Faixa a Faixa: Tulipa Ruiz e Gustavo Ruiz aprofundam o olhar sobre “Habilidades Extraordinárias”, o novo álbum da artista

introdução por Renan Guerra
faixa a faixa por Gustavo Ruiz e Tulipa Ruiz

Tulipa Ruiz é uma das artistas mais importantes e interessantes de sua geração. Enquanto muitos seguem um eterno pastiche de uma MPB passada, Tulipa sempre soube amalgamar suas referências em função de algo novo. Ela consegue, como poucos, reverenciar dos tropicalistas aos malditos, passando pela Vanguarda Paulista, sem nunca soar presa a esse passado. Ela é porque eles existiram, mas não só, pois é artista atenta ao seu tempo, compositora inteligente e cantora de voz única, que sabe usar isso ao seu favor, tecendo canções que, com olhar pop e complexo, versam sobre o agora.

Por isso mesmo, qualquer movimento seu gera expectativas, ainda mais se considerarmos que ela estava sem lançar um álbum com repertório inteiramente inédito desde 2015, com “Dancê”. Isso não significa que ela ficou parada nesse entremeio: lançou o disco “Tu”, gravou e fez turnê ao lado de João Donato, lançou um disco de remixes de seu álbum de estreia “Efêmera” e ainda compôs para diferentes artistas, incluíndo Elza Soares. “Habilidades Extraordinárias” surgiu como uma surpresa para esse 2022: rapidamente Tulipa liberou a informação sobre esse lançamento e cá estamos nós já a ouvir essas novas 11 canções.

“Habilidades Extraordinárias” ganhou seu título de uma interessante história de Tulipa que vale ser lida na íntegra:

“Na última vez em que eu e meu irmão e parceiro musical Gustavo fomos à embaixada estadunidense para tirar mais um visto de trabalho, desta vez para tocar no Lincoln Center nova-iorquino, o cônsul cumpria a lista de perguntas protocolares durante a entrevista quando uma delas quebrou a modorra. De repente, ele perguntou se tínhamos alguma habilidade extraordinária. Como assim, habilidade extraordinária? Praticar Parkour? Trapézio? Voar? Achei bizarro e, meio sem graça, meio sem habilidade, respondi não. Gustavo foi mais sagaz: sim, temos. Ganhamos um Latin Grammy. Ouviu-se um ‘Whaaaaaaaaat?’ demorado, seguido por um silêncio no ambiente. O cônsul ficou passado no ferro de Iansã. ‘Grammy winners? OMG, con-gra-tu-la-tions!’. E carimbou nosso visto na hora, perguntou nossos nomes artísticos, vibrou. Mais tarde fiquei sabendo que existe um tipo de visto de trabalho para os Estados Unidos facilitado aos indivíduos que alcançaram a excelência nas suas áreas de atuação, seja na ciência, nas artes, educação, negócios ou atletismo. O requerente tem de cumprir uma longa lista de critérios ou ser ganhador de um prêmio com reconhecimento internacional, como um Nobel ou um Grammy.

Apreciei a chancela. Afinal, nós artistas temos o papel de Embaixadores da nossa cultura e, sobretudo agora, a responsabilidade de contar ao mundo o que se passa aqui, onde somos atacados por fazer arte em nosso próprio país. Foi importante recebermos esse reconhecimento de nossa excelência, pois fazer música no Brasil de hoje configura, sim, uma habilidade extraordinária. Ser uma mulher autora, ganhadora de um prêmio dominado pela indústria em um país onde a maior parte da arrecadação de direito autoral privilegia os homens é, sim, uma habilidade extraordinária. Sermos autores e produtores de um dos únicos discos brasileiros independentes a ganhar um Grammy, também configura. À medida que fui incorporando a expressão ao meu dia a dia, passei a enxergá-la em muitos lugares e intuí que ela daria nome ao meu próximo disco. Com tanta coisa acontecendo dentro e fora da gente, na sociedade, com a pandemia, com o jabá́ do algoritmo, com os devotos do fascismo, com tanto baixo astral no planeta, passei a reconhecer como habilidades extraordinárias coisas que antes via como gestos cotidianos, absolutamente normais. Como levantar da cama ou conseguir dormir, como sair e voltar para casa sozinha e em paz sendo uma mulher. Viver e resistir neste contemporâneo é, sim, mais uma habilidade extraordinária”, finaliza Tulipa.

Por tudo isso, Tulipa classifica “Habilidade Extraordinárias” como “um disco pós-confinamento, com os hematomas e as dores decorrentes de tanta violência social, política, ambiental, nos relacionamentos, trabalhista. Um disco que tenta expurgar o agora, cultivando a coragem em meio a tanta falta de estímulo”. E isso tudo aparece de forma pulsante em canções que versam de forma poética sobre o nosso tempo e que pedem a nossa audição atenta. Para que você mergulhe mais fundo nesse disco, vale conferir um pouco mais sobre cada canção a partir das palavras de Tulipa Ruiz e de Gustavo Ruiz, seu irmão, parceiro musical e produtor do disco (bastante elogiado por Mauricio Pereira em uma entrevista neste site). Mergulhe!

Faixa a Faixa por Tulipa Ruiz e Gustavo Ruiz

01) “Samaúma”
Tulipa: Samaúma é o nome de uma árvore também conhecida na Amazônia como sumaúma e Árvore da Vida, por conta de suas raízes tubulares que rebentam em determinadas épocas do ano, irrigando toda a área e a vida que a circunda. A música fala da natureza de uma mulher que se relaciona com a natureza das coisas e dos mistérios de maneira consciente, inconsciente, orgástica e respeitosa. A letra, que surgiu no processo de criação de um livro que engavetei, foi musicada por mim e pelo Gustavo e escolhida para ser o single e abrir o disco.

Gustavo: Decidimos gravar o disco na fita. Usamos um gravador Tascam de 8 canais, em 1⁄2 polegada. “Samaúma” foi a primeira música gravada e norteou a sonoridade do disco. Foi por Samaúma que nosso engenheiro de som, Éric Yoshino, soube temperar a entrada de sinal para comprimir mais ou menos no tape, de acordo com o arranjo. Banda numa sala e Tulipa em outra gravando em um microfone valvulado. As vozes principais foram gravadas ao vivo, um processo novo que nos deixou muito satisfeitos. Em som, mas principalmente em performance. Gravamos as bases em São Paulo, no Estúdio Brocal. Depois, convidamos um artista que admiramos muito, Jonas Sá, que tocou synth e piano elétrico em “Samaúma”, sendo responsável por colorir todo o disco. Como gostamos de andar em família, Pedro Sá, irmão de Jonas, chegou junto e reforçou o arranjo com sua guitarra inconfundível. Um groove modal de mais de cinco minutos que passa num piscar de olhos. Impossível ouvir e não pensar “Visite nossa cozinha” (Samuel Fraga na bateria e Gabriel “Bubu” Mayall no baixo).


02) “Estardalhaço”
Tulipa: Embora com atmosfera solar, “Estardalhaço” fala sobre abusos de todas as naturezas. A consciência de hematomas que nem sabíamos que existiam, pois somos uma sociedade acostumada a viver com dor. Mas agora estamos coletivamente decupando todas as violências. Cada vez mais, deixaremos menos que isso aconteça.

Gustavo: Para este arranjo, pensamos em trazer um acordeon com sonoridade específica. Convidamos um dos maiores representantes do instrumento no país: Toninho Ferragutti. Entendemos juntos, durante a sessão de gravação, que qualquer registro do acordeon que se distanciasse do timbre eternizado por Dominguinhos, traria uma leveza que a letra definitivamente não pedia. Ferragutti entrou no espírito em contraponto e fole. A música ganha especial densidade com o arranjo sincopado do baixo e bateria e as dobras vocais desenhadas por Tulipa em tom assertivo.


03) “Pluma Black”
Tulipa: Sempre celebro os encontros e nesta música faço festa para os encontros consonantais. Tive uma professora na escola chamada Anatlece e esse nome mexia muito com a minha língua. A partir disso, comecei a me ligar toda vez que a letra L se enrabichava com alguma consoante e fiquei cantando essas palavras como se fosse um pilates pra boca. Na hora de pensar nas músicas para o disco, “Pluma Black” coube como uma luva e fluiu em reggae. Meus convidados para ela são meu pai, Luiz Chagas, com seus riffs de guitarra inconfundíveis, e meu amigo Negro Leo, que soube degustar as palavras e pronunciá-las al dente.

Gustavo: Toda primeira parte deste arranjo me soa como um recitativo. Um prólogo para o one drop no tempo um da bateria de Samuel Fraga e o baixo gordo e “precision” de Gabriel “Bubu” Mayall. Tulipa e Negro Leo, convidado para cantar na faixa, soam um só timbre na música toda. Não menos especial, Luiz Chagas participa tocando uma semi-acústica guitarra Höfner. Chagas pertence àquele grupo seleto de instrumentistas que tiram o próprio som de qualquer instrumento.


04) “Kamikaze Total”
Tulipa: Como fazer um disco com tanta distopia, com tantos ataques às mulheres? Nossos direitos saqueados, nossos corpos vigiados. Uma música com a narrativa em primeira pessoa com o intuito de dar voz a uma falange. Para ser cantada na trincheira, de dentro da fogueira, no olho do furacão, evocando a força de nossas ancestrais, de nossas existências atuais e das que virão. Feita antes do atual presidente se declarar imbrochável em data cívica, a letra grita “ego machucado, brocha”. Parceria minha com Liniker e Vitor Hugo.

Gustavo: Depois de gravar todas as bases em São Paulo no estúdio Brocal, viajamos para o Rio de Janeiro para a próxima etapa: gravar todos os teclados do disco com o músico Jonas Sá, que tem uma bela coleção de synths analógicos. Em “Kamikaze Total”, utilizamos um recurso peculiar: trigar o arpejador do teclado a partir de um sinal externo. O recurso é escancaradamente inspirado em “Temporary Secretary”, canção gravada por Paul em seu disco “McCartney II”. O arranjo de base e de vozes soam como um mantra. Quase que sem respiro. De tirar o fôlego.


05) “Novelos”
Tulipa: É possível se anestesiar e mudar de assunto, mas a real é que a realidade está dura de processar. A letra é uma oportunidade poética para sairmos fora dessa miséria que assola o planeta. Foi a primeira música composta especialmente para este disco, feita por mim e Gustavo quando ficamos alguns dias isolados para compor as faixas de “Habilidades Extraordinárias”. Das onze músicas, nove fizemos durante esse período.

Gustavo: O mais solto dos arranjos, talvez o mais tropicalista, o mais Jorge Mautneriano. Uma levação de som. Perfeita pra gravar na fita e ao vivo. Cada take, uma experiência. Difícil escolher. Quando lançamos disco sempre pensamos no formato vinil, e “Novelos” é a canção que encerrará o lado A, num clima “tô saindo fora”. Vou morar na Lua…


06) “Habilidades Extraordinárias”
Tulipa: Dá nome ao disco. Hoje em dia, no contemporâneo distópico, estar vivo configura uma habilidade extraordinária. O nó na garganta da letra em si traduz o que eu deveria decupar aqui.

Gustavo: Primeira do Lado B. Sonoridade única no disco com violão nylon e registro mais agudo das melodias compostas para o álbum. Sem dobras ou backing vocals. Arranjo cru. Baixo, bateria, violão e uma só voz. Na repetição da canção as presenças de Pedro Sá (guitarra) e Jonas Sá (piano elétrico) trazem paisagem sonora para o arranjo.


07) “Não Pira”
Tulipa: O uso ininterrupto do celular tem adoecido nosso nervo óptico. O nervo de uma sociedade nervosa, enferma e medicada. Exausta. Não pira é um mantra vestido de funk para ser verbalizado com a língua e com o corpo. É a gente de volta ao acaso. Fomos para o Rio gravar sintetizadores com nosso amigo Jonas Sá. Durante a gravação, senti que o flow do canto dele poderia somar à atmosfera da música. Canetamos juntos a parte que canto com ele e timbramos gostoso.

Gustavo: Nosso funk carioca, gravado entre a Pompeia, em Sampa, e o Jardim Botânico, no Rio. Samuel Fraga montou um kit de bateria específico para esta base e usou uma caixa sem esteira como tom. A presença de Jonas Sá como instrumentista, tocando os synths e mpc, compondo e cantando com a Tulipa o interlúdio antes da repetição, potencializou o arranjo. Reprocessamos o baixo de Gabriel “Bubu” Mayall utilizando uma técnica conhecida como reamp, e usamos esses novos canais para encorpar as camadas de synths como parte da sonoridade.


08) “Acho Que Hoje Mesmo Eu Dou”
Tulipa: Um rock de amor. Mas o love que rola na letra não é de uma pessoa apaixonada, e sim uma pessoa dada. A simplicidade e a gostosura do afeto e do tesão espontâneo, sem compromisso ou encucação.

Gustavo: Nossa Sonic Youth, nossa Stereolab. Ou melhor, poderia ser uma canção de Luiz Chagas. Tem uma sonoridade forte e coesa com guitarra fuzz-phase e a cama de moogs no refrão. Tulipa engorda o caldo no final com uma parede de vocais em contracanto.


09) “Vou Te Botar no Pau”
Tulipa: Uma letra indignada direcionada às pessoas físicas e jurídicas.

Gustavo: Um punk-rock quase atonal contrapõe o refrão-chiclete com todos os ingredientes pops disponíveis em harmonia e melodia.


10) “Kamikaze Total (Vinheta)”
Tulipa: O disco foi todo gravado na fita e essa maneira de captar levou a gente para uma sonoridade específica, mais comprimida e saturada. Na hora de exportar para o digital, experimentamos mudar a velocidade de algumas coisas e gostamos do que aconteceu com a parte instrumental de “Kamikaze”, que ficou super interessante mais lenta. Regravei a voz por cima da base em slow motion e me senti no trailer de um longa metragem.

Gustavo: O arranjo original é tão subdividido por conta dos arpejadores que, ao desdobrar o andamento, percebemos que havia uma outra base ali. Tulipa regravou a voz e o resultado virou a vinheta de “Kamikaze Total”.


11) “O Recado da Flor”
Tulipa: Recebi por WhatsApp um poema de Celso Sim, feito para mim logo depois que eu gravei uma participação em seu disco dedicado a Jorge Mautner. O poema chegou na semana em que eu estava com o Gustavo compondo para o disco. Assim que recebi a mensagem, musicamos o que Celso tinha escrito. Fiquei emocionada com o poema que ele fez e essa música é a última faixa do disco. Nosso gran finale. Chamei meu amigo João Donato, que gravou um dos solos mais lindos que já ouvi. Assim como eu, João sabe fazer sons de passarinhos e gravamos juntos a revoada presente na canção. A letra de Celso explora a natureza do meu nome. “Uma flor que supera a própria primavera”.

Gustavo: Sempre maravilhoso gravar com João Donato. Muita sabedoria no lance. Evocamos “Gal Canta Caymmi” para compor o groove dessa base. Não só por Dorival, não só por Gal, mas por Donato, que assina vários arranjos do disco da tropicalista. Donato se esbaldou. Gravou piano elétrico, órgão Hammond, ficou nos contando que o Walter Wanderley, nos anos 60, havia lhe presenteado com um papel explicando como montar os timbres do Hammond à sua maneira. Primórdios do que conhecemos hoje como tutorial. Tocou Moog, fez um belo solo e, de quebra, ainda gravou com a Tulipa alguns canais de passarinhos.

– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.  Todas as fotos por Nino Andres Biasizzo.



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