texto por Gabriel Pinheiro
“O jardineiro noturno me disse que o homem que inventou os fertilizantes de nitrogênio modernos – um químico alemão chamado Fritz Haber – também foi o primeiro a criar uma arma de destruição em massa, a saber, cloro gasoso, que despejou nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial”. As conversas travadas com o jardineiro noturno – descritas no epílogo de “Quando deixamos de entender o mundo” (2022) – parecem ser o pontapé para o trabalho que o chileno Benjamín Labatut desenvolve nas outras quatro instigantes narrativas do conjunto. Um mergulho em queda-livre em algumas das mentes mais fascinantes do século XX, “Quando deixamos de entender o mundo” tem tradução de Paloma Vidal e lançamento pela Todavia Livros.
Nos vemos diante de um trabalho de difícil classificação, caminhando entre a ficção e a não-ficção, entre o romance e o ensaio. Enquanto na primeira narrativa do livro, Labatut nos diz, só há um parágrafo ficcional, a ficção aumenta gradativamente nos textos seguintes. O escritor costura as biografias de alguns dos cientistas mais geniais que habitaram o planeta, mergulhando em suas relações e disputas ferrenhas, suas glórias e demônios internos. Na medida em que avançamos no íntimo de alguns desses gênios – gesto permitido pela ficção e seu poder de fabulação – vamos descortinando o mundo, o século no qual suas ideias e teorias, paradoxos e contradições, ganharam corpo, onde seus medos e anseios foram confirmados ou desmistificados por teorias vindouras.
É interessante e assombroso notar como o avanço da ciência está intrinsecamente ligado ao avanço da nossa capacidade de fazer o mal. Um pigmento azul – o primeiro pigmento sintético moderno, azul da Prússia – dá origem ao veneno responsável por genocídios futuros. Uma bela cor azulada pode ser vista, até hoje, em alguns dos tijolos do que um dia foi o campo de concentração de Auschwitz. Um cientista é convocado pelo governo nazista a estudar a viabilidade de desenvolverem uma bomba nuclear: “Depois de dois anos, concluiu que uma arma desse tipo estava para além do alcance da Alemanha – ou de qualquer um de seus inimigos –, pelo menos durante a guerra, e mal conseguiu acreditar na sua explosão sobre o céu de Hiroshima”.
O fim parece sempre rondar as narrativas de “Quando deixamos de entender o mundo”. Seja o fim do mundo como nos acostumamos a habitar ou o seu fim definitivo. Encontramos homens geniais que sucumbem ao delírio devido àquilo que formularam e descobriram. A genialidade e a loucura parecem andar lado a lado, separadas por um passo em falso. Nas trincheiras da Grande Guerra, “entre explosões de morteiro e nuvens de gás venenoso”, um cientista resolve as equações da teoria da relatividade geral de Einstein. Assombrado pelo resultado obtido, que “descrevia perfeitamente a maneira como a massa de uma estrela deforma o espaço e o tempo ao seu redor”, ele escreve para a esposa, pouco antes de morrer: “Não sei nomear nem definir mas possui uma força incontrolável e obscurece todos os meus pensamentos. É um vazio sem forma nem dimensões, uma sombra que não consigo ver mas que sinto com toda a minha alma”.
Numa escrita que me remeteu muito ao trabalho do Roberto Bolano – especialmente “A literatura nazista na América” e suas biografias de escritores inventados que flertaram com o mal – um dos grandes méritos de Benjamín me parece ser, em certa medida, tornar palpável para leigos teorias e universos que parecem tão abstratos, tão difíceis de serem alcançados. E qual a surpresa ao ver que o que assombra diversas das figuras retratadas pelo autor é perceber que as ciências exatas estudadas por eles não são, digamos, tão exatas assim? Que é preciso certo grau de abstração para entender o mundo, macro ou microscópico. Engenhoso e difícil de largar, Benjamín Labatut nos entrega um daqueles livros brilhantes.
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– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel.