Contos Musicais #006: “Respect Yourself ”

de Ismael Machado

Foi uma amiga quem me trouxe. Eu nem tava muito a fim. Ela insistia. “Eu precisava entender as coisas”, ela repetia. E sempre quando ela vinha com essa história, falando de empoderamento, lugar de fala, violência contra nossos corpos, eu a sentia mirando meus cabelos. Uma vez ela me aconselhou a deixar de alisar. Brigamos feio nesse dia.

Mas eu não tinha nada melhor pra fazer mesmo nessa noite. Então fui. Era uma roda de conversa e o salão tava cheio de mulheres. Todas que nem eu. Negras. Pretas, elas me corrigiram quando comentei isso na hora da pausa pro lanchinho.

Quem dominava a conversa era uma vereadora. Marielle. Eu não conhecia. Não sou muito inteirada dessas coisas de política. Mas o que ela falava começou a mexer comigo. Do meu lado tinha uma menina mais ou menos da minha idade. Um cabelão que parecia umas fotos do meu tio nos bailes de antigamente.

Ela falou um monte de coisa legal sobre nós, mulheres neg…pretas, da comunidade, dos morros, das baixadas. Falou sobre amor e resistência, sobre nosso lugar na sociedade.

Quando a roda terminou, cheguei nela, assim como quem não quer nada. Ela sorriu pra mim. Perguntou meu nome. Fiz umas perguntas bestas. Tinha muita gente ao redor dela. Mas me indicou um filme, o nome era ‘Wattstax’, um documentário de 1972. Acho que fiz uma cara meio esquisita, porque ela riu. Eu não sou muito fã de filme assim, admito. Mas dei uma chance. Catei na internet e passei a madrugada assistindo. E tinha um monte de gente com o cabelão black power, falando de orgulho e dançando naquela sonzeira toda.

“Respect Yourself” foi uma música que curti muito. Não sou de gravar nomes de música, mas essa eu fiz questão.

No outro dia, quando acordei, pensei em ligar pra minha amiga e combinar dela me levar pra outras reuniões do tipo. Mas ela ligou antes. “Tu viu? ”, ela me perguntou, chorando. E me contou que a vereadora tinha sido morta, com um monte de tiro. Alguma coisa assim, não entendi direito porque minha cabeça começou a zunir.

Naqueles dias, quando voltei da manifestação lá no centro, me olhei no espelho e tomei uma decisão. Nunca mais alisaria o cabelo.

– Ismael Machado é escritor, roteirista e diretor audiovisual. Publicou cinco livros e é ganhador de 12 prêmios jornalísticos. Roteirista dos longas documentários “Soldados do Araguaia” e “Na Fronteira do Fim do Mundo” e da série documental “Ubuntu, a partilha quilombola“.

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