Balanço: NOS Primavera Sound Porto 2022, em Portugal – Dia 2 (Pavement, Slowdive, Beck,  Rina Sawayama, Maria José Llergo)

Texto por Bruno Capelas e Anna Vitória Rocha
Fotos e vídeos por Bruno Capelas, exceto onde notado
SAIBA COMO FOI O DIA 1 e o DIA 3 DO FESTIVAL

Após grandes exibições de Nick Cave & The Bad Seeds e Caroline Polachek na quinta-feira na abertura do NOS Primavera Sound, e 15km caminhados em um só dia (ou 30km nos últimos dois), foi difícil levantar da cama. Mas o sol aberto na cidade do Porto, o calor e a promessa de uma grande sexta-feira aliados a um line-up que tinha um mergulho nos anos 90 e uma viagem pela Península Ibérica sempre animam.

Tinha música pra todos os gostos no segundo dia do NOS Primavera Sound: do slacker rock do Pavement ao shoegaze do Slowdive, passando pela versatilidade de Beck e a dupla Amaia e Maria José Llergo aproveitando a trilha aberta no mato, com uma moto, pela compatriota Rosalía. Tinha ainda Arnaldo Antunes, mas um festival é feito de escolhas e, como diria um anônimo filósofo lusitano, “tudo não dá”. Ainda teve a doideira do 100 Gecs e vários shows encavalados (esperamos que Steve Albini nos perdoe). “Agora sim, temos a força à toda”

18h – 20h

Foto de Hugo Lima / NOS Primavera Sound

Bruno Capelas: É preciso muita disposição para encarar um dos pratos típicos da região: a Francesinha, uma espécie de Croque Monsieur ogro, com camadas de pão, bife, linguiça, mortadela, presunto, queijo, ovo, molho e batata frita. Encarei uma antes de ir para o Parque da Cidade no Café Santiago (10.50 €) e não comi durante o festival – as resenhas gastronômicas voltam amanhã, prometo. Ainda digerindo essa montanha de comida, embarquei de metro ao Primavera, indo do centro do Porto a Matosinhos, essa espécie de Santo André-com-praia, num trajeto tranquilo. Viva o transporte público.

E se cheguei ao festival logo no exato minuto em que Beach Bunny (tag #mulhereseguitarras #noventinha) encerrava seu show, foi também no tempo exato de ver um belo show de… flamenco. Muito obrigado, Rosalía: graças à cantora catalã, o mundo descobriu que flamenco é pop – e nomes interessantes pululam da Península Ibérica. É o caso de Maria José Llergo, dona de uma voz potente e um sorriso contagiante. Escudada por violão e um sintetizador cheio de efeitos, Llergo flertou com o lado tradicional do gênero e também com sua versão mais moderna (vale ir ouvir “La Luz”), em um belo espetáculo. Ao final, e visivelmente emocionada com a recepção portuense, ela puxou um clássico do bolso: “Pena, Penita, Pena”. Olé!

Maria José Llergo / Foto de Bruno Capelas

Anna Vitória Rocha: Não sou uma frequentadora de festivais que costuma explorar o que o evento tem a oferecer além dos shows. Gosto de acreditar que ao menos nisso consigo ter foco: garantir um bom lugar, aproveitar a música, topar com amigos entre um palco e outro e, se der, fazer uma visita à praça de alimentação. Funciona para mim, mas achei que valia a pena quebrar a regra para ver o que o espaço do NOS Primavera Sound preparou para seus frequentadores.

O menu do jantar , logo que cheguei ao festival, ficou a cargo do Comida de Rua: sopa de cenoura (o apreço dos portugueses pela sopinha de entrada é uma boa e singela surpresa da viagem), um generoso prato de chilli vegetariano com arroz, baba de camelo (o doce de leite dos portugueses) e uvas de sobremesa. Ao fundo, batidas e gritos vinham do show de Rina Sawayama no palco Cupra.

A apresentação parecia animada e a artista não economizou no carisma. Emocionada com a recepção do público, Rina Sawayama saudou a comunidade LGBTQIA+ e mandou um salve também para os aliados da causa – estamos, afinal, no mês internacional do Orgulho. Muitas pessoas ostentavam a bandeira do arco-íris, destaque também no show do Holy Nothing, mais cedo neste mesmo dia.

Explorar o espaço de um festival significa também estar aberta às boas surpresas oferecidas pela curadoria. Foi o caso do meu encontro com a espanhola Maria José Llergo: nessa febre-Rosalía em que estamos todos, fui atraída pelo flamenco que vinha do palco Super Bock. Por lá fiquei até o final da apresentação, um show apaixonado e cheio de entrega de uma artista que vai bater com força o salto dos sapatos para fazer valer o espaço que a canção tradicional espanhola está galgando no coração do público moderninho.

20h – 22h

Slowdive / Foto de Bruno Capelas

Bruno Capelas: Nem deu tempo direito de embalar na sofrência espanhola: ali no palco ao lado, era hora de encarar os sapatos com o Slowdive no palco principal do NOS Primavera Sound. Tal qual um bom vinho do Porto, o quinteto envelheceu bem demais, obrigado. Em uma apresentação digna de manual, o grupo passeou por diferentes fases da sua carreira – de hits do clássico “Souvlaki” (“Alison”, sempre ela, “Souvlaki Space Station”) até as canções de “Slowdive”, de 2017, chegando até a um cover de Syd Barrett (“Golden Hair”). Rachel Goswell segue cantando muito, com a discrição costumeira, enquanto as guitarras de Christian Savill ainda batem fundo. Barulho, ruído, refrões espaçados, um pôr do sol bonito demais e calor no coração.

(Enquanto isso, em algum lugar do Porto, algo me dizia que Steve Albini também fazia um grande show com o Shellac. Triste isso de perder shows no mesmo horário – e fica aqui a nota de indignação pra quem colocou, na noite anterior, o Black Midi em conflito com Nick Cave).

Na sequência, foi a vez de outra espanhola, Amaia, subir ao palco Super Bock, ali do lado. Cheia de charme, a cantora possui um repertório ainda à espera de formatação – não cantasse em espanhol, talvez dificilmente ela estaria presente em um festival de caráter mais alternativo como o Primavera. De longe, era fácil confundir o que ali se passava com as canções do grupo/novela Rebelde. Geração Y é foda. Pelo menos valeu para descansar um bocado as pernas – e fica aqui um elogio à geografia do Parque da Cidade. Os morros do recinto são um desafio aos joelhos, mas também permitem boa visibilidade ao público e a possibilidade de ver um show sentado na grama de boa. Valorizo demais.

Amaia / Foto de Bruno Capelas

Anna Vitória Rocha: Outra atração paralela foi o gramado do Parque da Cidade, com direito a pôr do sol embalado pelo show do Slowdive. Se a priori o cenário primaveril parecia não combinar tanto com a atitude shoegaze e as guitarradas da banda, aos poucos a luz se costurou ao som para embalar o público numa apresentação hipnotizante. O cenário ficava ainda mais bonito ao se reparar nas crianças de rosto pintado e abafadores de som nos ouvidos que corriam pelo local – uma lembrança gostosa de como o tempo fez bem para o Slowdive e seus fãs.

O vento gelado – cortesia da brisa do mar – me inspirou a descer uma dose de Jameson (7€) para manter o corpo quente enquanto esperávamos as grandes atrações da noite. Munida também de um saquinho de pipoca (3€), voltei ao gramado para ouvir outra herdeira do mato capinado por Rosalía: era hora da espanhola Amaia subir no Super Bock. Aos 23 anos, o NOS Primavera Sound foi a estreia da cantora em palcos internacionais.

Emocionada com a oportunidade, Amaia fez um show doce, com canções fofas e românticas que mostram de onde veio o destaque conquistado por ela nos shows de talento que marcaram o início de sua carreira – o que não é necessariamente um elogio. Na prática, as músicas lembram algo entre o RBD e outros derivados em língua espanhola que a cada geração encontram uma nova iteração para fazer sucesso entre o público teen.

22h – 0h

Beck / Foto de Bruno Capelas

Bruno Capelas: Eu gosto do Beck. Não, essa não é uma afirmação de apologia às drogas – mas sim ao cantor californiano, talvez um dos maiores exemplos modernos de versatilidade musical. Em pouco mais de três décadas, Beck Hansen já encarnou diversos tipos de personagem, do fã de música brasileira ao melancólico, do dançante ao sexy, do roqueiro ao rapper. Quase tudo é muito bom – e é até difícil acreditar que o mesmo homem está por trás de “Loser”, “Lost Cause” e “Debra”. Mas, quando ele subiu ao palco, também foi difícil acompanhar seu ritmo: em alta velocidade, ele emendou porradas de mexer o quadril (“Devil’s Haircut”, “Colors”, “Up All Night”), mostrando potencial de levar o público à estratosfera.

Mas Beck acelerou demais e acabou queimando a largada. Ele estava tão a fim de agradar o público que emendou uma série de canções agitadas, mas sem dar espaço para a plateia se divertir. O palco não ajudou: era um espaço gigante e cheio de luzes fortes, que não permitiam aos presentes vê-lo direito, atrapalhando a conexão cantor-audiência. E nem mesmo quando se permitiu um momento mais calmo, com as belas baladas “Morning” e “Lost Cause”, as coisas funcionaram direito. Perdão o trocadilho, caro leitor, mas dessa vez não bateu direito.

Na sequência, o plano era ver Arnaldo Antunes – mas a distância do palco Cupra fez o pulso pulsar para esperar o Pavement. De longe, ainda deu pra comer um pastel de nata e ouvir o 100 Gecs – que parecia como se alguém tivesse digitalizado uma fita VHS mofada com um Disk MTV dos anos 2000, com clipes de Blink 182 e Britney Spears. Doidera, mêo.

Anna Vitória Rocha: Logo ao lado, no principal palco da noite, o público começava a se reunir para esperar a chegada de Beck Hansen, muito aguardado em sua volta a Portugal após quase 15 anos. Elétrico em seu terno branco, Beck chegou parecendo disposto a tirar esse atraso, mas algumas escolhas técnicas deixaram o músico em descompasso com seu público.

Acompanhado apenas de dois músicos mas com muitas, muitas luzes e uma artilharia pesada de hits, Beck parecia aquele amigo que já chega alterado na festa e está sempre dois tons acima do resto da galera. Em vez de conduzir a plateia por sua Los Angeles vibrante, o artista parecia correr como uma formiga atômica num frenesi próprio, sem dar tempo e espaço para que os fãs entrassem no clima junto com ele. A dimensão do palco – imenso e alto, bem acima do normal – não ajudou nesse caso, aumentando ainda mais a distância entre ele e a plateia, uma boa metáfora da noite.

Os poucos momentos de sintonia, como “Lost Cause” e “Everybody’s Gotta Learn Sometimes”, foram quebrados com mudanças súbitas de ritmo ou escolhas antipáticas do artista, que em vários momentos preferiu ficar no canto do palco, fazendo graça com as câmeras, em vez de se conectar com o público. O que dá raiva é que esses poucos momentos foram legais o suficiente para darem um gosto do que o show poderia ter sido, mas não foi. Perdemos todos.

0h – 2h

Bruno Capelas: Se você chegou até aqui, leitor, provavelmente é porque é um indie de carteirinha. E se é indie de carteirinha, consegue entender não só o que significa ver o Pavement, mas também alguns sentimentos bastante obscuros dos recônditos da alma humana. Como o de fazer piadas verbais e jogos de palavras que só você vai entender. Ou de ter a sensação de ser razoavelmente deslocado do resto da sociedade, uma condição esquisita. De um lado, é fácil se sentir triste e sozinho, mas também parece haver certa graça no distanciamento, nesse “meu mundo e nada mais”. Já chamaram isso de síndrome do underground, mas vai um pouco além – ou pelo menos foi o que disse meu terapeuta. Nem sempre é um traço desejável de personalidade, mas faz parte do pacote.

Alternativo até a medula, o Pavement fez um show que pode se resumir nesse preâmbulo. Recém-reunido para uma nova turnê após 11 anos, o quinteto liderado por Stephen Malkmus chegou ao Porto sob forte antecipação. Ali no palco, a trupe (reforçada pela tecladista Rebecca Cole, do Wild Flag) parecia mais interessada em se divertir consigo mesma do que promover um diálogo – quase como um grupo de amigos que se encontra após muito tempo, um mote clássico de filme americano. Tal como nas atrações da Sessão da Tarde, o concerto tem óbvios momentos altos (os solos de guitarra de Malkmus, “Stereo”, “Range Life”, “Shady Lane”, “Spit on a Stranger”…), mas também um certo gosto agridoce.

Scott Kannberg e sua “Two States” bem que tentaram estabelecer uma conexão; o mesmo com Bob Nastanovich e a porradaria de “Unfair”. Mas se de um lado ficou, mais uma vez, claro porque o Pavement é provavelmente uma das bandas mais influentes do rock alternativo, do outro restou a sensação de que um pouco mais de esforço poderia ter transformado um show bom, nostálgico, em algo digno de ser memorável. E como dizia o poeta, se só o que é bom dura o tempo bastante para se tornar inesquecível, faltou tempo: após 20 músicas, o Pavement deu tchau pra Porto sem bis, sem “Here”, “Summer Babe”, “Silence Kid” ou “Major Leagues”, vários gold soundz impecáveis. Pena, penita, pena.

Pavement / Foto de Bruno Capelas

Anna Vitória Rocha: A expectativa para a chegada do Pavement era tanta que decidi gastar o último intervalo da noite guardando um bom lugar em frente ao palco. Logo ao lado rolava a fritação do 100 Gecs e meus tímpanos agradeceram a distância saudável. Decidi gravar um áudio para uma amiga que é fã da banda, que me respondeu com a seguinte frase: “Não dá para ouvir nada, parece barulho de carro passando (pode ser que seja o som deles mesmo)”. Acho que resume bem e digo isso como elogio.

E então chegou o momento que todos estavam esperando: “We’re Pavement”, disse Stephen Malkmus antes de ser cortado pelo som de sua própria guitarra e os gritos de um público apaixonado. A melhor coisa de ver o Pavement no palco é ver o contraste entre a completa ausência da pinta de artista de seus membros – cada um deles é um tiozinho à sua maneira – e a capacidade deles de transformar isso num statement descolado a partir do som. Acho que é isso que querem dizer com “slacker rock”.

O gênero aparece também na forma com que eles fazem a complexidade do som da banda, com sua profusão de guitarras e letras verborrágicas, parecer simples. Para uma banda que passou mais de 10 anos longe dos palcos, a nonchalance de Stephen Malkmus às vezes incomoda e os momentos em que ele parece mais empolgado são aqueles em que o líder e guitarrista pode simplesmente curtir a própria sonzera enquanto Bob Nastanovich (que até desceu ao fosso em determinado momento) e Scott Kannberg assumem a função de interagir com a plateia.

O público não parecia se importar muito e talvez estivesse ali justamente para ver tudo isso em primeira mão. Acompanhando os hits em coro – algo raro para o público no festival até aqui – e até ensaiando uma rodinha punk em “Unfair”, a banda teve o NOS Primavera Sound nas mãos, enquanto nós tivemos a chance de preencher a carteirinha indie com o importante carimbo do Pavement, por mais cafona que seja admitir esse tipo de coisa. Que Stephen Malkmus não me ouça. Vida longa aos festivais.

Top 3 do Dia 2 de NOS Primavera Sound

Bruno Capelas
1 – Pavement
2 – Maria José Llergo
3 – Slowdive

Anna Vitória Rocha
1 – Pavement
2 – Slowdive
3 – Maria José Llergo

Foto de Hugo Lima / NOS Primavera Sound

SAIBA COMO FOI O DIA 1 e o DIA 3 DO NOS PRIMAVERA SOUND PORTO 2022

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