entrevista por Homero Pivotto Jr.
Wender Zanon conhece o sabor agridoce de trabalhar em diferentes frentes culturais, onde realizações e decepções estão sempre na mesa. Agora, o jornalista de 33 de anos prepara-se para colocar na rua sua primeira história em quadrinhos: “Gosto Estranho”, baseada na história real de uma remessa de pedaços de bicho morto destinados à alimentação contaminados em Chernobyl. A publicação de 40 páginas, capa colorida e miolo em preto e branco, foi feita em parceria com o quadrinista e ilustrador Érico Noronha.
Dia 10 de outubro, ocorre o lançamento oficial da obra com duas atividades presenciais em Canoas. A primeira é a Oficina de Zine, às 14h, no Salão de Atos Nelson Paim Terra (Paço Municipal), seguida de sessão de autógrafos, às 16h, no Café Literário (Praça da Emancipação — R. Quinze de Janeiro, em frente à prefeitura). A revista também tem divulgação durante a 38º Feira do Livro de Canoas, entre 6 a 21 de outubro, na Praça da Emancipação. Para quem é de fora e tem interesse no trabalho, basta acionar os autores pelo Instagram (perfis linkados no nome de cada um no começo desta matéria) ou pelo e-mail wender.zanon@gmail.com. O valor é R$ 20.
Apesar da estreia no universo dos quadrinhos, Wender não é carne nova no rolê: teve e tem bandas underground (como a Change Your Life, Vida Torta, Paquetá, Conflito, Mäskara e Mal dos Trópicos), produziu shows e eventos em outra searas do entretenimento e é realizador audiovisual (dirigiu o documentário “This Is Canoas, Not POA”).
Mesmo firmando-se como ator principal na arte do faça você mesmo, Wender tem como intuito colocar o protagonismo em sua cidade de origem, na região metropolitana de Porto Alegre. “(…) Pensei tipo ‘a gente tem mesmo que falar sobre o nosso lugar’. E não só falar, mas mostrar nosso lugar, nosso espaço, nossas casas, nossos vizinhos, nossa galera. Senão, cara, as histórias só vão se passar nos centros, capitais, na cidade que tem grana e estrutura pra receber uma produção audiovisual. Ou as histórias só vão ser feitas também por quem tem condições financeiras de ‘tirar um tempo’ pra escrever e financiar aquilo, e aí a gente presume que quem tenha tempo geralmente não vai morar numa periferia ou num espaço fora da área central. Saca?”, reflete Wender.
Para contaminar o nobre leitor com apetite pela leitura de “Gosto Estranho”, oferecemos uma saborosa entrevista com o autor. Nela, Wender fala sobre abordar a própria aldeia, conta inspirações, analisa vivências na cultura do submundo e exalta o lado prosaico de sua terra natal com olhar atendo, sem bairrismo.
Tu és um batalhador que tenta mostrar ao mundo histórias da tua cidade, Canoas. Seja com a Paquetá (banda com nome de uma praia de água doce local), com o documentário ‘This is Canoas, Not POA!’ e agora com essa nova empreitada. De onde veio esse ímpeto?
Veio de diversos lugares e influência de diversas pessoas. Acho que uma parte desse meu trabalho acaba sendo motivado por eu não ver “alguma coisa” ocorrendo na minha cidade, justamente naquele microcosmo especifico que eu tô atuando, sabe? Alguma história que eu vi, li ou tive acesso e, tipo: “uau, isso daria um filme!”. No caso, quando estava na produção do “This is Canoas, not POA!”, me questionava sobre ninguém ter feito esse registro da cena musical da cidade. Ou, se fez, onde foi parar a documentação disso? Lembro que eu pensava “tenho que contar essa história antes que ela se perca ou até antes que alguém faça e conte uma outra versão disso, haha”. Mas eu acho que o ímpeto vem dessa vontade, e até necessidade, mesmo de contar e apresentar histórias que não estão sendo tão “contadas” ou documentadas. E aí as influências são enormes. Uma grande influência pra mim é a galera da Filmes de Plástico, uma produtora de cinema de Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte. Essa galera sempre usa a própria cidade (que também tá na região metropolitana) como tema e pano de fundo das suas histórias. Lembro que entrei nesse teto desde que vi os primeiros curtas desse pessoal e pensei tipo “a gente tem mesmo que falar sobre o nosso lugar”. E não só falar, mas mostrar nosso lugar, nosso espaço, nossas casas, nossos vizinhos, nossa galera. Senão, cara, as histórias só vão se passar nos centros, capitais, na cidade que tem grana e estrutura pra receber uma produção audiovisual. Ou as histórias só vão ser feitas também por quem tem condições financeiras de “tirar um tempo” pra escrever e financiar aquilo, e aí a gente presume que quem tenha tempo geralmente não vai morar numa periferia ou num espaço fora da área central. Saca? E aí acho que o papo pode ir para outras questões também, mas eu vejo que nas duas últimas décadas, o cinema brasileiro (não só o cinema, tá?) teve uma renovação de vozes que estavam preocupadas e interessadas em mostrar histórias que até então estavam nas “margens”, eram essas “histórias invisíveis”. Mas acho que essa vontade de contar outras histórias é algo que está muito presente em diversos campos das artes brasileiras das últimas décadas. Uma outra referência bem direta, agora falando em quadrinhos, pra mim, é o trabalho que o Pablito faz, que é algo bem documental, bem entrevista jornalística. Ele ganhou visibilidade por fazer isso trazendo histórias de “pequenos personagens” de Alvorada e agora de Porto Alegre. Acho que essas pequenas histórias dizem muito sobre a gente e aqui só pra encerrar a pergunta, de onde vem esse ímpeto, eu cito mais uma vez uma frase que tem guiado muito meu trampo e que eu ouvi numa sessão de cinema na Cinemateca Capitólio. Era uma exibição do documentário “Histórias que o Nosso Cinema Não Contava”, e a diretora Fernanda Pessoa estava lá e comentou que “mesmo no lugar mais improvável é possível encontrar traços da História”. Aquilo me tocou de uma maneira que só essa frase tem moldado muito minhas intenções com todos esses trampos que tenho realizado. De certa forma, resumindo, eu acho que é contar histórias pra tentar entender nosso tempo, nossa sociedade, cultura e também pra tentar nos entender. É também fazer um “produto cultural” pra refletir sobre isso, sobre a gente, sobre nossos lugares e, por meio disso, também gerar afetos, momentos e essa sensação de pertencimento, identidade. É tipo “tá, legal demais fazer um som pra galera do meu bairro”. Não preciso ir tocar na capital ou depender de frequentar esse centro pra validar o meu trabalho, saca?
Como / quando começou a perceber que o município tinha boas histórias a serem mostradas? Teve algo a ver com tua vivência no underground?
Não sei se tenho um momento chave em que percebi isso. Mas com toda certeza a vivência no underground, ter banda, organizar shows de outras bandas e ter participado do Coletivo B.I.L na cidade de Canoas foram aprendizados e influências enormes pra tudo que faço. São meio que faculdades, sei lá, não deixa de ser uma atividade formativa, haha. Acho que a gente não tem como tirar algo da nossa história, né!? Todas as experiências somam e te tornam um ser único. É isso que vai nos diferenciar. O lance não é que a minha cidade tenha boas histórias para serem mostradas. Isso todas as cidades tem. A questão é que ninguém estava fazendo isso naquele “microcosmo” especifico ou fazendo isso exatamente com aquela história que eu tive acesso. E aí entendi que eu poderia colaborar com isso por meio de um filme, de uma banda, de uma HQ, de um projeto cultural. Tipo, onde eu posso colaborar nesse contexto maior que é a minha cidade? Tá aí! Vou fazer uma HQ falando disso, vou fazer um filme falando daquilo. Na real, respondendo a tua pergunta, percebo que não é bem um momento, mas sim uma sensação mesmo que acho que está muito atrelada ao movimento punk e a essas “políticas do faça-você-mesmo”, que são sobre isso: tem vontade, vai lá e faz. Será que preciso ter experiência pra começar algo? Olha, experiência ajuda bastante, mas não é necessário, né? Experiência se adquire no caminho. Acho que aqui a vivência underground fala mais alto que é isso “bora fazer, bora tocar, bora falar dessa historinha da cidade que ninguém falou ainda”. Tem aquele lema do Márcio Sno no documentário “Fanzineiros do século passado” em que ele diz “Se ninguém faz, façamos!”. É isso, né?
Do ponto de vista cultural, quais alegrias e quais agruras de se estar situado numa cidade grande (cerca de 350 mil habitantes), mas que costuma ficar relegada, muitas vezes, à programação cultural da capital?
Nessas cidades, no caso de Canoas que fica na região metropolitana de Porto Alegre, eu não vejo tanta divisão de grupos como vejo numa capital ou em centros maiores e mais movimentados — no sentindo de ofertarem uma programação cultural maior. Meio que aqui todo mundo cola com todo mundo (ou deveria ou eu acho que deveria, haha). Mas creio que isso é porque a cidade não oferece uma programação cultural constante e não tem muitos espaços para a circulação e encontros dos fazedores e apreciadores de cultura. Então, quando tem algo, as coisas se tornam meio eventos oficiais e todo mundo cola pra prestigiar. Ou, se não cola, ao menos se mobiliza pra divulgar e rola uma comoção pra aquela coisa dar certo, saca? Talvez, eu esteja romantizando, mas é uma sensação que eu tenho como ponto positivo e, ao mesmo tempo, negativo. Canoas carece de uma gestão especializada, de equipamentos culturais ativos, carece de divulgação e por aí vai. Em cada troca de governo acabam mudando também os profissionais responsáveis, bem como em cada troca de governo, tu vais ter uma visão diferente do que é cultura. Como ter um avanço ou uma continuidade assim, se a gestão fica ligada aos grupos políticos e as diretrizes que vão ter? E tipo, em Canoas tem muito grupo de teatro, e eu fico impressionado com isso. Da mesma forma que sempre teve muita banda também. Só que sabe quantos teatros tem em Canoas? Só um, que é o teatro do Sesc. E esse teatro foi inaugurado não tem nem dez anos. E sabe quantos espaços tem pra um show autoral hoje em Canoas? Nenhum! Um espaço que frequentemente role uma programação autoral na sua agenda, não tem. Tu vais ter um pub, um xis ou um espaço que alguém consegue uma data por mês e olhe lá! Como uma cidade com tanto potencial carece desses equipamentos e da manutenção desses equipamentos? Queria entender. Acho que é uma roda muito grande pra girar da maneira “perfeita”, mas mesmo girando meio “capenga” não vai deixa de girar. Enfim, resumindo, acho que a galera nessas cidades parece mais unida e torcendo pelo sucesso coletivo.
Quando tu entraste nessa pilha de divulgador local, como percebeu a reação das pessoas? Principalmente de quem também faz cultura e do poder público, mas sem esquecer dos amigos que são do rolê e de possíveis apoiadores privados?
Acho que virar um “divulgador local” foi um processo normal da minha trajetória. Eu trabalho como assessor de imprensa, social media e produtor executivo pra uma galera da cidade de Canoas. Tipo, hoje tenho 33 anos, e desde os 17 estou envolvido na cena artística da cidade. Comecei fazendo um trabalho de comunicação com o Coletivo B.I.L e hoje, na cidade, participo de um festival de teatro chamado FESTIA e também atuo como produtor de diversos projetos de artistas de diferentes segmentos. Tenho alguns trabalhos desenvolvidos com o pessoal do rap (como o DJ Abu, Negroide MC, Old Dent Bastard, Dio, Subterrâneo 12), também alguns trabalhos com o pessoal mais do rock, que é a galera da Cat Arcade, Flyleaves, Marginal Zero, Cor do Invisível, Vá. Trampo ainda com Marcelulose, que já é do role eletrônico, e agora também estou fazendo um projeto com o músico Paulo Vitor, que já é um lance que flerta mais com ritmos brasileiros. Como falei na resposta anterior, acho que não tem muita divisão dos grupos, e a galera toda se conhece, se fortalece e tenta esse sucesso coletivo, saca?
Bom, só acho que, antes eu era mais produtor, assessor de imprensa e agora estou conseguindo botar pra fora alguns trabalhos autorais em que eu também sou autor. Talvez seja essa resposta da pergunta, haha. Só que uma coisa leva a outra, né? E o trampo como produtor, assessor de imprensa e social media também vai acabar exercendo uma influência no trampo como autor. Como falei antes, trabalho nesse festival de teatro chamado FESTIA. Cara, é um baita evento! Ocorre há 12 anos e durante um período de 15 dias leva teatro, entre outras atividades culturais, para todos os quadrantes da cidade. É um evento organizado pelo grupo TIA e conta com o apoio oficial da cidade, mas mesmo assim é uma atividade totalmente independente. Meio de guerrilha mesmo, mobilizada por pessoas que querem ofertar cultura e atividades gratuitas pra população. Eu acho que esse meu trampo de “divulgador local” na real é só uma consequência da minha vivência e da influência que esses outros divulgadores e agentes culturais exercem sobre mim. No final, a gente só quer falar das coisas que a gente gosta, compartilhar uns tetos que fazem sentindo e tornar o nosso ambiente mais seguro e confortável.
Nas tuas empreitadas, qual considera que foi a maior dificuldade para levar os projetos adiante?
Cara, eu acho que a maior dificuldade mesmo é a organização, haha. Organizar equipe e ideia. Acordar todo o dia e ter força, motivação, tempo, condições e grana pra trampar. Essa ideia da HQ, por exemplo, já tá em um ano e meio de execução desde o momento em que tive a ideia inicial, que foi conhecer a história e começar a pensar que isso poderia virar uma história em quadrinhos, saca? Acho que a maior dificuldade é a de todo e qualquer artista e produtor, que é arrumar fontes de financiamento pra coisa rolar. A HQ teve um incentivo de um edital de Canoas que é o Microcrédito Cultural. Só que esse incentivo, digamos, cobre dois meses do nosso trabalho e dedicação. Pensa agora que a gente tá nisso há um ano e meio já. A gente tá fazendo a HQ com um suporte que serve de empurrão e também te bota numa responsabilidade pra fazer e entregar um projeto. Aí a gente quer fazer o melhor projeto possível pra também aproveitar esse suporte e empurrão pra dar passos cada vez maiores. Enfim, dificuldade mesmo eu sinto que é gerir a ideia, o projeto, fazer andar e apresentar isso. Tem uma fala do Jeferson Assunção no “This is Canoas, not POA” em que ele reflete sobre a dificuldade econômica e social do fazer artístico. Ele diz sobre isso, a dificuldade em “transformar tuas intenções em projetos e teus projetos em algo real, concretizar eles”. Eu vejo muita gente talentosa, com boas ideias, mas que não conseguem chegar e apresentar o resultado final do seu projeto. Elas se perdem ou desistem no meio do caminho. Seja porque precisa arrumar uma outra forma de ganhar dinheiro ou porque não consegue encontrar maneiras ideais de financiamento para o seu projeto ou não consegue organizar o projeto dentro das limitações impostas por tempo e dinheiro. E, infelizmente, o dinheiro vai ser algo que sempre vai pautar nossas ações e vai determinar até onde a gente pode ir e quanto tempo investir.
E para fazer a HQ “Gosto Estranho”, o que te inspirou? Aproveita e conta pra gente o causo real no qual a história é baseada.
Eu acho que a principal inspiração surgiu por meio do convívio e da amizade com o Érico. A gente tem feito várias coisas juntas nos últimos anos. Desde 2021, Érico e eu estamos trabalhando juntos em um selo de rap chamado Parada 12. Em 2022, a gente acabou montando uma banda chamada Máscara e, junto com Eduarda Linhares, José Hansen e Jonas Dala Corte, criamos seis sons que estão no álbum “Agressiva & Top”, lançado no último 11 de setembro. É tipo assim, tu viras amigo de alguém, daqui a pouco vocês fazem uma banda, haja, e porque não um gibi? O projeto “Gosto Estranho” nasceu ali por abril de 2022. Algum dia tava almoçando com meu sogro e sei lá sobre o que falávamos exatamente, mas ele comentou de um caso que ocorreu nos anos 1980 no Brasil e que acabou sendo conhecido por “Carne de Chernobyl”. Vou tentar resumir. Em 1986, o governo Sarney instituiu o Plano Cruzado e congelou os preços do mercado brasileiro. Com isso, os produtores resolveram parar com o abate de gado e a produção de laticínios. A solução foi importar toneladas de alimentos do mercado europeu. Porém, todo esse lance ocorreu próximo da explosão do reator de Chernobyl. Essa carne chegou no Brasil em setembro de 1986. Entre idas e vindas dessa história toda, entre libera e não libera… foi vendida uma parcela desse produto (carne e laticínios) até que algumas medidas impediram a comercialização. A gente pesquisou esse material e constatamos que até 1992 (!!!), parte dessa carne ainda estava congelada, esperando por determinações judiciais. E o que foi feita com essa carne? A nossa pesquisa não chegou nessa parte ainda (pois não era do nosso interesse descobrir todo o desdobramento desse episódio), mas as matérias de jornais da época indicavam que essa carne foi processada e vendida para a África.
Um dos tetos de toda essa história é que quando fui pesquisar sobre a “carne de Chernobyl”, naquele domingo de almoço na casa dos sogros e tal, logo descobri que uma boa parte dessa carne ficou congelada em Canoas, minha cidadezinha querida e amada, haha. Aí na hora já passou na cabeça mil cenas de filmes incríveis como “Street Trash”, “O Incrível Homem que Derreteu”, “Não se Deve Profanar o Sono dos Mortos”, “O Exército do Extermínio” (e de todos os outros filmes do Romero), entre outras obras que tão principalmente naquelas prateleiras das doideras dos anos 1980. Só que fazer cinema custa, e muito caro! (Ou ao menos as cenas que estavam passando na minha cabeça). Bom, acho que dormi com essa ideia e na semana seguinte fui falar com o Érico pra ver se ele pilhava em fazer uma história em quadrinhos disso. Aí o bicho abraçou a ideia. Só que fazer uma história em quadrinhos também custa, aí pensamos em formas de financiar esse projeto e resolvemos inscrever em um edital chamado Microcrédito Cultural da Secretaria de Cultura de Canoas. Bolamos tudo, organizamos um pré-roteiro, sinopse, uma página de apresentação do projeto (que depois acabou não sendo incluída na história) e aí ficamos no aguardo. Ali por outubro de 2022, saiu o resultado e a gente tinha sido contemplado. Uhuuu!! Começamos a nos encontrar mais, fazer reuniões e compartilhar referências, desenvolvemos melhor o argumento e partimos pro roteiro. Da minha parte, eu queria ressaltar como é importante ter incentivos (dinheiro, recursos) pra trampar e poder se dedicar a prática cultural/artística. Eu nunca tinha feito uma história em quadrinhos e não sabia por onde começar. Esse é um ponto que queria chegar, pois ter sido aprovado no edital cultural também nos botou na responsa de entregar um produto foda. Isso agrega pra nossa trajetória e a gente não podia fazer feio, rsrs. Então, nesse ponto, tive que começar a estudar sobre HQ. Sorte que minha companheira Ana Cândida Sommer, que é ilustradora e ceramista, tinha um bom material teórico sobre HQs. Entre um trampo e outro, passei uns dois meses lendo “Reinventando os Quadrinhos” e “Desvendando os Quadrinhos”, ambos do Scott McCloud, “Narrativas Gráficas” de Will Eisner e o “Balões de Pensamento”, de Érico Assis. Além dessas leituras mais teóricas, também tive acesso a muitos quadrinhos que eu não conhecia e que foram frutos das dicas e empréstimos do Érico e da Ana. Eu passava alguns filmes pro Érico e ele passava umas HQs. E assim a gente foi construindo e agregando referências pra esse trampo. Da parte do Érico, acredito que as principais influências vêm do Crumb, Daniel Clowes, Walace Wood e Marcelo D’Salete. Uma inspiração muito forte foi o anime e mangá “Tekkon Kinkreet’. Esse aqui o Érico leu e eu vi o filme, mas a gente sacou que a cidade ali é que era o personagem principal. Era um lance que a cidade exercia um “poder” e uma “influência” sobre os personagens, e a gente sacou que era onde a gente queria chegar com todo esse teto de abordar uma história que estava ali na cidade de Canoas, uma região metropolitana de Porto Alegre, esperando pra ser ficcionalizada. E esse é um lance que eu venho pensando muito, principalmente depois de ter feito o documentário “This is Canoas, not POA!”, que é tipo “o que tá faltando pra essa cidade virar pano de fundo para outras histórias?”. Talvez falte investimento, financiamento, sei lá, mas será que tudo vai depender sempre de dinheiro? Tipo cadê as nossas histórias nas telas ou nas páginas? Fico fritando sobre o quão importante é a gente se sentir representado e pertencente a uma comunidade, se ver na tela, ver o seu bairro ali, os costumes do seu local. No filme “ÔRÍ”, Beatriz Nascimento diz: “É preciso imagem para recuperar a identidade”. Ali, ela fala sobre uma questão racial, mas contextualizando também serve perfeitamente para outros espaços. Bom, como a gente tinha intenção de ficcionalizar uma história da cidade, quando partimos pro roteiro dessa HQ, um dos locais que mais visitamos foram as bibliotecas públicas. Ali ficamos folheando diversos jornais que correspondiam ao período de 1986 até 1991/92. A gente queria entender se realmente esse episódio da carne de Chernobyl tinha sido super comentado na época. E isso foi comprovado com a pesquisa no acervo dos jornais. Além de matérias, também encontramos algumas charges que dão essa “certificada de que o assunto tava na boca do povo”. Outro interesse nessa pesquisa era entender temas que estavam sendo falados à época, buscar nos jornais referências para os nossos personagens. E isso é possível observar em vários pontos nas páginas desse trabalho. Tem uma matéria de tv que abre a HQ, tem posters nas paredes na casa do nosso personagem chapista e no bar do Nena, que são simples detalhes, mas são frutos dessa pesquisa e dessa intenção de contextualizar e fazer referências a cidade na década de 1980.
É uma história doida por si, mas qual o lance mais louco/pitoresco envolvendo essa função da carne contaminada que vocês descobriram?
Cara, com toda certeza foi descobrir que a carne chegou no Brasil em 1986, ficou congelada até 1992 e possivelmente tenha sido processada e vendida para África depois. A nossa pesquisa não foi tão longe assim a ponto de descobrir o que realmente aconteceu, mas os jornais da época indicavam que esse seria era o destino.
Quem são e como foram pensados os personagens principais da trama?
O principal personagem acaba sendo a cidade de Canoas mesmo. E a gente acabou percebendo isso durante o processo de fazer a história, conforme também ia agregando outras referências ao trabalho. Aliás, como citei antes, esse teto da cidade como personagem tem muita referência do anime e mangá “Tekkon Kinkreet”. E uma outra grande influência pra esse lance de abordar a cidade foi ter lido “Tragédia Da Rua Da Praia”, de Rafael Guimaraens e Edgar Vasques, e “Beco do Rosário”, de Ana Luiza Koehler. Aliás, fui numa palestra do Vasques e da Ana Luiza na Biblioteca Pública do Estado em que eles falavam sobre a influência da arquitetura para essas histórias. E isso também acabou influenciando o nosso gibi. Outro lance de influência pra “Gosto Estranho” acho que veio duma pilha que eu estava de assistir a alguns filmes de Hong Kong. Isso de alguma forma está presente, num lance de “não se levar tão a sério, mesmo levando”. A história no gibi é apresentada como se fossem contos em que as ações da trama vão levando e apresentando outros personagens. E por isso também acaba que o personagem principal mesmo torna-se a cidade. A gente tem um personagem que abre e fecha a HQ, que é o Marcelo, um chapista do Xis Nova Esperança. Aí, depois temos o Jorge, que é um trabalhador do bairro, o Nico, que é um morador do bairro que não consegue dormir. Temos também alguns cachorros que atendem pelo nome de cachorro mesmo, temos a detetive Alice e o Nena e a Raquel, que são proprietários do bar do Nena. Todos de alguma forma são inspirados em pessoas reais ou algum causo que a gente viu. Nena e Raquel eram os donos do armazém que ficava na esquina da minha casa. E a detive Alice é inspirada na detetive Aline, uma personagem clássica que acabou viralizando pelas plaquinhas de propaganda que tem em Porto Alegre e região metropolitana.
Canoas reivindica o titular de “capital do xis”. E, em “Gosto Estranho”, tem um personagem chapista. A escolha dessa profissão para o personagem tem relação o lance do xis?
Sim! Com toda certeza! Até o lance de ter uma lancheria de xis na história é por causa disso. Não tinha como escapar disso na história.
Não que seja o objetivo, mas rola algum tipo de reconhecimento por dedicar tempo e energia em um trabalho que divulga a cidade?
Cara, acho que o reconhecimento mesmo é, tipo, estar trocando uma ideia aqui e ter a oportunidade de falar e contextualizar sobre o trampo, a cidade e outras questões contigo. Fico feliz com o reconhecimento que rola, mas é uma consequência dessa dedicação e do próprio trabalho. E acho que é uma roda também, do tipo “eu estou fazendo algo por que alguém me estimulou e influenciou e espero que esse trampo que também sirva como estimulo pra alguém da cidade ou de qualquer outra cidade metropolitana aí”.
Por onde o Wender, envolvido com o rolê DIY há uns bons anos, levaria visitantes de outras cidades para mostrar a movimentação cultural de Canoas atualmente (algo que tu já fizeste e segue fazendo, quando possível)?
Cara, acho que a principal vida cultural da cidade ocorre nas praças, pois são os espaços públicos mais democráticos — e isso é muito importante salientar. Por mais que Canoas não tenha uma programação cultural ativa, pública, constante e gratuita, é uma cidade que conserva bem (algumas de) suas praças. E é importante entender esses espaços, pois é onde a gente pode frequentar sem gastar dinheiro, sem a imposição de participar do evento e ter que consumir. É um lugar que tu vais, faz uma pausa, senta ali e troca uma ideia. Eu acho que é dali que surgem muitas ideias boas e, pode-se dizer, que é um dos pontos de encontros da galera da cidade. Eu levaria esse visitante pra conhecer as praças da cidade e os parques. Tem dois ótimos parques na cidade. Um fica próximo da estação Fátima do Trensurb, que é o Parque Eduardo Gomes. Tem também o Capão do Corvo, no bairro Marechal Rondon. E aí tem eventos específicos, como o festival de teatro que mencionei antes, o FESTIA, tem o Canoas Jazz e outros eventos que volta e meia a prefeitura organiza. Às vezes tem show da B.I.L no Navarro, que não segue tão ativo como já foi anteriormente, mas tá lá em pé. E tem a programação cultural ofertada pelo Sesc, que é esse espaço físico e frequente onde as coisas rolam na cidade. Dependendo do visitante também levaria na biblioteca e no Arquivo Histórico da cidade, que são lugares que tenho frequentado bastante, mas aí mostraria pra pessoa como a cidade já teve outros momentos também. Ah! Nesse lance de ocupar espaços públicos, a galera do movimento hip hop é muito organizada e faz isso muito bem. Se tivesse rolando uma batalha, levaria essa pessoa pra batalha de rima também. E pra fechar o role turístico levaria esse visitante pra comer um xis, né!
Aliás, como anda a cena local da cultura underground na cidade, se comparada há uns 10 anos?
Cara, acho que estamos novamente naquele ciclo que infelizmente a gente sabe que vai se repetir. Hoje em dia, Canoas segue a sina de muita gente produzindo e pouco espaço para encontros e apresentações. Tem algumas bandas novas de novos artistas, mas essa galera jovem não tá se organizando coletivamente. E não que tenham que se organizar e organizar algo também. Aliás, tem espaços pra tocar, mas pra tocar cover. E esses lugares onde toca cover dificilmente vai abrir a programação pra um som autoral. Bom, mas essa falta de espaço não reflete na produção artística da cidade. Até é ao contrário, eu mesmo tenho trabalhado com vários artistas locais mais jovens que tão aí querendo mostrar o seu som, tão compondo e tão superativos. Só que aí é outro sintoma. Esse pessoal vai procurar mostrar seu trabalho em outro espaço físico, geralmente fora da cidade, e também vai usar o espaço virtual para divulgar e promover seus trabalhos. Pois a própria cidade não oferece esse espaço de encontro comum, além das praças e eventos específicos. Talvez isso seja um reflexo do próprio tempo também, e eu que fico achando que tenha que ter show pra validar a ação, mas acredito ainda muito nesse poder do encontro e da experiência do contato mais próximo. Tanto que é por ter contato com essa galera mais jovem que também descubro e fico atualizado do que tá rolando na cidade. E posso dizer que a produção musical da cidade tá rolando em diferentes segmentos, mas também tem muita gente das artes gráficas produzindo e atuando em Canoas, coisa que eu não sentia há dez anos atrás.
– Homero Pivotto Jr. é jornalista, vocalista da Diokane e responsável pelo videocast O Ben Para Todo Mal.