entrevista por Leonardo Tissot
Quem viveu seus 20 e poucos anos na virada do milênio já começa a ter seus primeiros cabelos brancos, a levar a saúde um pouco mais a sério e a ter uma certa nostalgia (ainda que ela passe rápido) das aventuras vividas no auge da juventude. É justamente por essa nostalgia que a HQ “Um Lugar do Caralho”, de Thiago Krening, tenta agarrar o leitor.
Ao contar a história de um grupo de jovens amigos — Carlo, Mica, Daniel e Lia, estudantes universitários em Santa Maria (RS) —, Krening provoca um turbilhão de memórias nos leitores que viveram o início dos anos 2000 no interior gaúcho e, por que não, em outras regiões do Brasil.
Das longas filas para entrar nas boates mais populares (que tocavam as mesmas músicas de sempre), até a descoberta de espaços mais, digamos, alternativos (que também tocavam as mesmas músicas de sempre, mas pelo menos eram as “nossas” músicas), em meio à fumaça de cigarros e a copos plásticos cheios de cerveja barata, a HQ explora bem o espírito da época.
Embora seja bastante específico — o “lugar do caralho” do título é a Boate do DCE da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) —, o quadrinho também permite que leitores que não vivenciaram essa fase da vida na cidade gaúcha possam se identificar com os relacionamentos, perdas e experiências dos quatro amigos que protagonizam o trabalho.
A música, é claro, também surge como um dos personagens principais na narrativa — inclusive, com citações a letras de canções de Raul Seixas, The Doors, Ramones, Chico Science e Nação Zumbi, Cachorro Grande, TNT, Bidê ou Balde e, é claro, Júpiter Maçã (que batiza a HQ com o título de um de seus hits), entre outras. A playlist completa está no Spotify.
“Um Lugar do Caralho” ainda é o primeiro lançamento da editora hipotética, empreendimento de Fabiano Denardin e Iriz Medeiros que se posiciona como “uma ideia que foi galeria e agora é editora para publicar quadrinhos (mas não só)”.
Em um papo com Scream & Yell, Krening falou um pouco a respeito da importância da música no quadrinho, do diálogo com leitores que não viveram a experiência universitária no interior gaúcho e das chances de termos spin-offs envolvendo os personagens de “Um Lugar do Caralho”.
A forma como a música é inserida na HQ — principalmente com as letras preenchendo o ambiente — é muito interessante e coloca o leitor dentro da Boate do DCE. Confesso que não me recordo de ter visto a música representada dessa forma em outro quadrinho. Como você desenvolveu essa ideia e de que forma acredita que as canções ajudam a contar essa história?
Desde que tive as primeiras ideias para a HQ, eu queria que a música tivesse um papel central na narrativa, justamente porque era uma das coisas mais marcantes da boate. Eu fiz muitos esboços e busquei várias referências em ilustração para encontrar uma maneira de fazer essa integração de um jeito interessante. Lembro de pensar, em algum momento, que a música precisava estar “incrustada” no ambiente, preencher mesmo o espaço entre as pessoas, nas paredes, por tudo. Além da questão estética, eu também queria que as músicas tivessem alguma relação com as situações que fossem apresentadas. Enquanto escrevia o roteiro, eu tentei encaixar da melhor forma que consegui as letras e o que elas diziam com o que se passava nas cenas. Claro, nem todas têm uma relação direta, mas fiz um esforço consciente para que houvesse essa outra camada na narrativa. Acredito que essa conexão ajuda a construir melhor as situações e os personagens para além do que está acontecendo objetivamente nas cenas.
Os “espaços alternativos” com cerveja barata e muito Raul Seixas, Doors e rock gaúcho eram comuns não apenas em Santa Maria, mas também em outras cidades do interior do RS. Acha que “Um Lugar do Caralho” consegue ser uma história universal? Você chegou a ter algum feedback de leitores de outros estados brasileiros que tenham tido essa mesma experiência de “viagem no tempo” que a HQ provoca em leitores gaúchos?
Esta foi outra questão com a qual me preocupei desde que comecei a escrever a HQ. A ideia era, claro, fazer esse resgate bem específico da Boate do DCE em Santa Maria, mas eu também queria que a história funcionasse para além disso. Tentei então trazer situações que são mais ou menos universais dentro desse contexto de faculdade e início da vida adulta. O tema central da história sempre foi a nostalgia, então quis de fato mostrar os personagens vivenciando e conversando sobre isso, além de mostrar situações e preocupações dessa época da vida. Recebi alguns feedbacks e é muito interessante ver como diferentes elementos funcionam para diferentes leitores. Para alguns, as lembranças da Boate do DCE são o ponto central, enquanto para outros a música ou a relação e desenvolvimento dos personagens são as questões de maior apelo. Mas também recebi retornos mais específicos, do tipo: “ah, na minha cidade tinha tal lugar que era bem assim”. Essas trocas têm sido uma das coisas mais legais do projeto pra mim.
Acredita que pode voltar a contar histórias desses personagens no futuro? A sensação que fica é de que há muitas possibilidades a serem exploradas em outras HQs. Como as descobertas relacionadas à sexualidade ou o que aconteceu nos intervalos de anos que entrecortam a história…
Vou mentir se disser que isso já não me passou pela cabeça. Inclusive porque em Santa Maria existiam outros lugares alternativos nessa época que poderiam ser pano de fundo para outras histórias no estilo. Por outro lado, eu gosto da ideia de ter algumas elipses na história que permitam que os leitores imaginem essas situações por conta própria. Foi proposital deixar algumas possibilidades em aberto na HQ.
– Leonardo Tissot (www.leonardotissot.com) é jornalista e produtor de conteúdo
Cara…vou atrás