Literatura: Em trilogia de livros lançada no Brasil, Deborah Levy escreve e reescreve a própria história numa “autobiografia viva”

texto por Gabriel Pinheiro

A autora sul africana Deborah Levy, radicada no Reino Unido, mergulha nos mares profundos e, por vezes, turbulentos de sua própria história e carreira em uma trilogia autobiográfica lançada simultaneamente no Brasil pela Autêntica Contemporânea: “Coisas que não quero saber” (tradução de Celina Portocarrero e Rogério Bettoni), “O custo de vida” (tradução de Adriana Lisboa) e “Bens imobiliários” (tradução de Adriana Lisboa).

Coisas que não quero saber

“Coisas que não quero saber” (“Things I Don’t Want to Know”, 2014) é uma resposta de Deborah Levy ao textp “Por que escrevo” do escritor George Orwell, datado de 1946. Neste ensaio, o britânico destaca quais seriam, para ele, os quatro grandes motivos para escrever: “Objetivo político”, “Impulso histórico”, “Puro egoísmo” e “Entusiasmo estético”. São também essas quatro razões que dão nome aos capítulos que compõem o livro de Levy, colocando-as em diálogo com sua própria obra e trajetória. Ao longo da leitura, Deborah nos mostra como são justamente as coisas que ela não quer saber, aquelas que prefere esquecer, que impulsionam a sua escrita, desde as primeiras tentativas no universo das letras.

Uma mulher chora ao longo da curta trajetória percorrida pela escada rolante de uma estação de trem. É um choro breve, mas intenso e revelador. A mulher é a própria Deborah Levy. “Numa fase em que a vida estava muito difícil e eu guerreava com a minha sorte e simplesmente não via lugar nenhum para onde ir”. Ela está em Londres, uma terra conquistada, o exílio encontrado ainda na infância, em companhia dos pais e do irmão após deixarem a terra natal, a África do Sul. Ao longo de “Coisas que não quero saber”, Levy transita por três lugares, tanto físicos quanto simbólicos, na medida em que uma memória puxa a outra. A infância na África do Sul sob o regime do apartheid, o crescimento e a juventude no subúrbio londrino que se transforma no marco de um recomeço familiar e a ilha espanhola de Maiorca, um refúgio descoberto pela escritora na maturidade.

Caminhando entre o passado e o presente, a autora nos revela momentos fundamentais de sua vida. Numa noite de 1964, em Joanesburgo, uma pequena Deborah de apenas cinco anos já está na cama, quando batidas irrompem o pequeno bangalô de sua família. É a divisão especial da polícia sul-africana à procura do pai. Após um curto tempo para que ele arrume uma diminuta mala, os policiais saem levando-o. “Agora os homens o levam embora a passos largos, homens que torturam outros homens e que às vezes têm suásticas tatuadas no pulso, sei disso por causa de conversas de papai e mamãe que entreouvi”. A criança só voltará a reencontrar o pai, membro do Congresso Nacional Africano, onde lutava pelos direitos humanos e contra o regime do apartheid, quatro anos depois.

Nesses quatro anos de distância da figura paterna, o silêncio se impõe como condição de sobrevivência. Deborah não pode explicar a ausência do pai na escola. Também, não pode usar o próprio sobrenome, de origem judaica, pelo risco que ele carrega em um estado de exceção. Aos poucos, a criança se fecha, diminui o tom de voz até quase o completo silêncio. “O volume da minha voz tinha abaixado, e eu não sabia como aumentá-lo”. Mas é, ainda na infância, que a garota descobrirá como transmitir seus pensamentos, emoções e aflições. Se não pela voz, seria através da escrita. “Disseram-me para expressar meus pensamentos em voz alta e não só na minha cabeça, mas resolvi escrevê-los”. É bonito acompanhá-la jovem, já na Inglaterra, no início da construção de sua persona escritora e os ideais que a acompanham neste início rumo à conquista futura da própria voz. “Eu sabia que queria ser escritora mais que qualquer coisa no mundo, mas tudo me oprimia e eu não sabia por onde começar”.

Em “Coisas que não quero saber”, Deborah Levy constrói uma voz marcante, que fala em alto e bom som, sobre uma história pessoal que também é, por diversos momentos, uma história maior. Seja a história de um país ou de uma geração. Os quatro capítulos, ou ensaios, trazem, ainda, reflexões pungentes sobre o feminino e a escrita. Sobre o patriarcado e a recusa ao silêncio. “Para me tornar escritora, precisei aprender a interromper, a projetar minha voz, a falar um pouco mais alto, e depois mais alto, e depois a simplesmente usar minha própria voz, que não é nada alta”.


O custo de vida 

Deborah Levy dá início à segunda parte de sua autobiografia viva com uma citação de Orson Welles, “se queremos um final feliz, depende de onde paramos a história”. Em “O custo de vida” (“The Cost of Living: A Working Autobiography”, 2018), a autora dá mais um passo neste projeto de investigação de sua história íntima, compartilhando conosco as agruras do fim de um casamento, do falecimento da mãe, da mudança para uma zona periférica da capital londrina, da criação das filhas e do desenvolvimento da carreira enquanto escritora. Ou seja, os muitos pratos a serem equilibrados por uma mulher, entre o pessoal e o profissional.

Em um bar na costa caribenha da Colômbia, Deborah vê um homem e uma mulher conversando em uma mesa. Ele é muito mais velho que ela, uma jovem de uns dezenove anos. Enquanto a mulher conta uma história pessoal, o homem parece pouco se importar. “O que ela dizia era interessante, intenso e estranho. (…) Não ocorrera a ele que ela talvez não se considerasse o personagem secundário e a ele o personagem principal”. O silenciamento e a imposição do patriarcado à este lugar secundário para o feminino é uma das questões que Levy continua investigando neste volume autobiográfico, tanto na própria história quanto naquilo que ela observa ao seu redor.

A experiência que aquela mulher no bar caribenho compartilhava com o acompanhante foi um mergulho em mar aberto. Ao retornar à superfície, a jovem se deparou com uma tempestade: o mar se tornara um redemoinho. Aflita, ela não sabia se conseguiria retornar ao barco. A história de outrem se torna também uma metáfora potente para a própria história de Deborah: “Quando eu tinha meus cinquenta anos e minha vida deveria estar desacelerando, se tornando mais estável e previsível, ela se tornou mais veloz, instável e imprevisível. Meu casamento era o barco, e eu sabia que se nadasse de volta para ele iria me afogar. (…) A melhor coisa que fiz foi não nadar de volta para o barco. Mas onde eu deveria ir?”.

Entre a escrita de romances e reuniões com representantes de estúdios cinematográficos para a venda dos direitos de seus livros, encontramos em “O custo de vida” uma Deborah Levy já ocupando o lugar de uma escritora internacionalmente reconhecida. O que não significa que ela não precise se preocupar com aqueles custos de vida que o título do livro carrega: as contas a pagar, o dinheiro insuficiente, a precariedade tanto do lar quanto do lugar de trabalho – um depósito onde cabiam poucas coisas além da autora e seu computador. “Era muito importante não chegar atrasada àquela reunião. Havia viagens com a escola a pagar e a conta do gás e também o terror do meu computador começando a fazer estranhos estalos quando se recusava a desligar”.

A morte da mãe é outro dos temas fundamentais da obra. “Perdi todo o senso de orientação geográfica durante algumas semanas após a morte da minha mãe”. A sensação de encontrar-se à deriva – aqui também remetendo à história da jovem e o mar turbulento – ao perder aquela que era o elo entre os seus dois lugares de fundação e de formação, a África e a Inglaterra. A perda é matéria para reflexões sensíveis e marcantes acerca da maternidade e do passado compartilhado. Em um capítulo, a autora nos descreve um longo diálogo com a mãe morta. “Falo com minha mãe pela primeira vez desde a sua morte. Ela está escutando. Eu estou escutando. Isso faz toda a diferença”.

Nas páginas finais de “O custo de vida”, Deborah Levy comenta: “Estava mais interessada num personagem principal feminino ainda não escrito”. No fim, talvez essa personagem almejada seja a própria autora transformada em texto. A possibilidade de escrever e reescrever a própria história, a própria vida. “A escrita que você está lendo agora é feita de custo de vida, e é feita com tinta digital”.


Bens imobiliários 

“Bens imobiliários” (“Real Estate”, 2021) é o último volume da “autobiografia viva” de Deborah Levy. Agora, Levy já é uma escritora consolidada, um reconhecimento conquistado na casa dos cinquenta anos. Enquanto viaja por diferentes países – em compromissos de trabalho, para encontrar amigos, para resolver questões acerca do falecimento de sua madrasta – a autora lida com a partida iminente da filha caçula para a universidade e a possível “síndrome do ninho vazio” que poderá resultar dessa separação. Enquanto isso, ela reflete sobre o próprio fazer literário, o lugar da mulher dentro deste mercado e fantasia um lar dos sonhos, seu bem imobiliário ideal. “Até então, no meu portfólio de propriedades, eu possuía um apartamento no meu malconservado prédio, três bicicletas elétricas e três cavalinhos de carrossel, de madeira, do Afeganistão”;

Quase em paralelo à partida da filha mais nova para a universidade, Deborah Levy recebe o convite para uma residência em Paris. Assim, a escritora vive essa separação de maneira dupla – a separação da filha, a separação do país – enquanto mobília o pequeno apartamento parisiense onde viverá por um breve período para que este se transforme tanto num lar, quanto num espaço onde seja possível criar. “Olhei ao redor para o apartamento desguarnecido. Então era assim um ninho vazio. Ermo. Ou era simplesmente desobstruído, leve e espaçoso?”

Sendo a terceira parte de um trilogia, é impressionante como Deborah Levy mantém o vigor – na verdade, segue num crescente – de seu texto aqui. “Bens imobiliários” é o mais fragmentado dos três volumes desta “autobiografia viva”, talvez o mais difícil de definir. Mas é nele que a autora nos apresenta algumas de suas reflexões mais tocantes e sagazes sobre si própria, sobre seu trabalho e sobre o mundo que a rodeia. “Acho que meu propósito literário era pensar livremente, ou, antes, que os livros falassem livremente em meu lugar. Se isso parece fácil e óbvio, não é fácil, nem na página nem na vida”.

Deborah Levy descreve por diversas vezes o seu lar ideal. Um casarão com uma lareira em forma de ovo, numa região de clima quente, perto de um lago ou do mar. “Uma vida sem poder nadar todos dias não era uma vida que eu queria”. Este anseio por um lugar idealizado parece movê-la ao longo das páginas. “Venho carregando essa casa dentro de mim a vida inteira”. Se este casarão permanece no terreno dos sonhos – digamos que uma região também de clima quente, além de fértil – é bonita a conclusão da autora, nas páginas finais do volume, sobre quais os bens imobiliários que ela construiu ao longo da vida e como eles permanecerão para além dela própria, para a posteridade.

Nestas três partes de sua “autobiografia viva”, Deborah Levy transforma a si própria em personagem. Uma personagem mutante, em constante desenvolvimento, que não deixa de nos surpreender ao longo das páginas de cada livro. Seja pelas decisões, pelas reflexões pungentes e pelo olhar sempre atento para as coisas que a rodeiam. “Então, agora que eu era um personagem feminino de sessenta anos, ao mesmo tempo ainda não escrito e constantemente reescrevendo o roteiro, o que eu valorizava, possuía, descartava e legava?”

– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel

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