entrevista por João Paulo Barreto
Três anos é muito tempo. Acrescente a esses trinta e seis meses uma pandemia juntamente a um governo negacionista e excludente. Além disso, dentro desse período, acostume-se com a ideia de que a política de situação cancela um Ministério da Cultura, encerra uma agência de fomento ao Cinema e desconsidera o potencial dessa indústria lucrativa dentro de um país cuja riqueza cultural para o audiovisual é palpável. Sim, três anos é muito tempo. E com todos esses agravantes, atrasos e desmonte proposital, podem parecer três décadas.
Esse foi o período no qual, desde janeiro de 2020, a Mostra de Cinema de Tiradentes, tradicional evento que, esse ano, chega à sua 26ª edição (de 20 a 28/01), aconteceu, assim como todos os outros festivais conscientes dos riscos da COVID-19, de modo apenas on line. Chegou a ser programada uma edição presencial para janeiro do ano passado, mas toda a empolgação em poder voltar ao Cine Tenda, às mostras ao ar livre na praça central da cidade, aos encontros cinéfilos e aos ricos debates promovidos pelo festival precisou ser contida diante a variante Omicron, que cancelou o evento.
Raquel Hallak, coordenadora geral da Mostra e CEO da Universo Produções, responsável pela organização, em entrevista ao Scream & Yell, relembra a experiência traumática de 2022. “Foi tão traumatizante. A gente estava com tudo pronto. A estrutura, os preparativos. E nos deparamos com esse cenário da variante Omicron. Tivemos que desmontar tudo. Hoje, às vésperas de começar (a edição 2023), é aquela sensação: ‘Mas, gente, é isso mesmo? Está acontecendo?’ Porque é um evento muito aguardado. Preparamos com tanto carinho já há tanto tempo. Desde setembro estamos envolvidos com essa Mostra. É um momento histórico muito importante”, pontua.
Além de Raquel, um dos curadores da Mostra, Francis Vogner dos Reis, aborda esse momento de voltar a Tiradentes trazendo uma leva de 134 filmes a serem exibidos; uma riquíssima seleção de filmes inéditos na Mostra Aurora; uma homenagem aos cineastas Ary Rosa e Glenda Nicácio (cuja carreira se construiu a partir da UFRB em Cachoeira), além do 1º Fórum de Tiradentes – Encontros pelo Audiovisual Brasileiro:
“A ideia do Fórum é chamar pessoas que sejam pesquisadores, cineastas, pessoas que fazem parte de entidades de classe, pessoas ligadas à restauração e à educação, muita gente que pensa e que faz cinema brasileiro nos seus mais variados setores. Na complexidade do campo que é o cinema brasileiro. E o Fórum é para pensar, de fato, o presente e o futuro a partir do que vimos nos últimos anos. Discutir políticas públicas. O futuro do ponto de vista material e político do cinema”, explica Vogner.
Para Raquel Hallak, o foco principal do Fórum é salientar a necessidade de diálogo visando uma reconstrução. “O que eu vejo de necessidade primordial chama-se vontade política de fazer. Isso em todos os âmbitos. No município, no estado e em âmbito federal. E da nossa parte do setor audiovisual, o desejo é de trabalhar para somar. Não é fácil recriar um Ministério da Cultura. E por isso a ideia de realizar o Fórum é, pra gente, também ganhar tempo. Porque quando já chega um documento oficial legitimado para o setor, você não precisa ficar inventando muito a roda. Está ali. Agora, é a forma como a gente vai conseguir fazer isso. O diálogo e a proximidade do MinC com a Ancine vão ser muito importantes”, pontua a coordenadora geral da Mostra.
Um dos principais pontos de reconstrução da indústria do audiovisual brasileiro após os quatro anos de desmonte do último governo, com ausência do Ministério da Cultura e da Ancine, é a percepção de que o cinema brasileiro tem forças para continuar existindo. A simbologia do tema da Mostra Tiradentes 2023 dentro do Cinema Mutirão vem denotar isso. “É um momento histórico muito importante. Porque retoma o formato presencial da mostra nessa expectativa do encontro, da troca, apresentando uma seleção de filmes diferenciada. Porque são filmes que foram feitos em um cenário ainda pandêmico. Filmes que foram feitos em uma ausência de políticas públicas no Brasil. Então, o tema do evento “Cinema Mutirão” representa exatamente essa força que o Cinema tem. Desse gesto coletivo de, mesmo dentro de todas as adversidades, o Cinema continuou e continua”, comemora Raquel.
Já as homenagens a Ary Rosa e Glenda Nicácio, cineastas que, apesar de mineiros, possuem uma formação advinda do Recôncavo baiano, pontuam exatamente a valorização de um cinema feito em conjunto: “O tema é Cinema Mutirão e, em alguma medida, eles são um caso exemplar disso e de muita coisa. São dois cineastas que nasceram em Minas, mas que se fizeram lá em Cachoeira, na Bahia, por causa de uma universidade pública fundada no governo Lula. Um novo curso de cinema que mostra o deslocamento, também, de pólos de produção cinematográfica e criativos para outros lugares que não é mais a região Sudeste, como foi nos anos 1990, por exemplo. Ary e Glenda são filhos disso. Eles são um caso exemplar do que é o cinema brasileiro e como ele se faz na sua resiliência. Mas eu acho que, também, é um farol do futuro”, reflete Francis Vogner.
Nesse papo com o Scream & Yell, Raquel e Francis aprofundam suas expectativas para esse retorno da Mostra de Cinema de Tiradentes ao formato presencial na exuberante cidade mineira. Confira!
Raquel, três anos depois da última edição de 2020, a Mostra volta a acontecer em seu formato presencial, isso após um período de confinamento pandêmico e tendo a edição 2022 modificada para o on line às vésperas do seu início no ano passado. Como está essa expectativa?
Raquel – A sensação é a seguinte: ‘Nossa, não é que é verdade? Vai acontecer!’. É um pouco isso. O ano passado foi tão traumatizante. A gente estava com tudo pronto. A estrutura, os preparativos. E nos deparamos com esse cenário da Omicron. Tivemos que desmontar tudo. Mas a cada dia a gente toma um novo fôlego. Hoje, às vésperas de começar, é aquela sensação: ‘Mas, gente, é isso mesmo? Está acontecendo?’ Porque é um evento muito aguardado. Preparamos com tanto carinho já há tanto tempo. Desde setembro estamos envolvidos com essa Mostra. É um momento histórico muito importante. Porque retoma o formato presencial da mostra nessa expectativa do encontro, da troca, apresentando uma seleção de filmes diferenciada. Porque são filmes que foram feitos em um cenário ainda pandêmico. Filmes que foram feitos em uma ausência de políticas públicas no Brasil. Então, o tema “Cinema Mutirão” representa exatamente essa força que o Cinema tem. Desse gesto coletivo de, mesmo dentro de todas as adversidades, o Cinema continuou e continua. E Tiradentes abrindo esse calendário em um cenário de recriação do Ministério da Cultura, em que a gente volta a ter a nossa casa para dialogar. É uma renovação em todos os sentidos. É um novo evento, porque é on line e, também, presencial. É a primeira vez que faremos essa versão híbrida. É, também, um momento de renovação de esperança. Da gente poder estar ali pensando o audiovisual, tentando entender. Por isso, a ideia, inclusive, do Fórum para podermos revisitar e ter um senso crítico sobre as políticas públicas como um todo, nesse momento em que temos a possibilidade de fazer reverberar o que a gente pensa, o que a gente acredita. E é um momento de muita expectativa, mesmo. E também de muito desejo, de muita vontade de poder oferecer, mais uma vez, esse espaço para o cinema brasileiro. Porque a nossa missão é essa. É promover, difundir, formar, materializar e reunir em um espaço único toda força da cadeia produtiva do audiovisual.
Após um período de desmonte do cinema brasileiro, com a dissolução do Ministério da Cultura e da Ancine, ausência de políticas públicas para o audiovisual, além de uma ausência de vontade política por parte dos que governaram o Brasil nos último seis anos, você é otimista em relação aos próximos anos?
Raquel – Sou uma pessoa otimista. Sempre procuro enxergar as possibilidades. Tudo tem saída. O que eu vejo de necessidade primordial chama-se vontade política de fazer. Isso em todos os âmbitos. No município, no estado e em âmbito federal. E acho que da nossa parte do setor audiovisual, o desejo é de trabalhar para somar para que isso seja possível. Não é fácil recriar um Ministério da Cultura. A ideia de realizar o Fórum é, pra gente, também ganhar tempo. Porque quando chegar um documento oficial legitimado para o setor, você não precisa ficar inventando muito a roda. Está ali. Agora é criar a forma de como a gente vai conseguir fazer isso. O diálogo e a proximidade do MinC com a Ancine serão muito importantes. Para a Mostra de Tiradentes desse ano, a gente está levando o Fabrício Noronha, que é o secretário de Cultura do Espírito Santo e presidente do Fórum Nacional de Secretários de Estado de Cultura. É uma representação importante que teremos para ampliar essas vozes. Para ampliar a possibilidade de fazer reverberar o que discutiremos ali. Reverberar nos órgãos e nas entidades de classe, principalmente. Então, eu acredito. Sou otimista. Acredito na soma de esforços. Mas também acho que ninguém vai fazer milagre. É mãos à obra. É arregaçar a manga e, a partir do desejo, do sonho, da vontade, da necessidade das mudanças que vão ser necessárias, das adaptações, cada um fazendo sua parte, não tem como não dar certo. Não tem como não ter resultados. A vontade política e trabalho vão ser duas premissas fundamentais para conseguirmos avançar nessas conexões e nesses diálogos.
O tema da Mostra desse ano é Cinema Mutirão, algo que simboliza muito da vontade de se fazer audiovisual em uma terra devastada por um governo predatório em relação à Cultura e ao Cinema. Realizadores conseguiram produzir durante esse período dessa forma, dentro de um esquema de mutirão. Mas o suporte do poder público é essencial nesse suporte.
Raquel – Sim. Nós temos que ver o audiovisual como indústria. E ser respeitado nesse campo de atuação. Nós precisamos de políticas públicas. Precisamos do governo. Isso no mundo inteiro. A Cultura não sobrevive sem políticas pública. Não sobrevive sem fomento. Acabamos de passar por um momento que estamos considerando como atípico. Espero que a gente esteja virando a página agora e iniciando um novo ciclo produtivo para o audiovisual, com uma nova perspectiva de diálogo, de política, de acontecimento, mesmo. Essa estrutura que nós vivemos foi uma estrutura muito frágil. E o cinema representa em suas imagens, em todos os sentidos, sejam elas em movimento ou documentais, exatamente o nosso tempo histórico que estamos vivendo. O cinema é um reflexo da nossa sociedade. É fundamental. Nós precisamos fomentar a memória desse momento, do que a gente vai, inclusive, apresentar lá em Tiradentes, e ver o que as imagens estão nos dizendo. O Cinema é fundamental enquanto indústria. Enquanto parte de uma economia criativa. Enquanto parte da indústria do entretenimento, que é a que mais cresce no mundo. Uma indústria que não polui, que aproxima povos e continentes, que gera intercâmbio, negócios, formação. Mas precisamos de políticas públicas que sejam revigorantes. A proposta de abrir espaço na Mostra de Cinema de Tiradentes para esse diálogo é exatamente para cada um fazer a sua parte. A gente, enquanto profissional, cidadão. E poder dialogar de uma forma que venha gerar frutos. Essa é a grande expectativa. E acredito que isso vai acontecer.
Você citou o Fórum que será realizado na edição desse ano. Trata-se, de fato, de um evento que poderá nortear os planos para o audiovisual nesse momento de retomada.
Raquel – É um cenário muito importante porque já estaremos ali com 134 filmes de 19 estados brasileiros. Já tem uma representatividade. Abrimos, inclusive, para quem não poderá estar presencialmente a participação on line, também, para quem quiser colaborar. Serão mais de cinquenta profissionais que vão canalizar isso no documento. Essas contribuições estão vindo de todas as partes. Acreditamos que pode ser, realmente, um documento muito substancial para que tenhamos ali uma base de trabalho nessa reconstrução. Temos uma Secretaria do Patrimônio criada. Temos as entidades de guarda com quem vamos dialogar. Temos o Ibram que cuida de patrimônio. O Iphan, que cuida de patrimônio. O CTAV que, dentro desse plano do Ministério da Cultura, vai ser a entidade canalizadora. Temos, também, a Cinemateca Brasileira. Temos toda essa possibilidade de encontros e de troca.
Francis, no texto de divulgação da Mostra Aurora, você falou sobre não haver uma questão específica ou tendências a unir os filmes selecionados, mas, sim, experiências diferenciadas. Imagino que na escolha curatorial de sessões nas quais se casam curtas e longas, esse peso temático se faça mais presente. Como isso se dá em sessões individuais?
Francis – Nas mostras de curtas, como a Mostra Foco e a Mostra Panorama, esses casamentos para se compor uma sessão possuem uma costura diferente. Nessa costura, você vai lidar com filmes cuja energia diferente deles, na relação entre si, evidenciam alguma coisa dentro de um programa. No caso dos longas, isso é diferente. Porque o longa, a sessão dele tem somente ele. A gente pode pensar a sessão da Mostra Aurora como de filmes que, em alguma medida, tenham uma relação entre si. Mas eu acho que, nesse ano, como em todos os outros, a relação não somos nós necessariamente da curadoria que construímos. Até entendemos que esses filmes juntos podem dizer alguma coisa, podem revelar alguma coisa. Eles podem propor ou apontar para algum lado. Revelar uma certa complexidade da paisagem do cinema brasileiro em um outro ponto que talvez seja de diálogo. Mas isso não está, digamos, no horizonte curatorial. Temos que procurar filmes que conversem. Às vezes, quando ajudamos a compor uma mostra como a Mostra Temática, em que temos médias metragens, ela precisa passar pelo olhar dos programadores de curtas e de longas. E o média não se inscreve, mas a gente convida. E aí, de fato, a gente acaba compondo uma sessão com um média e um curta que tenham a ver, que consigam estabelecer alguma relação. Agora, nos longas, não necessariamente.
De fato, esse equilíbrio na apresentação das sessões vem tanto da seleção quanto da programação.
Francis – Sim. E há ainda uma questão mais de programação do que de curadoria: tem dias em que você tem dois filmes da Mostra Aurora, um em sequência do outro. Vamos imaginar que geralmente nas quintas e nas sextas-feiras, já indo para o final da Mostra. A gente nunca pega dois filmes barra pesada e bota um em sequência do outro. Ou termina o dia, na sexta-feira, com aquele filme mais árduo, denso, pesado. Modulamos a intensidade da programação. Se a gente começa com um filme mais árduo, mais denso, mais difícil, na sessão seguinte damos uma aliviada. Porque, geralmente, as pessoas assistem à sessão duas vezes. Então fazemos uma modulação de tons, mesmo. É algo que a programação faz. E sinto que esse ano, de fato, é claro que alguns filmes conversam esteticamente entre si. Alguns mais do que outros. Mas na programação de longas, como a gente já conhece os dias da mostra que eles vão passar, fazemos uma modulação de intensidades. Por exemplo, às vezes é um filme da Mostra Olhos Livres. ‘Qual filme colocamos aqui pra anteceder um filme da Paula Gaitán, por exemplo? Que filme vem aqui?’ Pode ser um filme que conversa, mas pode ser um contraste. Às vezes, o contraste é bom. Então, aí é uma questão de modular as intensidades em termos de um ponto de vista da programação. É claro que se conseguirmos estabelecer um diálogo entre duas propostas formais, pode ser muito interessante. Mas, às vezes, em termos de programação, um atrapalha o visionamento do outro. Você pega dois filmes que são muito parecidos e os coloca juntos na programação, sendo ambos longas metragens, um pode atrapalhar o visionamento do outro porque você pega duas energias muito próximas, dois projetos que são parecidos. Mas se você coloca dois filmes diferentes, que talvez tenham um outro ponto de diálogo, ou de intensidade, pode ser interessante. Por isso que eu penso que o trabalho de programação é tão importante quanto o de curadoria porque ele ajuda com que vejamos, de fato, os filmes em um universo com tantos e tantos filmes. A costura das linhas de força, ela fica, de fato, para o trabalho da curadoria. Ou seja, para a proposição conceitual, que vai estar em um livro, no catálogo, que vai estar no debate.
Uma pergunta um tanto clichê: como está essa expectativa para voltar ao Cine Tenda, para voltar aos debates, para voltar ao ambiente cinematográfico de Tiradentes após três anos?
Francis – Não, não é uma pergunta clichê, não. É uma boa pergunta. De fato, a gente entra esse ano com uma outra expectativa. Com outro humor. Lembro que em 2020, que foi a última mostra presencial, foi particularmente um ano muito feliz no conjunto de filmes. Eram muito fortes os filmes naquele ano. Mas eu sentia que pesava sobre nós um temor do que seria o futuro. Porque já tinha passado um ano do governo que havia assumido. E a gente viu o que aconteceu. O que seria dos próximos anos? E logo vem a pandemia, e seguimos para o on line. E isso acontece no outro ano, também. Aí, claro, como vários festivais, tivemos a resiliência de fazer essa transição para o on line, só que não é a mesma coisa. A expectativa, de fato, é que… (pausa) assim, eu tenho uma experiência de Tiradentes desde 2008, eu vou te falar… (pausa). Porque eu fui em 2008 para fazer uma cobertura para a Cinética. Era o segundo ano de curadoria do Cleber Eduardo. Foi o ano de lançamento da Mostra Aurora. E a minha experiência, desde então, depois entrando na equipe e seguindo esse tempo todo, se tornou uma experiência bastante ampla de Tiradentes. Só um ano que eu estive fora, que foi 2019. Mas foi importante porque fui com um filme. Eu fui como roteirista e ator de “Os Sonâmbulos” e lancei um livro. Ou seja, fui em outra perspectiva. Como parte da equipe de um filme e para lançar o livro. Durante todas as outras vezes, eu testemunhei essa coisa dos encontros e dos debates muito intensamente. E eu acho que muito se fez do cinema brasileiro a partir de encontros que eu vi ali, de conversas que vi ali. Algumas pessoas decidiram quais seriam as suas pesquisas. Algumas pessoas começaram ali cobrindo festivais. Outros começaram a escrever crítica. Vieram do júri jovem e foram fazer crítica. Dois realizadores se conheceram e tiveram um projeto em comum. Ou seja, esses encontros são muito fortes. E eu acho que o festival, tão importante quanto a exibição dos filmes, é o que esses filmes desenrolam. Quais são os desdobramentos de uma sessão? Tem o debate, mas tem outras coisas. Você fica em uma espécie de estado de exceção em que você fala sobre cinema durante oito dias. E vai voltar só depois de um ano. Então, a minha expectativa é muito grande. Porque é um momento em que o cinema brasileiro é tema.
Imagino que esse ano, não somente por representar um retorno ao formato presencial, mas pela realização do Fórum, seja um momento ainda mais especial.
Francis – Verdade. Esse ano mais ainda por causa do Fórum. Esse ano você tem cineastas que vão lançar seus filmes. Aqueles que já lançaram e que vão ter um outro diálogo sobre seus filmes que já foram lançados. Você tem um público que vai, inclusive gente que nunca foi. Estudantes que entraram nas universidades de cinema há pouco tempo. Você vai ter gestores públicos. A ideia do Fórum é chamar pesquisadores, cineastas, pessoas que fazem parte de entidades de classe. Pessoas ligadas à restauração e à educação. Ou seja, você vai ter presente lá em diálogo muita gente que pensa e que faz cinema brasileiro nos seus mais variados setores. Na complexidade do campo que é o cinema brasileiro. E o Fórum é para pensar, de fato, o presente e o futuro. A partir do que vimos nos últimos anos. A partir de experiências mais anteriores ainda dos outros governos que podemos conservar ou que precisamos superar ou redimensionar. Discutir políticas públicas. O futuro do ponto de vista material e político do cinema. Vai ter gente, também, com seus filmes. Público, críticos, jornalistas que estarão testemunhando e vendo isso. Escrevendo sobre isso. Então, a minha expectativa é porque aí é o Cinema de fato. Há várias maneiras de se fazer cinema. E fazer cinema não é só fazer filmes. Fazer cinema é fazer isso. E o que gera mais entusiasmo em um processo de curadoria, para mim, é você selecionar os filmes. Fazer curadoria dos filmes, claro, mas, também, você fazer a curadoria de gente. Porque vão pessoas para debater. No Fórum, a ideia é que o poder público, o novo governo, esteja lá representado. O Ministério da Cultura e a Secretaria do Audiovisual. Então, é muita coisa para acontecer. É muito filme que vai ser lançado, que vai vir à luz agora. Alguns desses filmes, sabemos que nos acompanharão por um bom tempo, sua repercussão. Muita gente vai voltar a eles nos próximos anos, alguns serão lançados, outros não. Ou seja, é colocar as coisas em movimento. E eu acho que no on line, uma parte desse movimento foi interrompido. Todo mundo que vai estar lá em Tiradentes, sendo os críticos que estarão lá, precisam elaborar critérios para lidar com os filmes, inclusive pensando políticas públicas. Porque quando você pensa políticas públicas, elas têm que ser pensadas a partir da experiência. Claro que é a partir de demandas do mercado, demandas da infraestrutura ou da superestrutura do cinema brasileiro, mas eu acho que a experiência concreta de realizadores e realizadoras elas devem ser norteadoras de uma política pública. Como que você faz filmes mais baratos? Como que você faz um filme com um modo de produção que não é esse modo de produção que concentra dinheiro no Rio-SP?
Glenda Nicácio e Ary Rosa são os cineastas homenageados esse ano. Com uma carreira que se iniciou há alguns anos a partir do curso de Cinema da UFRB, em Cachoeira – BA, os dois criaram uma filmografia em um dos mais difíceis momentos do audiovisual brasileiro. Imagino que essa resiliência tenha peso na escolha, principalmente com o tema Cinema Mutirão na Mostra desse ano.
Francis – Dá pra pensar muita coisa a partir dessa homenagem ao Ary e Glenda. Tivemos a presença deles nos últimos anos na Mostra Olhos Livres e voltar com eles na homenagem desse ano é importante. O tema é Cinema Mutirão e, em alguma medida, eles são um caso exemplar disso. Um caso exemplar de muita coisa. São dois cineastas que nasceram em Minas, mas que se fizeram lá em Cachoeira, na Bahia, por causa de uma universidade pública fundada no governo Lula. Um novo curso de cinema que mostra o deslocamento, também, de pólos de produção cinematográfica e criativos para outros lugares que não é mais a região Sudeste, como foi nos anos 1990, por exemplo. Ary e Glenda são filhos disso. Ao mesmo tempo, a dupla tem um modo de produção. E nós tivemos a oportunidade de ouvi-los falar nos últimos anos, nos últimos debates, que esse modo de produção é de responsabilidade criativa de um coletivo. Por exemplo, o fotógrafo Thacle (de Souza) e as atrizes falando coisas que são impressionantes como criadores, mesmo. Eles estão com um timão nas mãos na hora de dirigir. Ary e Glenda, claro, se apresentam como diretor e diretora, mas, também, eles representam essa coletividade que se dá nesse processo da Rosza Filmes. E para nós, agora, isso é fundamental. São cineastas que lançaram seu primeiro filme em 2017 (N.E. “Café com Canela”) e fazem vários filmes até então. E passaram o período mais duro do cinema brasileiro nas últimas três décadas. E mesmo assim, com resiliência, conseguiram fazer ainda filmes. Isso é um fenômeno. Alguns foram financiados por políticas públicas e outros não. Ainda que não seja o ideal você fazer filmes sem dinheiro, foi o que foi possível. E fizeram coisas absolutamente formidáveis que particularmente me fascinam. Para mim, a dupla e a Rosza Filmes (N.E. Produtora de Ary Rosa e Glenda Nicácio) são um dos grandes eventos do cinema brasileiro das últimas três décadas. E eu acredito que homenageados esse ano, eles são um caso exemplar do que é o cinema brasileiro e como ele se faz na sua resiliência. E é, também, um farol do futuro. Ao mesmo tempo, a gente vai ter a oportunidade de reconhecer isso no presente, enquanto eles estão produzindo, realizando uma coisa atrás da outra. Acho que é importante reconhecer isso. Homenagem, geralmente, é visto como a alguém que já tem uma obra de décadas. É interessante reconhecer isso, também, mas no caso, reconhecer essa a roda que está girando aí, porque ela é inspiradora.
Cinema Mutirão é o tema da Mostra desse ano. Algo que simboliza de modo ideal a vontade de se fazer cinema em um cenário desmembrado por um período de governo que não priorizava essa indústria.
Francis – Mutirão existe quando algo, digamos, socialmente, não funciona para a coletividade. Então, você vai construir um bairro com casas em mutirão quando aquilo é uma demanda, mas o poder público não está respondendo. As pessoas se unem e fazem uma casa, constroem bases, puxam fios, encanamento, etc. Então, o mutirão existe em um contexto de necessidade. Não é o ideal, mas é o que é possível. E nesse possível a gente aprende um outro modo de ser enquanto sociedade. Uma outra maneira de exercer um cuidado, por exemplo, no caso de um mutirão de casas, com a comunidade. Ninguém está sozinho. As pessoas fazem as coisas em conjunto. Existe um modo de ser enquanto sociedade, e é também um modo de fazer política. Então, quando você pensa em cinema mutirão, a gente está pensando nessa resiliência que se dá em um contexto de escassez. Ou seja, as pessoas não têm muita grana para fazer filmes, se juntam para fazer, mas há uma coisa interessante na ideia de cinema mutirão, também: as responsabilidades criativas também são compartilhadas. Essa coisa da figura do diretor-autor, isso está superado do ponto de vista do artista pessoal que expressa sua subjetividade. Mas, a gente pode pensar na Rosza Filmes como uma espécie de sistema. Ou um trabalho de um grupo de filmes de um realizador como um sistema em que você trabalha coletivamente. Claro que vai levar o nome de uma diretora ou um diretor. O cinema do Adirley Queiroz, o cinema do Lincoln Pericles. Mas a gente sabe que eles não andam sozinhos e não fazem sozinhos. Quando eu ouvi do Thacle, em um debate do “Ilha”, que ele movia a câmera de acordo com o orixá de cabeça de cada personagem, aquilo foi revelador. Isso veio do fotógrafo. Então, assim, eu acho que o mutirão também é um modo de a gente pensar essas responsabilidades criativas, mas, também, é um modo de pensar uma produção cinematográfica que está menos ligada ao fracionamento da equipe e ao isolamento das funções que o cinema industrial impôs.
Streaming e produção em escala industrial
Francis – Você vai em sets, por exemplo, esses streamings em São Paulo, é um modo industrial. Você precisa responder rápido. E cada pessoa responde pelo seu setor. E muitas vezes nem se conhecem. Cada vez mais o cinema tem se feito em um outro tempo. Um tempo, às vezes, mais longo que é a própria equipe que vai dizer que tempo que é esse, que duração de produção que é essa e como essas responsabilidades criativas são compartilhadas. Como que essas coisas funcionam. Então, a ideia de cinema mutirão vem disso, mas vem, também, de se criar, de se propor, de erguer bases novas e muitas vezes reforçar aquelas que estão frágeis. É preciso pensar no aspecto mais amplo do cinema mutirão para além da realização de filmes, é pensar, hoje, como que a gente junta forças a partir de diferenças? Porque as diferenças elas podem muitas vezes criar caminhos muito distintos, como ajudar a compor uma coisa nova que precisa de olhares e de competências que são distintas. A diferença é importante. No mutirão, alguém sabe fazer encanamento, outro é eletricista, outro tem experiência de pedreiro. Outra pessoa sabe fazer comida. Quando a gente pensa em cinema mutirão, que é essa relação de diferenças, você vai pensar juntamente em como nós erguemos bases novas para o cinema brasileiro a partir dessas tentativas que tivemos nos últimos anos de destruição de um campo. Como que a gente reforça as antigas? Como a gente cria políticas públicas novas? Como melhoramos as antigas? Ou seja, isso vai se fazer na conversa. Isso vai se fazer coletivamente. É claro que a gente chama pra conversar aqueles que são possíveis de se conversar. Não vou chamar um especulador da bolsa, interessando em investir em cinema, para falar de política pública (risos). São só aqueles que tem um ponto em comum. E que permita que essa interlocução entre as diferenças possa acontecer. O cinema mutirão vem muito nesse sentido. Ele fala da experiência do cinema brasileiro e dessas mudanças nos modos de se fazer, nos modos criativos. Mas fala, também, a nossa necessidade atual e urgente de repensar a sobrevivência material do cinema brasileiro que passa por políticas públicas e que passa por um pensamento de qual vai ser a economia possível do cinema brasileiro. E a necessária. A possível agora e a necessária. A concentração que a gente vê, por exemplo, em Rio e São Paulo, ou a concentração de mercado, mesmo. Porque você tem o streaming, por exemplo. Ele concentrou a economia, digamos, em players, em grandes players. E como ficam os médios e os pequenos que não estão fazendo streaming? O audiovisual vai ter que olhar para uma cadeia complexa. Não adianta achar que vai reconstruir o audiovisual a partir do streaming. A gente pode até reconstruir uma parte do setor profissional, mas vai ter que repensar tudo isso. Porque não só nesses anos de Bolsonaro, mas de pandemia, os streamings ganharam um papel muito importante no sentido dessa concentração e de um campo. Mas a gente vai ter que pensar em taxação, em regulação, mil coisas. E de reconstruir o audiovisual para além e para aquém desse mercado de streaming.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.