texto por Gabriel Pinheiro
“Vinco” começa em Copacabana, na década de 1990. Manu, protagonista do romance, se encontra naquela transição da infância para a adolescência. Momento confuso em que os hormônios borbulham e, por vezes, nos sentimos à flor da pele. Essa é apenas uma das transições pelas quais o personagem passa ao longo desse sensível romance de Manoela Sawitzki, recém lançado pela Companhia das Letras.
Uma cadeira posicionada para travar a porta do quarto. Um inventário de objetos pilhados da mãe, da irmã e das amigas desta ao longo do tempo. Dois pares completos de brincos, três presilhas coloridas, um batom moranguinho, uma miniblusa de paetê. O brinco de pressão que deixa os lóbulos vermelhos – mais seguro usá-lo logo antes de dormir. Eram prazeres de outra ordem. “Eu só podia acessar aquilo tudo quando elas não estivessem por perto, e sempre com pressa, sustos e pontadas agudas no estômago.”
Seja no seio familiar, na escola ou na companhia da namorada, Manu, primeiro, busca a invisibilidade. Tornar-se apenas mais um na multidão, não chamar a atenção. “Concentrava minha energia em encontrar formas de me sustentar numa condição limítrofe, que me permitisse estar em toda parte sem colocar meus defeitos e minhas inseguranças em evidência e, sobretudo, meus segredos em risco”. A história acompanha esse personagem da invisibilidade até a sua completa recusa, até não mais aceitá-la como condição para viver.
Uma violência indizível e o rompimento de laços com seu país de origem marcam seu percurso. Levando-o, futuramente, ao exílio. Manoela Sawitzki cria em “Vinco” uma geografia tanto física, quanto de afetos, por onde o personagem percorre. Do Rio à França, de Paris à uma pequena cidade de Pernambuco, Tacaratu. Manu ora foge, ora busca. Foge de si e foge dos outros. Busca por alguém e, sobretudo, busca por si mesmo.
A sensação de ser estrangeiro parece acompanhá-lo ao longo de toda a narrativa. Estrangeiro aqui, estrangeiro lá. Estrangeiro dentro de casa e dentro do próprio corpo. “Meu próprio corpo, outro enigma que eu falhava em compreender. Eu não queria apagá-lo, mas sentia sua limitação, a obrigação de ajustá-lo exclusivamente ao mundo masculino, como uma deformidade.”
São delicadas e complexas as questões de gênero, as caixinhas às quais somos submetidos desde a infância, a binaridade. As supostas certezas impostas sobre nosso corpo desde o primeiro sopro de vida. O quanto há de aprisionamento em um pronome? Ele. O quanto há de possibilidades em outro? Ela.
Manu percorre seu caminho criando uma geografia própria, calcada na incerteza e na fluidez do gênero, em que não há fronteiras demarcando territórios. O corpo é um mapa a ser traçado de maneira fluída. E há cicatrizes que nos indicam caminhos.
O resultado é um romance poderoso a respeito de questões de gênero e sexualidade, num texto que transborda generosidade por um protagonista tão múltiplo, tão bem construído. Manu parece ultrapassar as páginas e ganhar vida na prosa de Manoela Sawitzki. “Vinco” é um livro que recusa as expectativas e está sempre pronto para quebrá-las. Foge das resoluções simples e busca na fluidez do gênero a matéria para a fluidez de sua própria narrativa. Um daqueles trabalhos em que desejemos postergar o virar da última página e fazer durar.
– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel.