entrevista por João Pedro Ramos
Na última semana de maio saiu o terceiro trabalho do artista paulistano Aletrix, o EP “Aceito Sua Carona”, contando com as características principais já vistas no EP anterior, “Jardinando” (2020), e no álbum “Herpes aos Hipsters” (2013): distorções, ecos de grunge e rock alternativo noventista banhando letras com histórias saídas diretamente do subconsciente delirante do autor.
Neste novo trabalho, Aletrix optou por focar em músicas que, de alguma forma, remetem a animais, como pombos, bodes, cavalos e até sapos na cover de “The Frog”, de Marcel Bontempi. Para mim, a maior surpresa foi ouvir minha própria voz em “Bodes Quando Choves”, já que ele usou um áudio que enviei enquanto conversávamos e eu enfrentava uma chuva de granizo torrencial.
Gravado com absoluto distanciamento social (os membros da banda nem mesmo se comunicaram por vídeo sem usar máscaras), o EP teve a maior parte de suas gravações ficando por conta do baterista Matheus Souza, que registrou tudo em seu home studio na companhia de cachorros, e do próprio Aletrix, que gravou entre gatos em seu escritório/estúdio, ocasionalmente na presença de pássaros decapitados deixados à sua porta como presente por alguns desses bichanos.
Membros da formação original desde 2013, o guitarrista Alexandre Lemos e a baixista Mia Manson, que já haviam gravado suas partes antes dos isolamentos, juntaram-se a eles maravilhosamente na faixa-título “Aceito Sua Carona”. Mixado e masterizado pelos ouvidos valiosos de Hugo Silva do estúdio Family Mob (SP), o EP foi testado (segundo o release) em animais por meio de audições. “Não houve reclamações, tampouco elogios”, completa.
Conversei com Aletrix sobre o novo EP e ele revelou um spoiler sobre seu provável próximo trabalho:
Primeiramente, uma dúvida pessoal minha: como surgiu o nome “Aceito Sua Carona”?
Queria conseguir lembrar melhor, acho que era pra ser algo como “embarcar com tudo” na ideia ou na companhia de alguém. Me imaginei pegando uma carona com o pior dos motoristas, descrevendo como essa pessoa, conhecida por amputar dedões de manobristas, dirigia e questionando por que tive a péssima ideia de pegar essa carona.
Como “Aceito Sua Carona” se encaixa no conceito de um EP com foco em animais?
Essa música começa na cidade e passa pelo interior. Queria um bicho bem urbano pra acompanhar o trajeto das alturas e servir de testemunha. Pombos e carros tem uma relação, aquele acordo daquele episódio do Seinfeld, sempre penso nesse episódio quando acho que vou atropelar um grupo de pombos. Eles desviam rápido, é difícil de acertar, tem que se concentrar muito pra dar certo. Os pombos reconheceriam esse motorista da música como inimigo mortal e entenderiam minha aflição como passageiro.
Quais foram suas principais inspirações musicais pra este novo EP?
Com certeza os Ramones, em pelo menos duas, e de uma forma geral The Smiths. O Frank Black solo deve ser a inspiração mais constante, ouvi demais pela vida e ainda ouço bastante.
Como tá sendo ouvir Smiths depois que o Morrissey deu essa zumbificada facha, hein?
Foi muito difícil assistir meu letrista preferido de todos os tempos dar uma surtada e passar a defender tantos assuntos que repudio. Não tenho dúvida que já ouvi mais o Morrissey solo do que Smiths, acompanhei a carreira dele por décadas com a maior empolgação. Mas, as declarações revoltantes foram somando e eventualmente parei de acompanhar e não consegui mais ouvir suas músicas. É mentalmente desafiador separar obra e artista, as vezes a gente chega a se sentir traído ou roubado. Não é bom endeusar músicos, o tombo pode ser enorme. Os discos dele foram importantes demais na minha vida, cada um marca uma época, mas não consigo ouvi-los há um tempo. Hoje em dia eu ficaria mais feliz em assistir um show de um Morrissey cover do que do original hahaha
Voltando ao EP, você está lançando um material em vídeo juntamente com as músicas. Como está sendo este trabalho?
Pela primeira vez consegui ter na manga vídeos caseiros produzidos antes do lançamento, que alívio. Meu dedão da mão direita não agradece, foi bastante tempo de edição e ele ficou inflamado de tanto movimento repetitivo no trackpad hahahaha. Serão quatro vídeos: “Latia Fogo”, “Black Friday”, “Cavalo Torresmo” e “The Frog”, todos bem simples, mais pra visualizer do que pra clipe elaborado. Vídeos são legais, mas acho que tiram um pouco a chance de quem ouvir a música poder imaginar imagens e dar sua própria viajada. Em geral, imagens de vídeos ficam muito ligadas às músicas e depois de assisti-los é difícil desassociar um do outro. Então preferi não criar vídeos pra “Aceito Sua Carona” e pra “Bodes Quando Choves”. Depois do “Herpes aos Hipsters”, várias pessoas me contavam que ouvindo a “Ele É Mais Qualificado” tinham tido uma ideia pra um clipe. Então descreviam tudo que tinham imaginado e eu curtia muito ouvir. Acho isso legal demais, que uma música possa mexer com a imaginação e até inspirar roteiros na cabeça das pessoas. Me parece melhor do que imagens impostas por mim mesmo num “clipe OFICIAL” da música tal.
Bom, preciso falar sobre “Bodes Quando Choves”, a faixa mais experimental do álbum. Eu fiquei pirando nela, principalmente porque você pegou um áudio meu durante uma chuva de granizo! Mas uma dúvida que eu fiquei e não me saiu da cabeça: qual é a do “parabéns” no final da faixa?
Sim, peguei sua mensagem de áudio sorrateiramente hahahaha era boa demais pra morrer comigo. Lembro que mostrei essa música pra um amigo e ele achou que tivéssemos ensaiado nosso diálogo. Tive que contar que o seu áudio era real e surreal mesmo. Achei demais ter o Chico e o Horror Deluxe, minha banda nacional preferida, citados numa música. Aquela parte do parabéns era outra gravação antiga que encontrei. Um dia estava na frente do teclado e lembrei que era aniversário do Ed Avian, nosso primeiro baterista. Gravei e mandei pra ele.
Então essa é quase sua “Revolution 9”.
Hahahaha. Foi bem libertador montar essa música, dizendo pra mim mesmo que tudo bem ter uma música no EP num estilo totalmente diferente das outras. Quero fazer outras nesse estilo no futuro.
Quais os planos para divulgação do EP com shows e tudo? Já tem algo em mente?
Puxa, por enquanto estou sem planos de divulgar o EP fazendo shows. Depois de tanto tempo isolado em casa, por causa da pandemia, vou ter que dar um passo de cada vez, pois no momento nunca mais quero sair de casa. Imaginar estar num lugar cheio de gente me causa as piores ansiedades. Vai ter que ser aos poucos, acho que primeiro vou precisar me acostumar a ir até a padaria da esquina sem achar que vou morrer.
Então pra tirar um pouco essa ansiedade, deixa eu voltar aqui: você falou de futuro. Quais os próximos planos depois do lançamento do “Aceito Sua Carona”? Já tá pensando nas próximas músicas?
Venho gravando a distância desde o ano passado com nosso baterista, o Matheus, músicas pro segundo disco do Aletrix. A gente vem gravando de três em três, vai ser um disco com umas 18 músicas. O disco vai ter um tema principal e cada música vai ser um capítulo dessa história, que tem como personagem principal o Tonho Ternura, um músico que nas madrugadas trabalha na Tortura FM e que de dia trabalha como zelador do cemitério.
Então vem aí o “Tommy” do Aletrix. Ou melhor, o “Tonho”.
Sim! Hahahaahaha
Aletrix comenta faixa-a-faixa de “Aceito Sua Carona”
01) ACEITO SUA CARONA – Mesmo tendo tido muitos endereços diferentes, parece que morei a vida toda sob rotas de aviões. Quando vou pra um lugar como um sítio, não sinto falta do barulho de aviões, é um alívio. Mas, dependendo do lugar, o som dos insetos me irrita sem fim. Os insetos tem seus fuso-horários e se organizam para me desequilibrar e cutucar meus olhos. Pensando nos sons ambiente de onde moro, com acidentes de carro, buzinas, latidos e aviões passando, queria um personagem bem urbano pra servir de testemunha. Mas não tão “rato de esgoto”… então escolhi pombos, que tem péssima reputação, mas que são legais. Vínhamos tocando versões da “Aceito Sua Carona” desde 2018. Ela foi mudando a cada show e era sempre a música mais desafiadora de tocar, cada instrumento tinha detalhes sacanas pra lembrar e mais notas do que as músicas mais antigas, talvez. Estou comemorando até hoje termos conseguido chegar nessa versão, é minha preferida desse EP, especialmente por ter a banda toda reunida na gravação.
02) LATIA FOGO – Uma vez dormi na casa do meu amigo Tião, ficamos conversando até amanhecer e quase morremos. Após muitas horas ouvindo música, botando fofocas em dia e esborniando caseiramente, fui pra um quarto e capotei. Ele capotou também, mas antes deixou uma pizza no forno. Quando acordei ele contou que os vizinhos tinham visto muita fumaça, como uma neblina pela rua, e que a casa quase tinha pegado fogo. A cachorra dele deve ter tentado avisar, acho, eu usava protetores auriculares. Acabei cantando “cachorro” ao invés de “cachorra” pra não parecer letra de funk. O sonho era tentar com que o instrumental soasse como os Ramones fazendo um impossível cover do R.E.M., duas bandas que ouvimos naquela noite.
03) BLACK FRIDAY – Há uns tempos eu tinha o prazer mórbido de assistir vídeos de Black Friday, só os mais violentos. Depois, os vídeos de gatos fazendo bocozices me pegaram de volta, ainda bem! No rascunho, queria que essa música correspondesse a uma vibe parecida com a da “Subbacultcha” dos Pixies. Conforme ela foi avançando, acabou indo pra um outro lado que também curti. Pensei num narrador que fosse alguém exageradamente comprometido com Black Fridays. Na letra, confortável em frente a uma fogueira, ele admira suas cicatrizes conquistadas e divide suas táticas, como usar uma bengala para abrir o caminho e não tomar banho uns dias antes pra criar um repelente natural. Gravar o vídeo foi super rápido, mas editar foi doloroso. Mexer com chroma key é tão peculiar, tentei todo tipo de ajuste pra não deixar sombras e até agora não entendo por que que a caixa de papelão do começo ficava transparente. Vários mistérios.
04) CAVALO TORRESMO – Meu pai cresceu num mundo rural, ele diz que a tecnologia era a mesma da época de Cristo. Numa conversa ele me contou que sua lembrança mais antiga era estar a caminho de algum lugar montado num cavalo. Refletindo depois tive quase certeza que minha lembrança mais antiga, crescendo em São Paulo, era estar a caminho de algum lugar, espremido numa moto entre ele e a minha mãe e molhando minhas pernas enquanto a gente passava numa poça num cruzamento. Imaginei que seria legal uma música que tivesse uma aventura meio “Humanos VS Máquinas VS Cavalo” e que contasse sobre alguém que trocava de meio de transporte conforme mudava de fases da vida. Sempre curti quando os Smiths iam pros rockabilly, como em “Nowhere Fast”, “Death at One’s Elbow” e outras. Acho que eles foram a maior inspiração pro instrumental desse som, no ritmo, no tom melancólico e também na estrutura, pela ausência da obrigatoriedade de refrões. Sem refrões, a música acabou ficando com longos trechos instrumentais entre os versos. Os preenchi com solos de guitarra, sem querer a abordagem menos Smiths possível.
05) THE FROG – Conheci a versão original por acidente e pouco tempo depois quase me arrependi por não conseguir tirar o refrão da cabeça. Pra tentar combater, ouvia “The Frog” mais vezes até aceitar a derrota. O vocalista parecia cantar com paixão extrema sobre uma dança que imitava movimentos de sapos. Parecia bem inocente, mas total conseguia imaginar brigas de facas acontecendo com “The Frog” explodindo no fundo em 64, quando foi lançada. A ouvi em todo tipo de cenário, mas no banho era o meu preferido por causa do eco do banheiro, que fazia com que a mistura dos sons virasse uma maçaroca de reverberação. Billy Pitcock, que grande voz… sei absolutamente nada sobre ele.
06) BODES QUANDO CHOVES – Uma vez recebi uma mensagem de áudio do meu amigo João Pedro Ramos durante uma tempestade e imediatamente a salvei, era surreal e espontânea demais pra ficar perdida entre nossas próximas conversas. Anos depois encontrei esse arquivo e resolvi juntá-lo com ideias que eu vinha gravando tocando teclado, aproveitando pra responder a mensagem dele fingindo que eu teria coragem de me intrometer entre bodes invasores atrás de uma torta esquecida na janela.
– João Pedro Ramos é jornalista, redator, social media, colecJionador de vinis, CDs e música em geral. E é um dos responsáveis pelo podcast Troca Fitas! Ouça aqui.