MEU DISCO FAVORITO DE 2022 #2
“Indigo”, RM
escolha de Ana Clara Matta
Artista – RM
Álbum – “Indigo”
Lançamento – 02/12/2022
Selo – Big Hit Music
Ouça: Spotify / Youtube
“De acordo com a Humanidade de Platão
É parte da essência humana buscar verdade, bondade e beleza
É a sinceridade na verdade, a bondade moral, e a beleza
Mas na minha opinião, você tem tudo quando você tem a verdade”
Yun Hyongkeun
“I wanna be a human before I do some art”
Kim Namjoon
Nesse momento, 18/12/2022, às 17h24, se você entrar na página de resenhas de novos álbuns do site Pitchfork, considerado (ainda) por muitos o maior e mais relevante portal de crítica musical contemporâneo, você não encontrará um disco recentemente lançado de um dos rappers mais famosos da atual geração, com participações especiais de artistas internacionalmente conhecidos e respeitados como Erykah Badu e Anderson Paak, ambos premiados recentemente com títulos como “Best New Record” pelo mesmo site.
Se você entra, neste mesmo instante, na Metacritic, o mesmo disco possui apenas 5 resenhas em veículos de impacto no mundo da crítica musical – mesmo com um 100 efusivo na antigamente trendsetter NME.
Peculiar, não?
A questão é – o rapper em questão é Kim Namjoon, que trabalha sob a alcunha de RM e é, como você provavelmente já sabe, líder da boyband de maior sucesso do século XXI, o BTS. Os fãs o veem como um gênio. Os críticos, como um produto. E na abertura de seu primeiro álbum completo como artista solo, ele mostra que antes de qualquer coisa, está em busca de ser visto como um ser humano.
RM abre “Indigo” com “Yun”, dueto com Erykah Badu, construído como uma homenagem ao pintor abstrato sul-coreano Yun Hyongkeun. Em seu refrão, o rapper replica o pensamento expresso pelo pintor de que é necessário ser um ser humano antes de fazer arte – e a impressão que fica é que a escolha verbal mais importante de Yun é a opção por falar sobre o “fazer arte”, e não sobre o “ser artista”.
A diferença entre quem cozinha e um cozinheiro é de natureza capitalista – um emprego, um ofício, ganhar dinheiro com sua produção. O mesmo para quem planta e um produtor, quem dirige e um motorista. Por outro lado, a lógica na arte se inverte – não só ganhar dinheiro com arte não te torna aos olhos da sociedade (e aos seus próprios olhos) um artista, como o sucesso parece golpear sua imagem como artista e te tornar um mero vendedor de um produto “artístico”. O astro pop pode fazer arte – mas a crítica o vê cada vez menos como um artista – e está tudo bem, porque Kim Namjoon só quer, em suas próprias palavras e nas palavras de seu mestre Yun, fazer arte. E “Indigo” definitivamente é arte.
As letras de “Indigo”, escritas no período de 2019 até 2022, auge do sucesso internacional do BTS e período marcado para sempre pela pandemia do Covid-19, são pessoais mas extremamente abstratas – não somente como uma forma de busca de privacidade perante um escrutínio constante da mídia, do país natal e da fandom, mas também por uma proposta estética – a de fazer um disco como a pintura abstrata de Yun Hyongkeun, um estudo da cor azul (e da tristeza que ela representa) em 10 diferentes tons.
Essas canções acompanham uma noite turbulenta na vida de um homem de 20 e tantos anos, do entusiasmo das batidas de funk em “Still Life”, passando pelas sombras de obsessão noturna de “Change pt 2”, chegando até aquela paz que só se conhece em um táxi cruzando a cidade numa madrugada com o buzz de alguns drinks transformando as luzes pontuais em linhas na janela, cena que parece ganhar forma na dupla “Lonely” e “Hectic”.
Os gêneros musicais não se repetem, mas se existe algo que alinhava cada instante de “Indigo” é a identidade musical que a geração Robert Glasper no rap, com pitadas fortes de jazz, traz no DNA. Em cada canção esse jazz rap se une com um parceiro diferente, seja ele literal na forma de cada participação especial que o disco traz (que incluem também participações de artistas lendários do país de RM como Park Jiyoon e Youjeen), seja ele em forma de influência musical. Enquanto “Change pt. 2” flerta com o industrial de um Nine Inch Nails, “All Day”, com a participação do herói musical de Namjoon, Tablo, do icônico trio de hip hop sul coreano Epik High, pulsa na batida do rap dos anos 90.
“Forg_tful”, produzida pelo colaborador constante de RM, John Eun, funciona como parênteses nessa jornada pelo rap de NAS e Kendrick, escolhendo um folk naturalista de produção extremamente lo-fi, incorporando na paisagem sonora ruídos do estúdio, que deve em mesma medida ao folk coreano do pós-ditadura a momentos da música americana como Elliot Smith e Bon Iver (cujas influências retornam no processamento vocal de “Closer”).
Este é o momento em que eu abro a prisão da forma clássica de escrita da crítica musical. Adeus, terceira pessoa. Ponderando sobre o disco que eu escolheria para essa série, fiquei em dúvida entre três álbuns que me marcaram em mesma medida em 2022 – este, “Blue Rev”, do Alvvays, e “Renaissance”, de Beyoncé – e pensei se queria mesmo escrever sobre nomes da música coreana em dois anos seguidos para o Scream and Yell e arriscar minha credibilidade na bolha da música no BR como apenas uma “fã”.
Ontem, durante uma noite mal dormida em que a luz de um Kindle próximo demais do rosto no mais absoluto escuro bronzeava minha pele, cheguei a uma parte do livro “Status and Culture”, de W. David Marx, que descreve o papel do crítico – e questiona sobre se existe verdade na imparcialidade que tanto pregamos, se na verdade não apenas trocamos de viés, deixando para trás o da nossa apreciação pessoal do objeto pelos vieses de um paradigma de bom gosto da sociedade em que estamos envolvidos, normalmente um paradigma que nos diz que o jovem está sempre errado pois não tem a experiência do tempo (mesmo quando os jovens constantemente se adiantam em perceber tendências na arte), um paradigma que nos diz que a mulher sempre critica apenas com o coração e com os hormônios, um paradigma que favorece sempre as mesmas fatias da população, e que deixa discos incríveis como Indigo de fora da maior parte dos sites de música.
Então, entre duas formas de ser parcial, entre scylla e charybdis, escolhi meu próprio viés.
Eu quero ser humana antes de fazer crítica.
– Ana Clara Matta (@_ana_c) é editora do Ovo de Fantasma e escreve para o Scream & Yell desde 2016.