texto de Renan Guerra
“Mato Seco em Chamas” (2023) marca o encontro dos diretores Joana Pimenta e Adirley Queirós, em uma parceria que já havia se formado em “Era uma vez Brasília” (2017), com direção de Adirley e fotografia de Joana. Aqui os dois lançam seu olhar sobre uma espécie de distopia onde a cidade de Brasília se torna palco de uma série de atividades comandadas pelas gasolineiras, um grupo de mulheres que conseguiu criar um esquema de revenda de gasolina de forma mais barata. Na clandestinidade, essas mulheres conseguem criar uma espécie de movimento em seu entorno e tencionam a cidade e a periferia. Para além disso, o roteiro é atravessado em muitos momentos pela distopia da realidade que foi viver no Brasil nos últimos anos e essas questões acabam escancarando ainda mais a potência do filme.
Joana Pimenta é uma realizadora portuguesa que se juntou a esses universos de Adirley Queirós, um diretor nascido em Goiás, mas que cresceu na Ceilândia, cidade-satélite de Brasília e que transformou a sua localização geográfica em um ponto central de seu cinema. “Branco Sai, Preto Fica” (2014) é talvez o filme mais simbólico dessa forma de contar histórias de Queirós, em que também temos uma ficção científica que se passa na periferia brasiliense e que é atravessada pelo documentário. De todo modo, em “Mato Seco em Chamas” esse encontro de Joana e Adirley ganha proporções mais épicas, pois temos um filme de duas horas e meia que se aventura em uma narrativa sinuosa, que vai e volta no tempo, e que nos conecta com personagens em um amplo arco narrativo – é como se fôssemos os espectadores dessa ascensão e queda das gasolineiras.
Um futuro distópico com motoqueiros, gasolina em chamas e uma terra seca pode trazer uma direta alusão à “Mad Max”, mas, calma, se lá a gasolina era tópico de guerras entre gangues, aqui esses motoqueiros são entregadores de delivery e as guerras são com partidos políticos, panfletagem e todos os jogos de poder de Brasília. Para além disso, “Mato Seco em Chamas” está bem longe da linha thriller de perseguição, pelo contrário, sua narrativa é delicada, feita de sutilezas e construída a partir das minúcias e intimidades de suas personagens principais. Nesse sentido, o filme de Joana Pimenta e Adirley Queirós está bem distante do universo de George Miller e bem mais próximo das construções cinematográficas de conterrâneos de Joana, como João Pedro Rodrigues ou Pedro Costa, e até mesmo de nomes fundamentais do cinema iraniano, como Abbas Kiarostami e Mohsen Makhmalbaf. Há uma languidez na forma de filmar que nos coloca dentro do filme de forma especial. Depois de certo tempo é como se já estivéssemos ao lado daquelas gasolineiras como se elas fossem nossas vizinhas.
“Mato Seco em Chamas” é construído em grande parte com não-atores e foi filmado durante cerca de um ano. O processo do filme era atravessado pelas questões cotidianas desses atores, pelas suas outras possibilidades de agenda e pelos próprios problemas que os impossibilitavam. Chitara e Léa são as condutoras nessa história e são elas que enchem a tela de humanidade, beleza e complexidade, são as suas narrativas reais que se misturam com as ficcionais e nos levam em uma espiral complexa. Com isso o filme também se conecta com esses lampejos da nossa realidade social: a Colmeia, como é conhecida a prisão feminina do Distrito Federal, dá as caras; a campanha política de Bolsonaro surge aqui e acolá; e os bolsonaristas são filmados como um filme de terror distópico que a gente ainda gostaria de crer que era ficção.
Com isso tudo, a beleza de “Mato Seco em Chamas” reside no fato de que nada é óbvio. Suas metáforas não são banais, seu olhar sobre essas personagens não é invasivo ou desrespeitoso e sua naturalidade em mesclar narrativas torna tudo uma aventura complexa e pujante. Se há a dor de um Brasil violento e hostil em tela, há também a delicadeza e o cuidado dessas mulheres umas para com as outras, há as relações que se formam em espaços embrutecidos e há essa perspectiva de outras possibilidades de existência. Esse é um filme que olha com sabedoria para tantas coisas: o amor lésbico, a irmandade feminina, a politização de categorias marginalizadas e a possibilidade de criar a partir do dilaceramento total de expectativas.
“Mato Seco em Chamas” é uma potência forte e intensa sobre o que somos e o que ainda conseguimos ser enquanto resistência. E faz isso enquanto grande cinema: com poesia, com inteligência e uma narrativa suntuosa.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.