Balanço: Festival Casarão festeja 22 anos com grandes shows de Emicida, Dead Fish, Terno Rei, Otto, Daniel Groove e O Tronxo

texto, fotos e vídeos por Bruno Capelas

Numa das semanas mais frias da história do Brasil, com direito a ciclone e muitos termômetros abaixo dos 10ºC, Porto Velho viveu quatro dias de calor – não só na temperatura, mas também nos corações. Também, pudera: entre 20 e 23 de maio, a volta do Festival Casarão trouxe shows para guardar na memória. Ao todo, foram mais de 40 artistas, de 13 Estados diferentes (que tal uma playlist?), se apresentando na capital de Rondônia. Era um encontro que há muito não acontecia: não só pela pandemia, que adiou em dois anos a comemoração de 20 anos do evento, mas também porque a última edição do Casarão tinha acontecido em 2014 – quando o dólar ainda estava na casa dos R$ 2,30 e havia uma presidenta no Planalto. Ô saudade…

A espera de dois anos para retornar, no entanto, fez bem ao Casarão: o que começou apenas como uma celebração quase-pessoal, nostálgica, do organizador Vinicius Lemos (leia mais na entrevista aqui), acabou se tornando um possível ponto de retorno para um evento importante no calendário nacional de festivais independentes. Apoiado por editais da Funarte e do Banco da Amazônia, o festival cumpriu em 2022 duas funções muito relevantes, da mesma forma que fazia na década passada. Primeiro, foi capaz de movimentar a cena de Rondônia, mostrando e mapeando os artistas da região. Segundo: trouxe nomes de força nacional para se apresentar pela primeira vez na cidade ou retornar depois de muito tempo.

E se ainda há dúvidas sobre a viabilidade de uma volta em periodicidade regular (anual, bianual, ou algum outro formato inesperado), a pertinência de sua existência se fez mais que justificada já na primeira noite – com grandes apresentações de Emicida, Quilomboclada, O Tronxo e O Melda. Vamos lá?

Sexta – 20/05

Marcos Biesek

Vindo diretamente de Ariquemes, a 200 km de Porto Velho, coube a Marcos Biesek abrir os trabalhos do festival. Com uma cabeleira loura e visual inspirado em Eddie Vedder, Biesek veio ao Casarão acompanhado da banda conterrânea Os Últimos. Ele fez um show básico, calcado no classic rock brasileiro, com letras versando sobre temas como loucura, política e críticas ao imperialismo – embora a penúltima canção, “Box 101”, tenha trazido bons versos sobre Amazônia e repúblicas vendendo tudo a preço de banana. Além de ser o primeiro a subir no palco, Biesek também foi o primeiro a cometer uma saudação que se repetiria por todo o Casarão: “não posso esquecer de dizer um ‘fora Bolsonaro!’ bem grandão para esse filho da puta do caralho”.

O Melda

Figura mítica da cena mineira, ex-baterista da banda punk Os Meldas, dono da casa noturna A Obra e… ufa!, organizador do incrível festival Primeiro Campeonato Mineiro de Surfe (que já chegou a 20 anos!), Claudão Pilha trouxe a Porto Velho o seu projeto O Melda. Homem de uma banda só, O Melda faz surf music com ótimas guitarras, programação e letras entre o sacana e o gaiato, na melhor acepção da palavra – é ouvir e se apaixonar por canções como “Bunita”, “Cervejinha Papai” e “Mexe a Bunda”, que você pode conferir aqui abaixo, com o som levemente estourado. Um dos shows mais simples e, talvez até por isso, mais divertidos do Casarão.

Pela primeira vez em sua história, o Casarão abriu espaço para os artistas do rap local – afinal de contas, dois dos três headliners do festival eram representantes fiéis do gênero. Com samplers de Baco Exu do Blues e batidas pesadas, O Flores foi o primeiro rapper a passar pelo evento, em uma apresentação que flertou com o rap clássico e também com as produções de Kendrick Lamar, mas sem grandes destaques.

Gabi Shimma

Também com bastante produção, a cantora Gabi Shimma trouxe a banda Subpop como ponto de apoio para seu som cheio de baladas e canções-açucaradas-com-versos-tristes, que poderiam estar na trilha de “Malhação” nos anos 2000. Mais ou menos na mesma vibração foi o show da Eugênio, de Sorocaba (SP), em uma mistura do Los Hermanos mais guitarreiro com uma pegada à la Two Door Cinema Club – combinação que poderia ter até embalado a plateia, mas foi prejudicada pelo som embolado.

Eugênio

Entre Gabi e Eugênio, uma das grandes surpresas do festival fez exibição de gente grande no palco menor do Casarão: O Tronxo, um power trio de Manaus. Bastante inspirados por bandas como Mars Volta e Explosions in the Sky, mas com um bocadinho de carimbó e guitarrada, o grupo traz bateria sacolejante (cortesia de Ajota) e linhas de guitarras muito bem trabalhadas por Rafa, enquanto o baixista Luiz faz a cama pra tudo soar fino. Se tinha pouca gente perto da grade quando o show começou, O Tronxo foi capaz de reunir um punhado bem razoável de curiosos em torno de si. Vale ficar de olho: os rapazes já estão gravando um EP para suceder o álbum de estreia “Dança Cósmica”, lançado em 2021 e disponível nas plataformas de streaming.

O Tronxo

Quem também empolgou os presentes, mas com uma sonoridade bem mais convencional, foi a banda local Darmma, liderada pelo carismático vocalista Gustavo Bonfante. Bem na linha revivalista de grupos como Greta van Fleet e Maneskin, cantando majoritariamente em inglês, o grupo fez uma apresentação correta, que teve dois pontos curiosos: uma cover de “Toxic” (Britney Spears) e uma canção interessante na última flor do Lácio, “Equilíbrio”. Na sequência, o Mezatrio, de Manaus, trouxe de novo Paulo Lins para os holofotes. Guitarrista e backing vocal na Eugênio, ele assumiu a frente do palco na sua banda de origem, cuja sonoridade lembra bastante a geração carioca dos anos 2000, de bandas como Moptop, Rockz e Som da Rua, além de paredes de guitarra à la Weezer. Um momento eficiente, um pouco prejudicado também pelo alto volume das caixas de som na Talismã 2 – e que fez muitas bandas equilibradas acabarem soando mais roqueiras ou distorcidas do que a intenção original ao longo do festival.

Darmma

Com a noite já avançada, era hora de forrar o estômago – e a escolha recaiu sobre um X-Bacon (R$ 26), cujo maior destaque era um curioso barbecue de goiabada, apelidado de “barbeguava” por O Melda. No antigo Melhor Hambúrguer da Cidade, levaria três e meia fatias de bacon, vale dizer. (Nos outros dias, a reportagem do Scream & Yell experimentou ainda um pastel (R$ 10) e um cachorro quente (R$ 13) da outra barraca ao lado, zerando as opções salgadas de comida do Casarão). Devidamente alimentado, foi a vez de verificar a performance de F-Dois, rapper de voz grave e que trouxe uma banda afinada para acompanhá-lo, com um som redondo, estiloso e palavras de ordem: “Cadê os yanomami?”.

F-Dois

Já passava da 1h da manhã quando o Plutão Já Foi Planeta subiu ao palco em sua estreia em Rondônia e em um dos primeiros espetáculos da nova vocalista, Cyz Mendes. Conhecida por participar da ópera-rock dos Titãs, “Doze Flores Amarelas”, e liderar o bloco de carnaval Casa Comigo, a rondoniense de Vilhena entrou no grupo em 2021, substituindo Natália Noronha. Abraçada pelos conterrâneos, Cyz ajudou o Plutão a fazer um show pop competente – na primeira vez em que o coro do público conseguiu encobrir a voz dos microfones no Casarão. O conjunto de Natal estava tão embalado que até emendou “última música” atrás de “última música”, atrasando um pouco a apresentação do Quilomboclada.

Plutão Já Foi Planeta

Não que isso tenha atrapalhado a banda local, dona de um espetáculo cheio de vigor. Com uma multidão de integrantes no palco, incluindo três vocalistas, o Quilomboclada defende a MPBéra – a música popular beradeira, da beira do Rio Madeira –, valorizando os povos ribeirinhos, indígenas e a cultura negra (vale a pena prestar atenção em “Afroindígena” e “Rei Zumbi”, duas pauladas que batem forte). Se em estúdio a banda soa bastante roqueira, ao vivo a mistura de guitarras e ritmos tradicionais coloca o grupo em alto patamar, na cartilha de bandas como Nação Zumbi e Baiana System. Outros dois momentos altos foram “Bate Cabeça Caboco”, trilha sonora óbvia para uma roda de pogo potente, e “Boicore”, em que uma dançarina encarnou o boi bumbá debaixo de bate-cabeça. Um baita show, que merece ser descoberto e rodar o País.

Quilomboclada

Já passava das 2h30 quando o homem que todos estavam esperando subiu ao palco: Emicida. Muita coisa mudou nos onze anos que separaram a primeira passagem de Leandro Roque de Oliveira pelo Casarão deste nosso ano de 2022 – e olha que nem é preciso falar do mundo lá fora, mas só olhar para a carreira do filho de dona Jacira. De talento que despontava no rap, começando a furar a bolha em 2011, hoje ele é um nome inescapável não só na música, sendo o cabeça-de-cartaz de inúmeros festivais em todo o país, mas na cultura e na política. Ciente dessa transformação e do tempo que passou longe de Porto Velho, Emicida fez um show diferente do que está acostumado nos últimos tempos, em uma grande volta às raízes.

Emicida

Em vez da banda que tem o acompanhado pela turnê de “AmarElo” pelo Brasil, Emicida trouxe para Rondônia uma formação enxuta, com apenas o DJ Nyack e o cantor Thiago Jamelão a seu lado. Não precisava de muito mais que isso para fazer uma ótima viagem no tempo, indo desde as origens com mixtapes e EPs (“Rua Augusta”, “Triunfo”), a estreia em álbuns (“Bang”, “Gueto”, “Levanta e Anda”), singles e projetos especiais (“Pantera Negra”, “A Chapa é Quente”) e claro, as grandes canções de “AmarElo”. Destaque aqui para “Ismália” e toda sua dor, mas também para “Pequenas Alegrias da Vida Adulta”, “Quem Tem Um Amigo Tem Tudo” e “Cananéia, Iguape e Ilha Comprida”, três carinhos no coração que não só mostram a força poética de um grande criador, mas também são capazes de fazer um povo todo se abraçar.

Só pelas canções, já teria sido suficiente, mas Emicida tinha entrega. Ele demonstrava estar realmente feliz por estar de volta a Porto Velho, e não economizou nas vezes em que foi conversar com o público, chegando até mesmo a tocá-lo com as mãos. Isso para não falar em como animou o coro de “ei Bolsonaro, vai tomar no cu”, fazendo um beat para que mais de mil pessoas cantassem juntas a uma só voz. (A produção do Casarão informou a presença estimada de 1,2 mil pessoas neste primeiro dia de festival).

Emicida

Mais do que só entrega, porém, ele também tinha o domínio de como encaixar seu repertório de forma a construir não só um espetáculo, mas uma noção pública, cívica, uma república federativa de gente disposta a resolver injustiças e se acolher num abraço e em versos. Hoje, talvez, não exista melhor tradução de acolhimento na canção nacional que a dupla “Hoje Cedo” e “Amarelo”, executada lá pelo terço final da apresentação – e que resume bem o espírito do show.

Emicida

Há dois, quatro, seis, cem, quinhentos e tantos anos, tem gente morrendo – mas se depender das palavras e da performance de caras como Leandro Roque de Oliveira, o amanhã não vai ser só um ontem com outro nome. E por falar em amanhã, a manhã já avançava lá pelas quatro horas quando Emicida saiu do palco em Porto Velho, ovacionado e deixando muita gente com lágrimas nos olhos e sonhos de um país melhor na cabeça.


Sábado – 21/05

Se a primeira noite do Festival Casarão foi marcada por uma seleção demarcada entre o pop-rock e o rap, com algum arroubo aqui e acolá, o sábado teve uma escalação bem mais eclética. Vamos lá: teve viola de cocho eletrificada, trap, psicodelia de refrões ganchudos, histeria jovem e rrrrock, bastante rrrrock – que o diga o pessoal d’O Retrô Ativo, primeiro show que a reportagem do Scream & Yell presenciou na Talismã 21. Entre o grunge e o nu metal, a banda liderada pelo vocalista Yves’s trouxe uma boa definição do rock sarado – o frontman não se furtou a tirar a camisa logo no início da apresentação, mostrando peitoral definido. Na sequência, a Subpop, de Vilhena, seguiu a cartilha do indie 00, entre guitarras mais presentes e uma sonoridade bem Los Hermanos.

Subpop

Primeira boa surpresa do sábado, Vinicius Mavi chegou prezando o “trap, o rap, o funk”, mas mostrou que flerta bem com outras sonoridades, trazendo banda com baixo, guitarra e programação. Ele sofreu um bocado com a microfonia, mas fez um dos shows mais sensuais do festival, entre o romantismo e a sacanagem. No palco maior, o mato-grossense Billy Espíndola tinha potencial para um grande show com sua guitarra de cocho – uma versão eletrificada da tradicional viola de cocho, instrumento típico do Centro Oeste. A invenção tem um som bonito, desperdiçado em releituras & clichês do rock clássico – ainda mais quando Billy abusa das covers (“Como Vovô Já Dizia”, de Raul Seixas, e “A Cidade”, da Nação Zumbi).

Vinicius Mavi

Vindos de Ariquemes, 200km distante de Porto Velho, Os Últimos bateram cartão mais uma vez no Casarão (depois de aparecerem em 2012, 2013 e 2014), fazendo um passeio pela sonoridade noventista do rock nacional. O destaque, mais uma vez, fica para a mão certeira da baterista Laura Branduber, que já havia se destacado na primeira noite acompanhando Marcos Biesek. Mas destaque mesmo vale para os Selvagens à Procura de Lei, donos de um show mais que correto, bem executado e com carisma. A plateia – formada principalmente por jovens e jovens adultos, muitos até com camisetas do grupo – cantou forte, fazendo até quem não dá bola para o grupo considerar uma segunda chance. Os cearenses impressionaram pela disposição pop – e fizeram até muita gente questionar porque eles tocaram tão cedo.

Selvagens à Procura de Lei

A seguir, foi a chance de conferir a nova encarnação de uma das bandas mais características dos anos 2000, o Matanza Inc. Liderada pelo compositor e guitarrista Donida, a nova formação traz Vital Cavalcanti (James, Jimi James) no lugar de Jimmy London – que tem excursionado pelo País com o Matanza Ritual. Se Vital não tem o mesmo porte físico do colega, ele compensa com presença de palco, uma voz impactante e gestual capaz de comandar os malucos e a roda de pogo. Em meio a canções novas (“Retórica Diabólica”, próximo disco do grupo, sai dia 10), um destaque das antigas: “Pé na Porta, Soco na Cara”. Para melhorar, só mesmo com um golinho de Jack Daniel’s.

Matanza Inc.

Nome forte da cena de Rondônia nas últimas duas décadas, tendo até gravado com Rick Bonadio, a Nitro fez um show sem força e sem sutileza, em que o melhor momento foi uma releitura inesperada de “Minha Mente Ainda é a Mesma”, de Edgard Scandurra. Já quem mostrou balanço e se destacou um nível acima dos demais foram Os Descordantes, do Acre, com pegada pop e bons refrões com sabor de Jovem Guarda – cortesia do teclado de Heriko Rocha. As versões bem sacadas para “Cumbia do Amor” (Calypso) e “Você Me Vira A Cabeça” (Alcione) foram bons complementos ao repertório do grupo, com destaque para a balada fofa (e muito cantada pela plateia) “Enquanto Puder”. Uma pena que o grupo – parceiro de cena dos Los Porongas – esteja em hibernação.

Os Descordantes

A madrugada já ia longe, lá pela uma da madrugada, quando a cantora local Gabriê subiu ao palco – não sem um pequeno atraso para ajustes de som. Ex-participante do ‘The Voice Brasil”, ela tem uma voz bonita e trouxe para o Casarão uma banda completa, com direito a sanfona e flauta transversal, mas engasgou em uma sonoridade que funcionaria bem num teatro, mas não num espaço aberto como a Talismã 2. Alguns ajustes de arranjos e as canções da artista, que passeia por um universo da MPB anos 80 (eu ouvi Leila Pinheiro?), poderiam ter funcionado muito melhor.

Daniel Groove

“Presidente” do Festival Casarão, com passagens pelo evento em suas duas décadas, o cearense Daniel Groove já havia dado as caras algumas vezes pela Talismã 2, seja participando do show dos Descordantes ou apresentando O Tronxo. Quando foi sua vez de subir ao palco, com camisa florida e calça colada, maquiagem e muito carisma, ele fez o concerto mais buena onda dos três dias em Porto Velho. Apoiado pelos acreanos do Descordantes, em uma formação que parecia ensaiada há meses, Groove mostrou romantismo (“Jardim Suspenso” e “Nada” são baladas que Roberto Carlos cantaria se tivesse a moral de pintar o olho), refrões massa e empolgou os presentes, indo pro meio da plateia e transformando a pista em bailão. Coisa linda, daqueles momentos que fazem a gente sorrir de orelha a orelha só por amar a música. Pra fechar, teve ainda Rashid – acompanhado com empolgação pelos presentes, em especial no hit “Bilhete” –, mas os joelhos pediam arrego.


Segunda – 23/05

No domingo, o Casarão teve um dia gratuito, com entrada liberada para quem doasse 2kg de alimento não perecível ao Núcleo de Apoio à Criança com Câncer (NACC). No cartaz, mais bandas locais, como Nitro e Distopia, além de um repeteco da apresentação de Daniel Groove com Os Descordantes, substituindo Beto Bruno de última hora – o ex-vocalista da Cachorro Grande estava escalado para o evento, mas cancelou a poucos dias da viagem. Vitimada pelo cansaço acumulado e por um rodízio de peixe inesquecível no Barracão do Jair, a reportagem do Scream & Yell bem que tentou chegar ao festival. No entanto, a dificuldade de transporte (com motoristas de aplicativo cancelando as corridas) até a Talismã 2, que fica distante do centro da cidade, impediu o time de conferir os shows. Ficou, porém, a curiosidade pelo som da Wari, de Porto Velho, e da Kanichi, de Palmas (TO), muito elogiados por quem conseguiu chegar até a casa de espetáculos.

O dono da camiseta mais bacana do festival

Já na segunda-feira, com a barriga forrada por uma combinação deliciosa de tacacá (com pouca goma!) e croquete de macaxeira com carne moída diretamente do Tacacá da Tenreiro, no centro de Porto Velho, a reportagem do Scream & Yell partiu para o derradeiro dia da cobertura do Festival Casarão. Com um público total em torno de 700 pessoas, o último dia da volta do evento foi também aquele que talvez melhor justifique seu possível retorno em temporadas futuras. Não só por grandes apresentações de Otto, Terno Rei e Dead Fish, mas também por unir audiências bastante diferentes em um só local – um desafio para a cabeça de qualquer produtor de eventos no Brasil.

A fila da Festa da Sofrência

Por falar em eventos, vale o registro: em plena véspera de feriado na capital de Rondônia, o Casarão tinha a companhia da Festa da Sofrência, realizada na casa de shows ao lado, a Talismã 1, com capacidade para mais de 10 mil pessoas. Do lado de lá, o lineup era liderado por Thierry e Maiara & Maraísa – enquanto no after, tinha até um trio elétrico preparado para quem se dispusesse a curtir depois de chorar, capaz de fazer versões reboleiras de “Vamos Pra Gaiola” e “Parado no Bailão”. Mais do que só a companhia, porém, o evento bloqueou a avenida de acesso ao local do Casarão, mostrando a força de vontade de quem compareceu ao festival. Não basta ser indie: tem que caminhar!

Carvoli

Quem abriu os trabalhos da noite, com pista quase vazia, foi O Ás do Circo, power trio que seguia o rock’n’roll de cartilha, sem nenhum grande destaque. Com um pouco mais de público, a Carvoli mostrou letras confessionais e canções marcadas por guitarras acentuadas e muitas quebras de andamento, caminhando pela mesma trilha aberta por Muse e Fresno. Se o som não prima pela originalidade, a banda liderada pelo guitarrista Rafael Izidoro (que já tinha aparecido no Darmma na sexta-feira) trouxe nas projeções uma boa sacada: em vez de animações, o que aparecia no fundo do palco eram as letras da banda, prontas para a plateia acompanhar, além de um ocasional “Fora Bolsonaro”.

Beradelia

Na sequência, dois rappers mostraram suas palavras no Casarão. Em uma apresentação curta, abaixo dos 30 minutos regulares, King ST trouxe rimas convencionais e batidas à moda do rap paulistano de São Paulo dos anos 00. Já Gordon, que tem participação em música no YouTube com mais de 2 milhões de visualizações (“Melhor do Que Ontem”), esquentou o clima de uma noite quente, com o auxílio luxuoso do saxofonista Eliel Ferreira. E pra fechar a primeira parte da segunda-feira, a banda local Beradelia botou todo mundo para dançar na roda com sua mistura de rock com ritmos regionais – vale conferir o single “Moleque Doido da Baladera”, que abriu a apresentação, para entender a proposta. Destaque ainda para o guitarrista Rômulo Oliveira, de cabelos longos e bons solos.

Burning Rage

Primeira banda visitante da noite, o Burning Rage, de Goiânia, trouxe hardcore veloz e refrões gritados para o Casarão, executando o clássico do gênero e ligando os transistores para quem esperava o Dead Fish horas depois. O show, que teve a estreia de várias canções em um palco e foi dos primeiros da banda desde o início da pandemia, também estreitou uma ponte importante entre o festival de Porto Velho e seu colega goianense, o Goiânia Noise, que aconteceu no mesmo final de semana.

Terno Rei

Sensação indie de 2022, o Terno Rei subiu ao palco maior do Casarão em dia de Beatlemania: tinha fãs adolescentes com camiseta da banda, gritos de “lindo, tesão, bonito e gostosão” e muita, muita histeria. Em sua estreia em Rondônia, o quarteto paulistano fez um passeio não só pelas canções de “Gêmeos”, disco lançado em abril, mas também por faixas de sua história – com destaque especial para “Yoko”, que não estava no setlist e apareceu a pedido da plateia.

Do começo com “Esperando Você” ao fim com “Dias da Juventude”, o público acompanhou Ale Sater cantando quase todas as letras, sinal claro de que o grupo subiu seu patamar de popularidade no cenário nacional. No entanto, ao mesmo tempo em que mostrou a força do repertório atual do Terno Rei, a apresentação em Porto Velho também evidenciou a proximidade de uma encruzilhada para a banda.

Terno Rei

De um lado, era possível perceber que o calor da plateia surpreendeu o quarteto, cheio de sorrisos durante a noite. Do outro, porém, ficou a impressão de um grupo que não sabe bem o que fazer com o sucesso – apesar da simpatia, Ale e seus companheiros falaram pouco, não puxaram palmas em momentos de refrão óbvio e perderam oportunidades para fazer o público se deixar (e)levar, como se recusassem esse calor. Entre esses dois mundos, o Terno Rei precisará entender se quer usar seu potencial para ser uma banda popular, digna de encabeçar a noite de um festival em qualquer canto do Brasil, ou se pretende ficar restrita ao mundinho indie. É uma pergunta que precisa de uma resposta rápida, antes que os aviões parem de passar pelas redondezas – mas, vale o aviso, que não necessariamente envolve concessões exageradas.

Coveiros

Ale Sater e seus companheiros ainda desligavam os instrumentos no palco quando o clima mudou completamente no Casarão. Também, pudera, pois era a hora de uma instituição local aparecer: a banda Coveiros, dona de uma mistura entre thrash metal e hardcore potente, capaz de ir além dos clichês. Liderado pelo vocalista Giovanni Marini (e professor universitário de geografia nas horas não-vagas), o veterano grupo fez uma exibição digna, entremeando canções curtas, gritos de protesto, discursos inspirados defendendo a democracia e excitação para a roda de pogo – antes de começar o show, Marini deu o tom da coisa: “quem não gosta de violência vai para longe”. Sangue e porrada na madrugada.

Dead Fish

E por falar em potência, o Dead Fish fez uma apresentação cheia de poder, suor, fúria e beleza em Rondônia. Há 11 anos sem passar por Porto Velho (“eu tava com saudade de ouvir ‘ei, Dead Fish, vai tomar no cu’ aqui”, comemorou o vocalista Rodrigo), a banda trouxe canções de todas as suas fases, dos hits de alta rotação “Zero e Um” e “Queda Livre” até a recente “Sangue nas Mãos”, que inspiraram a maior roda do festival. O encerramento, claro, ficou com “Bem Vindo ao Clube”.

Dead Fish

Alma do conjunto capixaba, Rodrigo foi um show à parte. Ele fez discurso à favor de Lula (e vestiu um boné “Make Lula President Again”, objeto de desejo da plateia), rodou o palco, jogou o microfone para todos os lados, se ajoelhou e pulou como um menino, aproveitando a cama bem tramada por Ric Mastria (guitarra), Igor Tsurumaki (baixo) e Marcos Melloni (bateria). Nem parecia que a banda estava completando 30 anos de idade (ou melhor, 30+1, por conta da pandemia). Bonito demais de ver.

Dead FIsh

Presente nos quatro dias de festival graças aos seus bastões infláveis, distribuídos gratuitamente, coube à Distopia a tarefa de ser a última banda local do Casarão – mas o som do grupo, muito calcado no rock contemporâneo que ainda tem como única missão frequentar as paradas de sucesso, não justificou a missão. Mas ressalva seja feita que, naquele momento, já era mais de uma da manhã e boa parte do público não tinha mais o mesmo entusiasmo depois de quatro dias de festival. Muitos dos presentes, inclusive, deixaram o recinto após o show do Dead Fish.

Otto

Melhor para quem ficou até o final e pode, a partir das duas da manhã, ver aquele que foi o melhor show da noite – e na visão de Vinicius Lemos, diretor do Casarão, possivelmente um dos melhores da história do festival: Otto. Acompanhado de um power trio – Junior Boca (guitarra), Meno del Picchia (baixo) e Samuel Fraga (bateria) –, o cantor pernambucano estava feliz demais por fazer sua estreia em Rondônia.

Otto

Talvez justamente por isso, ele evitou fazer um show calcado em seu trabalho mais recente, “Canicule Sauvage”, lançado no final de abril e gravado quase todo em casa, em meio à pandemia. No lugar das novas canções, Otto fez um passeio pelo melhor de seu repertório, mas com uma clareza capaz de agradar iniciantes e iniciados em sua obra – e disso coube de tudo um pouco, do pop-rock de “Pelo Engarrafamento” às raízes com “Bob” e “Ciranda de Maluco”, passando, claro, pelo repertório de seu melhor disco, “Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos”. Dele, saíram dois dos momentos mais altos do show: “Crua” e “6 Minutos”.

Mais do que só uma bela sequência de canções, porém, o que se viu em Porto Velho foi um artista entregue, mas muito ciente de seu papel. Ao contrário do que se pode ver em outras temporadas, quando Otto parecia que ia entrar em plena combustão no palco, no Casarão o pernambucano se mostrou muito equilibrado, consciente do que queria fazer, dizer e transmitir ao público.

Otto

Sem se importar com os espaços vazios na pista – uma conta de cabeça chutaria que havia ainda uns 200 resistentes no local –, Otto fez questão de fazer um espetáculo e se conectar com a cidade, a ponto de até improvisar uma canção com o refrão “vou pra Porto Velho”. E como se ainda precisasse de mais alguma coisa, ele mandou todo mundo pra casa feliz homenageando o mestre Chico Science, com o clássico “A Praieira”. Afinal, uma cerveja a qualquer hora do dia é muito bom pra ficar pensando melhor.

O X-Bacon com barbecue de goiabada

Ao final de quatro dias, o Casarão teve muita música boa do país inteiro. Foi capaz não só de alinhar a diversidade de um cenário musical rico e complexo, mas também de aproximar audiências diversas em um só local – um exercício divertido, claro, mas acima de tudo democrático. Seja gostando de pop ou de hardcore, de rap ou de rock cabeçudo, somos todos iguais nessa noite (e queremos um país em que a cultura seja um pilar importantíssimo da sociedade). Houve defeitos? Sim, claro – e em especial, o som alto demais em diversas apresentações). Mas a força dessa reunião, ainda que fosse possível ter público maior nas três noites finais do festival, mostra sua importância em Rondônia e no cenário nacional, com os ventos do Norte movendo moinhos. Que venha, se possível, o Casarão 2023!

Os sete shows favoritos de Bruno Capelas (@noacapelas)
01) Emicida
02) Otto
03) Dead Fish
04) O Tronxo
05) Quilomboclada
06) Daniel Groove
07) O Melda

Os sete shows favoritos de Marcelo Costa (@screamyell)
01) Emicida
02) Otto
03) Daniel Groove
04) O Tronxo
05) Quilomboclada
06) Os Descordantes
07) O Melda

– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie, na Eldorado FM, e é autor de “Raios e Trovões – A história do fenômeno Castelo Rá-Tim-Bum”, editado pela Summus Editorial. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.

O Scream & Yell viajou para Porto Velho a convite da produção do Festival Casarão.

Leia também:
– Assista a 15 vídeos do Festival Casarão 2014, por Marcelo Costa (aqui)
– Balanço: os destaques do Festival Casarão 2013, por Marcelo Costa (aqui)
– Balanço: os destaques do Festival Casarão 2012, por Marcelo Costa (aqui)
– Balanço: os destaques do Festival Casarão 2010, por Tiago Agostini (aqui)

2 thoughts on “Balanço: Festival Casarão festeja 22 anos com grandes shows de Emicida, Dead Fish, Terno Rei, Otto, Daniel Groove e O Tronxo

  1. Muito boa a cobertura. Morei em Porto Velho numa época em que seria impensável ter um festival desses moldes. E foi emocionante ver meu filho na primeira fileira da primeira foto, com cara sofrida (mas ele estava feliz). Que o festival volte a se consolidar.

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