova Jersey em direção ao estrelato, bem como suas relações com aqueles que o ajudaram e ajudam a chegar até ali.
Confirmando todas as expectativas (haveria como ser diferente?), o doc centra foco na jornada pessoal do frontman, nascido John Francis Bongiovi Jr., desde seu processo de criação, passando pelas primeiras investidas no mundo musical, ao lado das bandas Raze e Atlantic City Expressway – esta última, inclusive, ao lado do longevo parceiro e tecladista David Bryan. Conforme seus horizontes se estendem para além de sua cidade natal de Perth Anvoy, o garoto começa a ter contato com a cena de Asbury Park, e especialmente com sua figura de frente: um certo Bruce Springsteen. Tal conexão é perceptível na carreira de John para além da presença do próprio chefe da E Street Band no documentário: escutar seus primeiros registros a frente do Atlantic City Expressway é topar com um almejado carisma em muito parecido com aquele de Bruce, da entonação vocal às rotinas de diálogos com a platéia.
Ao mesmo tempo em que deixou de lado seus antigos grupos over em favor de apresentar seu próprio material (com a banda The Rest), Bongiovi se mudou para Nova York, onde passou a trabalhar como faz-tudo no lendário estúdio de gravação Power Station – onde seu primo, o produtor Tony Bongiovi, (responsável pela produção de discos de figuras como Ramones e Talking Heads) costumava trabalhar. Poderia parecer apenas sorte, se não fosse um caso de obstinação nata e talento adquirido, mas foi apenas uma questão de tempo até que o rapaz se deparasse com a chance de registrar seu material original, trazendo consigo David Bryan e incorporando músicos àquela altura já experientes: o baterista Tico Torres (10 anos mais velho), o baixista Alec John Such (ainda que as gravações em estúdio, em certas canções, já empregassem o craque e futuro membro efetivo Hugh McDonald) e, mais fundamentalmente, o guitarrista e vocalista Richie Sambora.
A trajetória do grupo em direção ao estrelato planetário é mostrada de maneira orgânica, e faz jus ao lento e gradual processo que, amparado pela contratação do empresário Doc McGhee, foi catalisado pela gravação do single “Runaway” e do debut homônimo da banda, de 1984. Mesmo o álbum que eventualmente os alçaria ao status de rockstars, o multitudinário “Slippery When Wet” (1987), é mostrado como fruto de muita tentativa e erro, bem como de uma irrefreável necessidade dos integrantes (e de John, agora já assinando como Jon Bon Jovi) em serem levados a sério por audiências mais preocupadas em caracterizar seu som dentro de alguma caixinha.
O estouro, à bordo de “Living On A Prayer”, “Wanted Dead Or Alive” e “You Give Love a Bad Name” (primeira canção do grupo a chegar ao topo da Billboard Hot 100, em um marco para o hard rock oitentista) não deixou de cobrar seu preço, e as tensões provenientes de uma vida de excessos, ao fim da turnê de “New Jersey” (1989) viria a deixar marcas profundas na banda, conforme o frontman, agora tido como sex symbol, se casou, e passou a almejar uma bem sucedida carreira solo. Mais traumas (as demissões do empresário McGhee e do baixista John Such, já na virada para os anos 1990) apenas criaram mais dificuldades na transição para uma década na qual, com o estouro do grunge, muitos dos contemporâneos do grupo foram atirados à obsolescência.
Aí é que reside o primeiro fator apontado como o segredo para o sucesso contínuo do grupo: a resiliência em dispensar sua administração anterior e a tomada de controle de seu gerenciamento, pontuado por eventuais trabalhos individuais e ocasionais pausas nas atividades – especialmente por parte de Jon e Richie, que começou a despontar com seus discos solo já pós-1990. O estopim para as mudanças, a produção aponta, tem seu início em um tenso impasse que tomou forma na última das datas de divulgação de “New Jersey”, onde a exaustão temperada com desordem generalizada acabou gerando a primeira das pausas nas viagens e gravações do Bon Jovi. Enquanto os dois principais compositores se dividiam em discos influenciados pelo blues (como os de Sambora) e trilhas sonoras cinematográficas pontuadas por participações cada vez mais frequentes em longa-metragens (da parte de Jon), se fez a cena para a retomada da jornada do grupo, que agora gerava notícias bombásticas por motivos prosaicos, como seu líder ter decidido cortar o cabelo.
É possível dizer que o centro dramático de “Thank You and Goodnight” é amparado por dois pilares distintos: o primeiro tem a ver com a confusa, súbita e dramática saída de Sambora, já em 2013, em meio a rumores de abusos de substâncias e álcool. Aqui, todos os integrantes se mostram tão cândidos e abertos como poderia se esperar, compartilhando suas visões às vezes contradizentes de um evento que abalou a dinâmica interna do grupo e desfez sua principal dupla criativa. Referências ao uso de tóxicos dentro do grupo não são veladas, como no caso do baterista Torres e suas internações em centros de reabilitação. No entanto, mesmo a mera disposição de Jon ao se referir ao acontecido depois de anos de silêncio e reticência, ou a franqueza de Richie em admitir sua péssima condução dos acontecimentos que levaram a sua saída e se desculpar aos fãs e aos colegas não chegam perto de trazer uma resposta clara sobre o que aconteceu. O desequilíbrio criativo produzido no vocalista seria vencido nos recentes “This House Is Not For Sale”, de 2018, e “2020”, do referido ano, após a adição do guitarrista substituto Phil X e com o aporte do produtor e músico contratado John Shanks. Quaisquer mágoas, porém, parecem ter ficado para trás, a julgar pela mais recente performance do grupo com seu antigo guitarrista, em sua inclusão no Rock and Roll Hall of Fame, de 2018 (Alec John Such também participou, e faleceria tempos depois).
O segundo pilar diz respeito a um outro tipo de turbulência a tomar forma dentro do grupo: a perda da voz de Jon, cujas performances abaixo da média chamaram a atenção da mídia especializada e angariaram boatos sobre o fim definitivo da banda. Numa acertada decisão, a série se divide entre repaginar o passado da banda e mostrar o dramático momento vivido pelo cantor, que se mostra incerto sobre a possibilidade de continuar frente à perda de sua capacidade vocal. Fazendo uso de tratamentos que vão de medicações e lasers até a decisão de realizar uma cirurgia de reparo, o frontman se alterna entre a confiança relutante e a desilusão, em momentos que aparece às lágrimas falando sobre a provável impossibilidade de continuar em frente.
Este talvez seja o momento que defina Jon Bon Jovi nos dias atuais: a aparência resoluta e o pouco esforço ao mostrar as rugas da velhice (assim como os cabelos brancos) ajudam a retornar ao paralelo com Springsteen referido há pouco. O compositor procura mostrar a faceta mais palatável por trás da magnética presença que exprime nos palcos, e o esforço documentado em mostrar suas iniciativas pró-democracia – como o apoio aos candidatos John Kerry, Hillary Clinton, Barack Obama e Joe Biden – e também sociais – a abertura de restaurantes de baixo custo e ações de caridade – servem como uma tentativa de desmistificar o fenômeno a fim de focalizar o homem. A impressão passada reposiciona Jon como uma espécie de Bruce menos angustiado, ou como um Bono menos messiânico; talvez por isso mesmo possa causar tanto ceticismo em alguns, ainda que a disposição do cantor seja inegável.
Em última análise, “Thank You, Goodnight” talvez seja a perfeita síntese da significância do Bon Jovi, e de sua figura central, nos dias de hoje: sua música, embora não inegável, não deixa de entreter (pelo menos, se tratando de seu trabalho pré-1995); sua aparência jovial não esconde as cicatrizes que se acumularam ao longo de anos, ainda que esconda cuidadosamente detalhes que outros talvez julgassem menos dignos – como, por exemplo, a não mencionada primeira gravação profissional de Jon, com a canção “R2D2 We Wish You a Merry Christmas”, lançada em um disco de temas de Natal inspirados em “Star Wars” em 1980; o papel desempenhado pelos outros membros, embora fundamental, não chega sequer perto de tirar o foco do real protagonista desta história, cujo final permanece nebuloso e inconclusivo.
Conforme os créditos finais se iniciam no último episódio, ao som do mais recente single, “Legendary”, uma pequena fagulha de esperança pode se acender no coração dos mais afoitos, mesmo que suceda uma espécie de admissão da parte do cantor: Jon não sabe se retornará a turnês, e se esforça para parecer minimamente ok com isso. E aí mora não apenas o maior trunfo, como também a maior vulnerabilidade, do vocalista, de sua banda, de sua obra e, por que não, desta produção: a honestidade, apesar de tocante, nem sempre deveria precisar de tanto esforço. “Prefiro dizer ‘boa noite’ a dizer adeus”, Jon comenta ao final, ecoando o título do documentário. Nostálgico em sua forma de entreter, cautelosamente cândido em seu tom de (provável) despedida e (de vez em quando) melodramático, “Thank You, Goodnight” é praticamente uma pergunta repetida várias vezes, e que começa a simplesmente se responder sozinha.
– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia outros textos de Davi aqui.