texto por Renan Guerra
“Rotting in the Sun” (2023) foi definida por alguns como uma meta-comédia: é um filme sobre si mesmo e sobre um círculo egóico em torno de seus protagonistas. O ator e diretor Sebastián Silva interpreta uma versão de si mesmo na tela: um artista deprimido, um cineasta perdido em sua depressão e que tenta esquecer dos problemas usando doses gigantes de ketamina – a droga anestésica para cavalos que é um hit pós-moderno, especialmente na comunidade gay. Para tentar espantar alguns demônios, Silva vai para uma cidade litorânea do México, em que gays circulam desnudas pela areia, em total clima de cruising. Por lá ele conhece o influenciador do Instagram Jordan Firstman – que assim como Silva, interpreta uma versão de si mesmo. Firstman tenta a todo custo inserir Silva em seu novo projeto artístico, ao que Silva reluta um bocado, mas acaba cedendo e convida Firstman para ir para sua casa, na Cidade do México, mas chegando lá, Firstman não encontra o diretor em lugar nenhum e acaba embarcando em uma jornada detetivesca totalmente imprevisível.
Nessa trip egóica dos dois homens gays há uma figura feminina simbólica: dona Vero, a empregada de Sebastián Silva, interpretada por Catalina Saavedra, que já havia trabalhado com Silva no ótimo “A Criada” (2009). Vero é um elo distinto daquele universo de sexo, hedonismo e drogas dos dois personagens, ela é uma profissional que só quer manter seu trabalho e não ter problemas no percurso, mas é ela que se vê engendrada em uma história completamente absurda. “Rotting in the Sun” é oficialmente vendido como uma comédia, porém é uma comédia bem ácida e corrosiva e pode não ser lida por todos como algo bem-humorado, já que perpassa tópicos sensíveis como suicídio, abuso de drogas e hiperexposição nas redes sociais. É uma obra bastante pessoal de Silva, porém ela é ao mesmo tempo bastante universal em seus relatos sobre diferentes temas que perpassam tanto a vida dos homens gays modernos quanto dos trabalhadores ao redor do globo.
Bret Easton Ellis, autor de “Psicopata Americano”, definiu “Rotting in the Sun” de uma forma curiosa: “É como se ‘Roma’, de Alfonso Cuarón, fosse feito por John Waters em sua era ‘Female Trouble’”. Parece uma definição bem absurda, mas combina demais com os absurdos do filme de Sebastián Silva: há um olhar bastante mordaz sobre o mundo do trabalho e a luta de classes no México – algo que pode ser facilmente estendido para todas as nossas relações de trabalho na América Latina, tanto que é bem fácil que a gente conheça muitas dona Vero aqui pelo Brasil – e que soa bem mais direto do que a complacência de Cuarón com os patrões em “Roma”. Por outro lado, Silva põe em prática todo o desrespeito e a ousadia de John Waters: todas as piadas são permitidas e tudo na tela aparece sem rodeios, do cachorro que come coco de mendigos aos gays que usam um grande dildo de duas cabeças. Mas vamos deixar claro: nada disso surge na tela com o intuito de chocar ou ser escabroso, é tudo tão naturalmente inserido naquele cenário que embarcamos nessa jornada.
Para completar esse ciclo, temos uma apresentação extremamente interessante sobre nossas personas on-line. Jordan Firstman é uma versão de si mesmo no filme: um jovem gay influenciador que posta suas histórias e narrativas nas redes sociais, sem filtros e sem medo. Porém o filme de Silva nos questiona: até que ponto tudo isso é real? Em que momento viramos um pastiche de nós mesmos? Quais os limites dessa hiperexposição? Tudo isso é tensionado dentro do filme a partir da fragilidade das relações e como elas surgem velozes e evaporam na mesma intensidade quanto um stories no Instagram. De todo modo, o olhar de Sebastián Silva não recai pelo pessimismo quase estóico, aqui passamos bem longe daquele universo de horrores de um Michael Haneke. Num mundo de pós-ironia, “Rotting in the Sun” é como uma tentativa de rir de si mesmo, de se olhar no espelho e entender suas incongruências e de algum modo navegar por elas – para que, quem saiba, possamos desaguar para além delas.
Toda a narrativa desenvolvida por Sebastián Silva poderia recair em outro tom, seria bem mais fácil que o filme fosse um drama sóbrio sobre depressão, egoísmo e um boa dose de misantropia (e até misoginia) da comunidade gay, porém a escolha do diretor é mais anárquica e, por isso mesmo, muito mais deliciosa e autodepreciativa. “Rotting in the Sun” é como um chacoalhão que te leva por uma ruma de absurdos e você termina o filme com a sensação de que acabou de sair de um k-hole.
Ps: Assista já ciente de que as barras aqui são pesadas e os gatilhos podem ser variados.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.