entrevista por Leonardo Vinhas
O Muntchako está de volta – mas nada está como era antes. A música, a formação, a dinâmica interna e a maneira de enxergar o próprio futuro mudaram significativamente. O Scream & Yell foi conversar com o percussionista Macaxeira Acioli para saber o que está rolando.
Na verdade, tudo meio que se entrelaça: o trio radicado em Brasília agregou dois músicos à sua formação, tornando-se um quinteto para dar conta da riqueza sonora e do punch do vindouro segundo disco… Mas essa formação é temporária, e o Muntchako pode vir a se tornar um duo
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E a tal complexidade musical da qual falávamos? Ela está presente em “Fela Dum Gonzaga”, disco com lançamento previsto para 2023 e que pretende mostrar o quanto o nigeriano Fela Kuti e o brasileiro Luiz Gonzaga têm em comum, uma ótica exibida por meio das lentes da proposta estética do Muntchako.
Dois singles já permitem antecipar a sonoridade do álbum: “Waka Morena” e “Pagode Russo” trazem uma estranha mistura de harmonias do Nordeste brasileiro e do Oeste africano, entregando uma sonoridade que fica no meio termo entre o desafiador e o dançante.
Essa mistura será colocada à prova em palcos de Belo Horizonte, Natal e João Pessoa ainda em novembro de 2022, e o que virá depois, nem mesmo eles sabem.
Em conversa franca, na qual se entrevê tanto pesar como esperança, Macaxeira Acioli dá a letra sobre o presente e o incerto futuro do Muntchako. A única garantia que ele dá é que, seja da forma que for, a banda e a resistência seguem em frente.
Depois de um primeiro álbum bastante plural, esse novo virá com uma proposta musical bem específica, já expressa no nome do disco. O que originou esse mash up conceitual?
Tudo começou de uma brincadeira em estúdio, levada por Barata: “Por que a gente não mistura Fela Kuti e Gonzagão? E aí a gente chama de Fela dum Gonzaga”. Como no Muntchako toda brincadeira vira algo sério, dito e feito: pouco tempo depois a gente tava imerso matutando as misturas juntamente com Juninho Ferreira na sanfona e Esdras Nogueira no sax. A gente conversava muito de, no próximo trabalho, puxar outros músicos para misturar as tintas e foi muito massa com os dois, sinergia pura. E mexer no baú de Fela e Gonzagão é uma responsa danada, a gente não queria estar com os olhos voltados só para o baião ou só para o afrobeat, por isso a necessidade de borrar tudo isso. Eles estão ali, você sente mas não é na cara. Além de toda a mistura das bases eletrônicas sólidas e os instrumentos orgânicos costurando… Se fazer música eletrônica fosse fácil, todo mundo faria, né? Tem que ter um alicerce bem feito pro negócio ficar de pé. O suor pinga, mas a gente tá feliz pra caralho!
Como você falou, essa nova proposta também acabou trazendo instrumentos como banjo e sanfona, que não entravam nos arranjos anteriores. Além disso, as faixas já lançadas contam com a participação de vários músicos adicionais. Já se sabe que a turnê conta com a participação do Esdras Nogueira (sax barítono) e Juninho Ferreira (sanfona). Depois de tanto tempo como trio, como está sendo essa nova dinâmica nos palcos? E considerando que o Muntchako usa muitos stems, é possível pensar em participações de outros convidados nos próximos shows?
Sem sombra de dúvida, foi um projeto feito pra gente arrancar a tinta da trave. A ideia é misturar mesmo, inicialmente com esses dois grandes amigos, Fofinha (Esdras) e Jamaika (Juninho), e também com outros músicos por onde vamos passar. Também estão pintando algumas participações nos próximos singles, mas isso é mais pra frente. A gente tava acostumado com três pessoas no palco, quando tudo é mais fácil: marcar ensaio, datas de show, logística de viagem. Só não dava dentro de um fusquinha porque a gente tem muita tralha eletrônica. Ao juntar mais dois músicos, somando cinco pessoas, a logística começa a ficar complicada. A gente tava mal acostumado com só os três mais a equipe técnica. Mas ao mesmo tempo que dá uma complicadinha na logística, o bolo fica mais recheado, né? E o show tá porrada, tá potente, tá malemolente, tamo feliz. Máximo respeito de misturas as tintas dessas duas grandes entidades da música universal.
Os integrantes do Muntchako sempre foram muito envolvidos não apenas com música, mas com a agitação cultural, promovendo eventos, produzindo outros artistas. Então é de se imaginar que a pandemia impactou vocês em uma escala muito maior. Como foi atravessar esse período sombrio, e como está sendo essa retomada de atividades?
A gente tava em um ótimo momento antes da pandemia: tinha acabado de fazer uma tour na Europa e Colômbia, e fizemos pela primeira vez só Espanha, além de transitar pelo Brasil. Quando menos esperávamos algum problema, BUM, bombaaa pandêmica! Saímos da estrada para o acostamento, e naturalmente as relações ficaram distantes devido a situação de lockdown e isolamento. Começamos a produzir o projeto Fela dum Gonzaga antes da pandemia, mas teve que ser paralisado devido ao momento delicado, e retomamos quando as coisas estavam mais tranquilas. Ainda assim, a gente produziu lá no meu cafofo, todos com máscara, no meio de toda essa doideira, então boa parte das bases do Fela dum Gonzaga nasceram no meio de uma kitnet e os vizinhos às vezes buzinando enchendo o saco pelo barulho das gravinas. Muita coisa que era gravação de pré-produção acabou ficando pra valer, nem tivemos que regravar lá no nosso QG, no Zarabatana Records, estúdio de Samuquinha da Baêa. Reconheço que a retomada tá bem difícil, as bandas pequenas / emergentes tiveram que voltar 20 casas, e as dificuldades permanecem diante da situação econômica e de mercado que encontramos, sem falar da política e toda essa onda sombria que ainda estamos atravessamos. Mas logo logo é tempo de reviravolta (nota: a entrevista foi feita no dia 27 de outubro), o Brasil precisa voltar a pulsar na energia que merece. Hoje, só os grandes nomes dos algoritmos conseguem se manter na estrada, e nos festivais por onde fui ultimamente tenho visto uma mesmice só, os lines são verdadeiros Ctrl C + Ctrl V, e a cena tá sem kickar coisa nova.
E como fica o Muntchako nessa entropia?
Estamos em um momento de acertar os ponteiros das expectativas individuais e coletivas. Talvez em 2023 a gente siga, só eu e Samuquinha, em um formato mais enxuto, mais eletrônico, um duo. Tudo indica que Baratinha seguirá por outros rumos, e a gente tá mantendo esses últimos shows marcados para rever como ficaremos. Essa tal da pandemia não foi mole pra ninguém, mexendo na espinha dorsal de todo mundo. Barata é agitador cultural da cidade, um dos cabeças do coletivo Criolina, que antes da pandemia estava em um ótimo momento, com a Cervejaria Criolina, muita coisa acontecendo por lá, cada vez mais a casa estava crescendo e solidificando sua programação, mas no meio de tudo isso foi difícil de segurar a pema, então muitas e muitas mudanças individuais, coletivas e profissionais. Mas tá massa se reinventar, a gente tem dado risadas das dificuldades. Tamo firme que nem prego em areia, mas sinto que 2023 as coisas irão melhorar e a gente volta a dar cipoada por ai. Tamo na instiga de voltar pra estrada!. Mas o que importa é que estamos bem, crescendo com as dificuldades, e o tempo tá curando as mazelas deixadas por esse tempo sombrio, e politicamente consigo ver uma luz de led no fim do túnel. Tamo retomando, o povo precisa ocupar, precisamos pulsar para modificar a energia densa que paira sobre o Brasil.
Brasília já passou por uma lei do silêncio arbitrária (que ainda vigora), pelo desaparecimento de casas noturnas, e agora vive um momento de abraçar o conservadorismo rasteiro e intolerante. A arte autoral está fadada a ser sempre resistência no DF, ou dá para mudar esse cenário?
Apesar de Brasília trazer os traços modernos, ainda respira muito o tradicional e conservador. Fruto do funcionalismo público careta que cerca os quatro cantos do Plano Piloto e acaba refletindo na cena e no pulso da cidade. A lei do silêncio engessa as atividades culturais e silencia a vida noturna da cidade. Infelizmente essa é a leitura da lei orgânica do Plano Piloto, devido às proximidades das quadras residenciais e comerciais. Mas temos uma vida cultural intensa de resistência que pulsa no CONIC, no Setor de Diversões Norte, por exemplo, que é um dos poucos locais zoneados no plano diretor da capital abertos a atividades noturnas. Muita coisa tá acontecendo por lá. E essa mudança é precisa: em pleno século 21 Brasília elegeu uma figura fundamentalista de extrema direita como Damares [Alves, eleita senadora pelo DF]. Isso é trágico. Na verdade, antes da pandemia Brasília tava borbulhando, muita coisa acontecendo. Estava mais malemolente, e isso reflete visivelmente nas relações, eu meu meu ver., Mas depois de toda essa maré pandêmica, a cidade voltou algumas casas no tabuleiro, e agora é respirar fundo e jogar o dado de volta. Mas como cena, observo que Brasília tem que se entender, se conhecer, se curtir. Não existe um circuito, e a união tá longe do básico. São muito galhos para olhar e todo mundo indo por um caminho… Rola muita grana para eventos em Brasília, o FAC (Fundo de Apoio à Cultura) é um grande fomento à Cultura da cidade, talvez o maior fundo per capita do Brasil. Mas ainda existe uma mentalidade “colônia” da coisa, uma valorização das pessoas que vem de fora e quem tá roendo o osso no miolo não tem o merecimento e respeito, saca? E essas pessoas e profissionais são nossos próprios amigos e conhecidos. Instituições e festivais com aporte financeiro de todos os lados, principalmente governamentais pagando mixaria para os projetos que estão em circulação e evidência na cidade. Criou-se uma tabela imaginária que está congelada há anos: é triste receber uma ligação nos dias de hoje oferecendo cachês de R$ 2.000,00, R$ 4.000,00 para toda uma equipe técnica de profissionais que dão duro, é lamentável. Como o Muntchako sempre se posicionou frente a essas questões, acabou ficando na geladeira por não topar o que o mercado estipula. Na verdade, isso é um grande papo de buteco, o que tá sendo comentado aqui é a primeira casca, mas é importante a provocação para o diálogo. A resistência continua!
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) é produtor e assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell. A foto que abre o texto é de Letícia de Maceno