Ao vivo: Don L exibe canções candidatas a clássico cantadas em coro por um público apaixonado em show esgotado em SP

Em duas noites absolutamente lotadas e celebradas, Ana Frango Elétrico e Don L apresentaram seus discos candidatos a clássicos da nova música brasileira praticamente na integra na Casa Natura Musical, em São Paulo, para públicos que sabiam todas as canções de cor, e fizeram questão de deixar isso bem claro, cantando do começo ao fim as músicas de, respectivamente, “Little Electric Chicken Heart” (em seu show de despedida do disco) e “Roteiro Pra Aïnouz, Vol. 2” – dois discos premiados pela APCA (em 2019 e 2021). Abaixo, saiba as impressões do show de Don L e aqui as do show de Ana Frango Elétrico no dia anterior.

Don L na Casa Natura Musical, 06 de maio
texto e fotos por Marcelo Costa

Na sexta feira, o friozinho de 19 graus da noite anterior chegou mais forte, mas não afastou o público de Don L, que já tinha comprado todos os ingressos disponíveis antecipadamente e marcou presença em peso para cantar as faixas do disco mais socialista e revolucionário (no sentido de propor revolução mesmo) da música brasileira nos últimos anos, repleto de faixas com versos que convidam ao coro, arrepiam a alma na busca por resgatar figuras históricas combatendo o anticomunismo e o falseamento da história.

No palco, Don L surge acompanhado por Alt Niss e Terra Preta mais DJ Roger, que abre a noite falando em resistência diante daqueles que “querem tirar nossa dignidade, a nossa paz” para concluir “somos fortes, somos vencedores, somos muito mais! Ninguém vai derrubar a gente” e convocar Don L. Um “amém” do público é a deixa para que a voz do Pastor Júnior Trovão ecoe no ambiente clamando por tomada de posição: “Você tem que entender que enquanto você não for capaz de contar a sua história, sua história vai virar uma piada na boca do Diabo, sua história vai virar uma peça teatral, pro Diabo apresentar e fazer você chorar”.

O primeiro candidato a clássico de “Roteiro Pra Aïnouz, Vol. 2” surge na sequência, “vila rica”, e traz o público fazendo os backings na canção que coloca lado a lado a história do artista cearense, a do hip-hop nordestino e do próprio país em citações de Ouro Preto (Vila Rica), Canudos e do quilombo de Palmares – impossível não se emocionar com todo o público presente cantando o trecho que Mateus Fazeno Rock (ecoando Jorge Ben) canta no disco: “toda canção do meu amor na alma / em direção ao sul / eu tenho uma cavalaria inteira em minha retaguarda / em direção ao sul”.

Segue “a todo vapor”, com Don L rememorando fatos pessoais (de acidente a amigos que ficaram para trás a matérias em revistas) com um refrão poderoso (“e tem sido um voo foda / ah, ah, a todo vapor”) e “pânico de nada”, com o rapper pedindo ao público: “Toda vez que eu falar ‘pânico de que?’ vocês respondem ‘pânico de porra nenhuma”. Essa é a faixa incendiária que visualiza o início da revolução já na primeira frase: “eu vejo uma viatura em chamas (primeiro passo, irmãos, primeiro passo)” com Terra Preta reforçando na voz.

Dois (futuros) clássicos que, no disco, surgem mais pra frente, são antecipados no show: “auri sacra fames” (com a linda introdução d’Os Originais do Samba: “o ouro afunda no mar (no mar) /madeira fica por cima (por cima) / ostra nasce do lodo (do lodo) / gerando pérolas finas”), com Don L começando na parte 3 da música (as duas primeiras, no disco, são de Tasha e Tracie) e a pesada “favela venceu”, com seus versos que soam como faca no pescoço da milicia: “a gente num enterra a gente planta / a gente num ganha a gente vence / a gente num pede a gente manda / favela venceu / a gente num curte a gente ama / a gente num quer a gente tem que / a gente merece a gente banca” em meio a citações de Marighella, Marielle, Sabotage e Milton Santos.

O som que sai pelas caixas é grave, pesado e com vozes absolutamente nítidas e de fôlego (aprende, Baco, aprende). O público responde de forma intensa entoando o coro que foi gritado nas ruas do Chile em resistência a ditadura que derrubou Allende: “Lutar, criar, poder popular; Lutar, criar, poder popular”. Don L responde: “Tudo que eles dizem que é impossível é o que nos interessa”. Outra faixa com jeitão de clássico moderno surge, “primavera”, e emociona ver todo o público cantando com Alt Niss “a única luta que se perde é a que se abandona e nós nunca / nunca abandonamos luta, nunca, nunca / hay que endurecer sem nunca sem nunca perder a ternura”. O rapper então deixa o álbum para revisitar seu disco de estreia, “Caro Vapor”, de 2013, com “Depois das 3”, mas logo retorna com a rapper Alt Niss assumindo os vocais iniciais em “contigo pro que for”.

O desenho do palco traz apenas DJ Roger elevado de um lado com sua pick-up e seus iMacs e, do outro, um púlpito de igreja circundado de luzes vermelhas, e é desse púlpito que Don L canta a próxima, a impactante “pela boca”, do genial verso “o meu bonde é do Mao com O / boladão tipo Malcolm X / eles dizem que é mau com U / é porque eles tão mal com L”, que identifica muita gente desse quinhão bolsonarista capitalista por aí que se vende como mau, mas na verdade está morta por dentro (mal). O final, com toda Casa Natura entoando o refrão “vai morrer” e DJ Roger emendando “é, eles têm que ter medo de nós” foi mais um momento de arrepiar.

“Eu Não Te Amo” e “Cocaína” rememoraram “Roteiro Pra Aïnouz, Vol. 3” (2017), mas logo o quarteto voltou para o disco mais novo com “enquanto recomeçar” (“Nós derrubamos status / Implodimos estátuas / Invadimos mansões”) e “bingo” (“Papo de mérito é tipo policial honesto / Tu sabe que é folclore / Pra uns papai noel existe (certo) / Pra outros é só o corre”). Outra faixa da estreia, “Beira da Piscina” (com refrão cantado em coro) e um single de 2021, “Batida da Procura”, dão uma acalmada nos ânimos com batidas mais suaves, mas “élewood” e, principalmente, “volta da vitória”, com citação de “us mano e as mina”, de Xis, incendeiam o lugar novamente. “Aquela Fé” encerra a primeira parte da noite.

Para o bis pedido de maneira alta pelo público estava previsto no set list apenas “Morra Bem, Viva Rápido”, que foi celebradíssima, mas quem diz que o público presente se aquietou. “Chips (Controla Ou Te Controlam)” então surgiu (rememorando os tempos de Prata da Casa deste jornalista) para colocar ponto final numa noite antológica (o público, porém, seguiu pedindo “mais um” mesmo com as cortinas da casa se fechando) que celebrava um disco antológico. No sábado, Don L voltou para mais uma noite de ingressos esgotados na Casa Natura Musical mostrando que, com mais um discaço debaixo dos braços, vive um grande momento. Que o país siga o seu exemplo.

– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.

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