Entrevista: Ratos de Porão num papo sobre Brasil, pandemia, indústria farmacêutica, genocídio e “Necropolítica”, o novo álbum

entrevista por Homero Pivotto Jr.

O novo álbum do Ratos de Porão, batizado apropriadamente de “Necropolítica”, é uma obra que conecta passado e presente. Dos tempos de hoje, carrega um relato lírico que contempla acontecimentos recentes na visão sagaz e irônica do vocalista João Gordo, autor das letras. Títulos de músicas como “Alerta Antifascista”, “Aglomeração” (que saiu como single em 9/4), “Passa Pano Pra Elite”, “Intubado” e “Neo Nazi Gratiluz” dão dimensão das inspirações do músico, resumindo conteúdos baseados no cenário distópico que nos rodeia. De outrora, o registro, considerado pela banda como o 13º de estúdio, resgata o instrumental mais “metalzinho” old school de clássicos lançados pelo maior expoente do punk/hardcore/crossover do país — quiçá da América Latina — entre 1987 e 1991 (a saber, a trilogia “Cada Dia Mais Sujo e Agressivo”, “Brasil” e “Anarkophobia”).

Voltando à questão temática, “Necropolítica” carrega semelhanças com o (infelizmente ainda) atemporal “Brasil” (1989), em que o RDP documentou um olhar crítico da época — com a suposta volta da democracia, as incertezas sobre o fim da ditadura, as dificuldades financeiras e a falta de perspectiva dando o tom. Mas o material mais recente vai além, carregando a cicatriz de ser um trabalho concebido em condições adversas — o que, de certa forma, contribui para marcar o disco como um retrato ainda mais verdadeiro do momento em que foi criado.

“Foi meio de susto. O Jão tinha um monte de base, o Juninho tinha um monte de vontade. Eu não tinha nada, só preguiça e saco cheio. Pensava: ‘eu vou morrer e vai acabar por aqui, o ‘Século Sinistro’ é o último disco’. Aí o Juninho juntou as forças dele, pegou a bike e foi lá na vila Piauí (onde mora o Jão). Olha só que esforço! Ele e o Jão montaram umas bases, aí ele pegou e foi pra Santos, encontrou o Boka e fizeram mais coisa. Não tem quase participação minha na composição. As faixas são exclusivamente dos três. A hora que eu vi tinha 12 músicas pra colocar letra”, conta João Gordo.

O baixista Juninho, um dos articuladores para que álbum previsto para sair em 13 de maio realmente se concretizasse, complementa: “A gente viu que a pandemia não ia ser uma coisa que acabaria rápido. Falei: ‘puta mano, se a gente não fizer um disco agora…’. (…) A partir do momento que começou não podia parar. E foi meio na loucura. Até falava pros caras: ‘ó, vamos fazer a pré e uma semana depois já tamo no Family Mob (estúdio) pra gravar’. Dá um susto, mas se não for desse jeito, não rola. Nem decoramos as músicas. Tinha faixa ali que tocamos uma vez e na outra semana gravamos”.

O baterista Boka arremata: “Lembro que quando o Gordo tava escrevendo a letra, dei uma olhada, e falei: ‘caralho, brother, todas esculhambando com a família fascista brasileira. Tudo a mesma coisa!’ E o Gordo: ‘Foda-se!’ A gente nunca teve tão irritado e se sentiu tão combativo por ter essa ascensão do pseudo neofascismo aqui no Brasil. Estamos tão ‘p da vida’ que não tinha como sair outra coisa na parte das letras.”

Na entrevista a seguir, Boka, João Gordo e Juninho — três quartos dos integrantes da formação atual, que tem ainda o fundador Jão (guitarra) — falam sobre “Necropolítica” e temas relacionados. Em pauta, temos reflexões sobre o processo de composição, análise da situação do país, a pandemia, atividades durante o isolamento, indústria farmacêutica, a relação entre a falta de oxigênio e medicamentos em Manaus (que levou ao aumento de mortes na cidade, durante a crise sanitária, em 2021) com detalhe Sabbhatico na ilustração da capa e até planos de um futuro lançamento finalizado em meio ao caos do coronavírus. Trata-se de um EP com releituras do ícone hardcore finlandês Terveet Kädet e intitulado “carinhosamente” de “Isenton Pau no Cu”. Assista ao bate papo na integra abaixo ou leia a transcrissão da entrevista a seguir.

Faltou só o Jão nesse papo, pois parece que o cara tá com um celular não muito moderno, que dificulta esses papos online.
Juninho — É nada, cara. O celular do Jão é o mais moderno de todos. É um iPhone.

João Gordo — Mas é um iPhone meio véio, né?

Boka — Ele contou pra mim uma história diferente, que não dava pra instalar, que o celular dele tava podre.

Juninho — O meu celular eu nem tô usando, põe o bagulho no computador.

João Gordo — É que o Jão é dos anos 1970, cara. Ele é moderno, mas é antigo ainda. Falou em instalar pra ele já fodeu, não vai querer fazer se tiver de instalar algo.

“Necropolítica”, pelas minhas contas, é o décimo primeiro disco de inéditas da banda. Confere?
Juninho — Pô, precisa contar aí, cara.

João Gordo — Eu não sei muito, mas conto como o décimo sexto. Contando tudo que saiu, ao vivo, o “Sistemados pelo Crucifa”… Eu calculo pelos LPs que tenho em casa. Disco mesmo acho que deve ser décimo terceiro, não?

Juninho — Vamos contar: “Crucificados pelo Sistema”, “Descanse em Paz”, “Cada Dia Mais Sujo e Agressivo”, “Brasil”, “Anarkophobia”, “Just Another Crime in…Massacreland”, “Carniceria Tropical”, “Onisciente Coletivo”…

João Gordo — Mas não conta o “Ao Vivo”? Ao vivo é disco também!

Seriam só os de estúdio.

Juninho — Vamos lá… “Homem Inimigo do Homem” e “Século Sinistro”. É isso aí, décimo primeiro.

Considerando esses trabalhos de estúdio, o RDP tinha até a metade dos 2000 lançamentos com relativa assiduidade. Mais ou menos de quatro em quatro anos, no máximo. Aí do “Homem Inimigo do Homem” (2006) para o “Século Sinistro” (2014) foram oito anos — mesmo tempo até esse material que tem lançamento em maio de 2022. Queria saber de vocês quais as questões mundanas que fazem com que a produção seja mais espaçada.
João Gordo — Well… Primeiro eu acho assim: banda que lança disco todo ano meio que fode, né? Porque os fãs não têm nem tempo de digerir o que está sendo lançado e já tem outro saindo. Tipo Napalm Death, o Krisiun é assim também. Penso que quatro anos é um bom tempo. Agora oito anos? Aí tem desleixo, o fato de a gente ser uns velhos que moram longe um do outro e tem preguiça de ensaiar. Pra nós ensaiar é meio complicado. O Boka vem lá de Santos, e sempre foi meio complicado manter um ritmo de ensaio. Então, por isso que demora tanto assim.

Juninho — É um esquema meio Racionais.

João Gordo — Pelo menos as pessoas digerem bem o disco que foi lançado, vai pra outra geração (risos).

Boka — Tem uma questão também assim, brother: do “Carniceria Tropical” pra frente, a gente começou a compor quando tinha ideia, né? Porque ficou uma época meio sem ideia, aí sai umas músicas meio ruins. Sei lá, meu. Quando vem a vontade, tipo “tô cheio de ideia”, aí vai fazendo as músicas. E quando não tem ideia, não tem.

O vocalista João Gordo em show no La Iglesia, dez de 21 / Foto de Fernando Yokota

Tanto pelo material de divulgação quanto pelas redes sociais da banda ou integrantes, tem se divulgado que a pandemia teve papel preponderante na questão de lançar o álbum agora. Isso porque já estaria rolando alguma enrolação de vocês? Ou tem uma pegada meio “vamos fazer isso logo, a gente não sabe se alguém da banda pode morrer”? Talvez a ânsia de escrever sobre o clima que o país vive no momento?
João Gordo — Acho que foi meio de susto. O Jão tinha um monte de base, o Juninho tinha um monte de vontade. Eu não tinha nada, só preguiça e saco cheio. Pensava: “eu vou morrer e vai acabar por aqui, o ‘Século Sinistro’ é o último disco”. Aí o Juninho juntou as forças dele, pegou a bike e foi lá na vila Piauí (onde mora o Jão). Olha só que esforço! Ele e o Jão montaram umas bases, aí ele pegou e foi pra Santos, encontrou o Boka e fizeram mais coisa. Não tem quase participação minha na composição. As músicas são exclusivamente dos três. Tem som do Boka, do Jão, do Juninho… Então, foi de susto. A hora que eu vi tinha 12 músicas pra colocar letra. Caiu no meu colo, meio “se vira aí, meu”. Eu tentei arrumar ali, diminuir aqui, só que não dava mais tempo.

Juninho — Teve o lance que a gente viu que a pandemia não ia ser uma coisa que acabaria rápido. Falei: “puta mano, se a gente não fizer um disco agora…”. Era o momento, porque não estávamos fazendo show ou tour. Deu esse esforço a mais de todo mundo. O Gordo fez um monte de letra de última hora, a gente não conseguiu ensaiar muito por causa da pandemia. Então, foi um disco feito meio diferente mesmo. Lembro que eu peguei umas ideias do Boka gravadas no meu computador que eram de 2017. Fala aí, Boka!

Boka — Então, a gente, nesse ano de 2017, começou a meio que se empolgar, tá ligado? Tinha ensaio toda semana, tava tendo show direto. Aí começava a ter as ideias, a gente gravava pedaço de bateria ou de base. Acho que até anunciei nas minhas redes que o RDP tinha começado a compor. Isso foi em 2017/2018. Em 2019, paramos pra fazer os ensaios da turnê do “Brasil” e, no meio do caminho, o Gordo adoeceu. Aí parou tudo, ficamos esperando o cara se recuperar e, quando íamos voltar — já tinha até um show sold out em São Paulo, estávamos bem animados —, começaram as quarentenas. Passou um ano, o Jão começou a reclamar e eu falei: “o que sobrou pra gente é fazer música e ensaiar, na medida do possível”. Acabou saindo, mas por esse lance do ensaio ficou a maior parte dos sons no nome do Juninho e do Jão. Foi diferente. Acho que interessa mesmo é a galera gostar.

João Gordo — Eu fico ouvindo o disco novo… Ouvi pra caralho, já odeio ele (risos). Escuto todo dia essa porra. Quanto mais eu escuto, mais vejo pedaços que dava pra mudar, coisas que eu poderia ter feito melhor. É muito ruim fazer um disco sem ensaio. Comparando com o “Século Sinistro”, que é um trabalho pra frente, em que se tem uma certeza absoluta, retilínea, um lance muito preciso. E o “Necropolítica” eu não sei explicar, mas não tem ensaio. Foi feito no susto, completamente. O resultado lógico que é bom, porque o RDP é uma banda velha, que se conhece a miliano e tem o mesmo gosto praticamente. Então saiu. Só que não tem aquela certeza absoluta. Saiu, gostei, mas bem diferente dos outros trabalhos.

Boka — Sabe qual é o tapa maior, Gordo, dessa sensação que tu tá tendo? É o seguinte: a gente tá conhecendo as músicas depois de gravar. Antes, íamos para o estúdio sabendo as composições de trás pra frente. E agora só fomos conhecer os sons depois de gravados. É tudo meio novo. Eu achei diferente, gosto mais agora do que logo depois que eu gravei.

João Gordo — Você ficou traumatizado com o disco, velho! (risos) Desde o primeiro momento eu já achei as músicas boas. Porém não é do meu gosto musical as bases alegrinhas, aquela coisa mais “metalzinho”. Enfim, eu aprovei, tá bom.

Boka — A questão nem é tanto insegurança. Só que, como tu falou, não tem a certeza absoluta. Bagulho é meio tipo: “será que é isso mesmo?”.

João Gordo — É impressionante: você coloca o “Século Sinistro” e é muito certeiro. Já esse deixa meio na dúvida, estilo “será que é isso mesmo?”. É complicado isso (risos).

O guitarrista Jão em show no La Iglesia, dez de 2021 / Foto de Fernando Yokota

Vocês falaram do esforço do Juninho. Ele, por mais que esteja há quase 20 anos no Ratos, sempre vai ser o “cara novo”, pois não tem como ultrapassar o tempo de banda dos outros integrantes. Tu segue na pilha do “sangue novo”, no sentido de ser o cara que dá um gás, Juninho? Pelo jeito sim, porque pegar a bicicleta e ir na casa do coleguinha fazer som é indicativo de estar a fim.
Juninho — Eu lembro que tava em casa, conversando com a Fernanda (baixista e vocalista da Crypta, namorada): “a gente não vai poder se encontrar pra ficar ensaiando, saca?” Não dá pro Boka sair de Santos, vir pra São Paulo gastando uma grana de gasolina, ficar os quatro num estúdio fechado. O Gordo tava com problema no pulmão, o bagulho da pandemia ainda sem vacina… Não tinha como fazer. O “Século Sinistro” a gente ensaiou muito, até que, quando achou que tava bom, foi marcado o estúdio e gravou. Com esse não tinha como fazer isso. Teve de ser nesse sistema diferente aí. Eu programei a mente: “preciso desse tanto de energia pra me dedicar ao bagulho” e fui adiante com esse projeto pra gente finalizar. A partir do momento que começou não podia parar. E foi meio na loucura. Até falava pros caras: “ó, vamos fazer a pré e uma semana depois já tamo no Family Mob (estúdio) pra gravar”. Dá um susto, mas se não for desse jeito, não rola. Nem decoramos as músicas. Tinha faixa ali que tocamos uma vez e na outra semana gravamos. Se passasse duas ou três semanas, vish, ia cair no esquecimento de novo.

João Gordo — Eu fiquei desesperado porque tava cheio de dor no joelho, na coluna, na bunda, em tudo quanto é lugar. Aí fui na pré-produção e ali eu tava um bagaço. As músicas eram assustadoras. “Como que eu vou fazer as letras pra essa porra aí?”, pensei. Mas fluiu. Sentei ali e foi. Lógico que é meio monotemático, parece um disco de ópera.

Vocês fizeram como era possível fazer. Será que isso não contribui com a aura do disco ser um retrato de determinado momento?
João Gordo — A gente tem a obrigação de lançar um disco relevante. Não dá pra lançar um trampo pior que o anterior, saca? É uma puta obrigação. É uma cruz que a gente tem de carregar — cruz de cabeça pra baixo, lógico. E conseguimos isso, de fazer o álbum ser relevante na discografia da banda. As pessoas gostam, os fãs principalmente. E as minhas letras continuam incomodando o inimigo. O inimigo fica muito incomodado com esse tipo de letra. Pelo fato de ser em português, porque esse tipo de música que a gente faz a maioria canta em inglês, que pode xingar à vontade ali que ninguém vai entender porra nenhuma.

Juninho — Completando esse lance que o Gordo falou de ser relevante: escutando o disco inteiro parece Ratos de Porão. Isso que é o mais importante. Toca a música ali e a pessoa pensa: “caramba, mó Ratos isso!” Até o Jão fala: “esse disco é o que mais parece Ratos de Porão dos últimos que a gente gravou”. Você escuta e parece aqueles clássicos do “Anarkophobia”, do “Brasil”, do “Cada Dia…”. Então, tá soando RDP, é o que interessa. Tá agressivo, com as letras do Gordo que incomodam e o som pesado e porrada.

João Gordo — Porque não tá tão moderninho. Tá old school, até demais. É engraçado ouvir (risos). E os outros a gente tentava sempre fazer algo diferente, um atonal aqui, um grunge ali, sempre misturando as coisas. Esse não, chegou nu e cru pra pôr a letra e foda-se. Não deu pra conversar o que tinha de ser conversado: “tira essa parte”, “muda essa nota, que tá muito alegre”. Eu acho bom! A produção e a gravação são boas. A capa, do Rafael Gabrio, ficou muito cabulosa. O cara é especialista em desenho do século XV, ele estudou isso. Tudo que tem na capa ele estudou. E eu falei pra ele: “meu, coloca aí a cama do “Sabbath Bloody Sabbath””.

Foi intencional essa semelhança com a capa do Black Sabbath?
João Gordo — Lógico, é tudo matematicamente pensado (risos). Eu consigo me comunicar bem com esse povo ilustrador. Passo a ideia ali e sai legal. Essa saiu muito bom. A capa é tenebrosa.

Boka — Queria só somar aí no lance que a galera tá falando. Quando a gente tava gravando essas músicas e tocando, que o Gordo falou que tava meio “metalzinho”, meio “80’s demais”, eu pensava comigo: “esse é o disco que os fãs da banda vão gostar, brother.” Os outros trabalhos os fãs gostavam, mas a gente gostava mais porque tinha esse desafio técnico, agregar estilos. Esse não, é meio old school purista. E lembro que quando o Gordo tava escrevendo a letra, dei uma olhada, e falei: “caralho, brother, todas esculhambando com a família fascista brasileira. Tudo a mesma coisa!” E o Gordo: “Foda-se!” A gente nunca teve tão irritado e se sentiu tão combativo por ter essa ascensão do pseudo neofascismo aqui no Brasil. Estamos tão “p da vida” que não tinha como sair outra coisa na parte das letras.

Quero voltar nessa questão da temática, da ascensão do fascismo. Mas antes, queria complementar o lance que o Gordo falou da capa com elementos do “Sabbath Bloody Sabbath”. Por que referência justamente a esse disco?
João Gordo — Aquela cama é tudo! É o leito de morte horrível do inferno. Acho que morrer sufocado, como morreu a população de Manaus — e tem letra que fala disso —, que teve cara que foi intubado a seco e a frio, sem anestésico… Cara, ser intubado sem anestésico, sentindo aquele bagulho entrando pela garganta, depois empacotar sufocado, é morte horrível. Puta morte cruel. Isso é uma letra. Isso me impressionou bastante. Vivemos tempos em que tudo impressiona, e mais nada nos surpreende. É tão absurdo o lance do Brasil aqui. O que escrevi é o que estava ao meu redor, o que eu tava sentindo. Não teve jeito de diversificar as letras, o assunto é esse que nos cerca: o fascismo, a pandemia, essa cara de pau do caralho. É muito foda. Esse nome aí, “Necropolítica” tem tudo a ver.

O baterista Boka em show no La Iglesia, dez de 2021 / Foto de Fernando Yokota

E como vocês chegaram nesse título, que é um termo da obra do camaronês Achille Mbembe (filósofo, teórico político, historiador) que, grosso modo, é um recurso do Estado como poder instituído que cria um discurso no qual referenda quem está mais suscetível à morte, geralmente minorias ou população em situação de vulnerabilidade.
João Gordo — É o que acontece aqui no Brasil: o governo escolhe quem deve morrer e quem deve viver. Segundo esse camaronês aí, isso é necropolítica. Aquele Witzel (Wilson, governador do Rio de Janeiro) ou no país inteiro. Os ricos vivem, e os pobres morrem. O que aconteceu, realmente, foi um genocídio programado para matar os pobres, os negros, os gordos e os velhos. Isso tá explícito. Não sei como as pessoas não percebem isso.

Boka — Ô, Gordo, só uma partezinha: uma pá de rico fascistão, extrema direita se fodeu e morreu também.

João Gordo — Sim, mas por erro deles mesmos.

Boka — É bizarro por isso: um cara que achava que tava na crista da onda, que dizia que era coisa de esquerdopata, acabou morrendo também.

João Gordo — O que me deixa mais puto da vida é uns mano americano punk, do hardcore lá, cobrando a gente. Se você for lá nos comentários do Youtube tem um punk falando que a letra de ‘Aglomeração’ é pró-vacina, que eu sou contra o povo e a favor das grandes empresas farmacêuticas. Os caras veem desse modo. E que a pandemia foi feita pela China. Essa é a grande fake news que corre por aí, entre os americanos principalmente.

Essa discussão sobre vacina é uma questão antiga, e que ganhou proporção com a pandemia. Mas, para o momento em que vivemos, não consigo pensar em outra alternativa. Talvez dos males, seja o menor.
João Gordo — Na época da febre amarela aqui no Brasil foi exatamente igual. Teve protesto, quebra-pau, gente dizendo que não ia tomar a porra da vacina. Até ser obrigado, o governo obrigava a tomar vacina. Imagina se o pessoal não tivesse tomado a vacina de febre amarela? Ia ter gente morrendo da doença até hoje.

Juninho — Complementando: todos nós aqui do Ratos, e muitas pessoas do hardcore e do punk que a gente conhece, somos contra ficar se entupindo de remédio e a apoiar a indústria farmacêutica. É um bagulho meio óbvio. Não é que somos a favor dessas empresas nem nada disso. O lance é que estamos numa pandemia, perdemos amigos íntimos, familiares, tem um monte de pessoas próximas que perderam os pais, os tios. E é sabido que, nesse caso, se teve de correr pro bagulho da vacina porque ela protegia de uma forma mediana, vamos dizer assim. Teve quem, mesmo com vacina, ficou zoado. Só que a questão de falar sobre a indústria farmacêutica junto com o tema da Covid são coisas que não dá pra misturar. Não estamos falando: “ó, é uma empresa que vai ganhar um monte de dinheiro em cima da gente”. Não é isso. Os caras vão ganhar dinheiro? Vão! Só que estamos vivendo a parada da pandemia. Quantas pessoas que perderam os familiares que dariam graças a deus que tivesse aparecido a porra da vacina antes. Quero ver se toda essa galera que é antivacina, principalmente no Brasil, quando tiverem bebê, se não vão dar vacina contra paralisia infantil no filho. Se for pra ser contra uma, tem de ser contra todas. “Não vou vacinar meu filho contra paralisia infantil!” Beleza! Umas doenças erradicadas desde os anos 1930/1940 com vacina, as pessoas vão começar a ser contra agora? É meio idiota falar sobre isso. Mas eu entendo o que os caras falam que é ser contra a indústria farmacêutica porque todo mundo aqui é, não vou ficar me entupindo de remédio. Prefiro me proteger de outras formas. Mas, no caso da pandemia, tem nem o que falar.

Boka — O que eu costumo comentar desse bagulho de ser antivacina é que é um movimento de naturalistas da Europa e da América do Norte já de muitos anos. Só que a gente mora num país que tá cheio de doença e de praga, que não tem saneamento básico. Então, estamos acostumados a tomar vacina, faz parte da vida do brasileiro. Eu pego a carteirinha da minha filha que tá com 12 anos e tem umas 25 doses. Falam pra tomar? Pô, vamo aí! Só que alguém morando, sei lá, na Suíça ou em Washington, não toma esse monte de vacina. Não fica recebendo BCG, varíola, rubéola, sarampo, poliomielite. Então, pra eles, pode ser um choque. E hoje em dia, do jeito que é disseminada a informação, que qualquer coisa vira verdade… Não acho que não seja verdade. É normal alguém não querer se vacinar, achar que é nocivo. Mas tem situações diferentes. Tem aí uma gripe que tá matando a granel, morreu milhões de pessoas. A vida de todo mundo parada, a gente precisava sair do buraco de alguma forma, e o único jeito que tinha era esse. Não sou a favor da indústria farmacêutica nem fodendo. Mas, brother, é uma realidade, a gente tem de se vacinar pra ter o mínimo de condições de retomar nossa vida agora. Pode ser que daqui cinco anos não seja, mas agora tem que tomar.

Tem um ponto interessante disso que falamos que é: a vacina, bem ou mal, possibilitou esse retorno a um pseudonormal que vivemos agora. É o que permitiu as bandas voltarem a tocar e toda essa indústria dos eventos culturais retomar depois de dois anos em inatividade — tempo em que artistas, equipes, espaços de eventos e outros setores agregados amargaram prejuízos e perdas. E fazendo link disso com o nome do single, ‘Aglomeração’ — situação que todo músico curte, até por força da profissão —, queria saber como vocês lidaram nessa fase em que tiveram de ficar afastados da multidão? E como a arte em geral, mais especificamente a música, ajudou a passar por essa doideira toda, seja ouvindo ou compondo. Qual a importância que a arte merece neste momento?
João Gordo — Acho que todos nós fizemos nossas paradas paralelas, e a tecnologia favoreceu isso. Eu fiz vários projetos: teve o Lockdown (com o guitarrista Antonio Araújo [Korzus e Matanza Ritual], o baixista Rafael Yamada [baixo, Claustrofobia e ex-Project 46] e o baterista Bruno Santin [Endrah]), participei de várias músicas de bandas de amigos, fiz uma parada de música brega porrada. Terminei ainda o tributo ao Terveet Kädet, do Ratos, que vai sair ainda, ninguém sabe. Peguei um compacto dessas releituras, gravado há uns cinco ou seis anos, e fiz letras em português. E vai sair com a mesma capa, o mesmo logotipo. O disco deles se chama “Ääretön Joulu”.

O que quer dizer?
João Gordo — Eu não sei, pois é finlandês. Mas o nome que a gente vai colocar é “Isenton Pau no Cu” (risos). Eu fiz um monte de coisa. O Boka fez lá o….

Boka — O Apnea. Mas, na verdade, é pré-pandemia. A banda foi montada em 2019, e a gente careteou pelo que aconteceu. Foi difícil, os estúdios todos fechados e tal, mas aos trancos e barrancos foi. Acho que igual a todas as bandas, brother. Da minha parte, fora ouvir música sempre e ter uma leitura que eu gosto, o que manteve minha saúde mental foi o surf e a ioga. Todo dia ia pra praia pegar onda, que até podia, porque não tem o contexto de aglomerar, de correr perigo. Então, fiz isso direto e pratiquei uma ioga aqui em casa, por meio do zoom, que é a ferramenta que estamos usando aqui agora. Foi um negócio que ajudou muito. Acho que se não fosse isso ia ser um perrengue mental bem estranho.

João Gordo — Pra mim foi perrengue mental, porque já tava doente. Aí entrou a porra da pandemia, eu fiquei deprê, engordei 20kg vendo televisão e comendo. Isso piorou minha saúde. Fiquei com dores, com diabetes alta… meio “vou morrer logo”.

Juninho — O Gordo já tava de pandemia um ano antes da gente.

João Gordo — Foi difícil de julho de 2019 adiante pra mim. Mas tô aqui vivo, vaso ruim não quebra. E compondo, fazendo as coisas e tal. O Juninho saiu pedalando pra entregar comida.

Juninho — Descolei um trampo de entregador de rango num restaurante vegan aqui duns amigos. Era aberto, pedalando na rua, sem aglomerar. Foi meio que no esquema do Boka. Eu pedalava, andava de skate, fazendo um bagulho meio de esporte e trampo juntos. Foi passando os meses e a gente via que não ia melhorar a pandemia, foi quando falamos em compor, fazer os lances do disco. Nos primeiros meses de pandemia a gente abandonou, não tinha o que fazer, nem se comentava sobre isso. Cada um se virou de um jeito.

João Gordo — Outra coisa que eu fiz na pandemia foi me juntar com os Asteróides Trio pra fazer um tributo rockabilly ao Ratos.

O baixista Juninho em show no La Iglesia, dez de 21 / Foto de Fernando Yokota

Não sei vocês, mas pra mim essa pandemia foi o pior momento da existência, mental e financeiramente.
João Gordo — Da nossa existência, da nossa geração.

E queria saber, parafraseando Olho Seco: haverá futuro? Ou, como vocês falam no documentário “Guidable: A Verdadeira História do Ratos de Porão”: o negócio é daqui pra pior?
João Gordo — (fazendo sotaque do Fábio Sampaio, vocal do Olho Seco, em show no festival O Começo do Fim do Mundo) “Haverá futuro para a pobreza desse país? Você passa na rua e só vê pobreza com as mãos estendidas, sempre com a palma voltada pro alto pedindo esmola”. (risos)

João Gordo — Daqui pra pior.

Juninho — Daqui pra pior.

Boka — Eu sou um pouco antagônico nessa posição, porque tem meu lado realista que vê o planeta morrendo — que já morreu, né, tá agonizando. É um problema que não tem mais volta, a gente vê todo o consumismo, o plástico, o aquecimento global. Acho que isso não tem mais volta, porque o sistema financeiro que a gente vive, do capitalismo, exige que esteja todo mundo comprando, vendendo e produzindo o tempo inteiro. Fico pensando como a geração da minha filha de 12 anos, quando ela tiver a idade que tenho, como é que vai tá. Pode ser que esteja tudo muito fodido. Porém, por outro lado, já estamos todos velhos. Quando se olha pra situação que a gente tá, pessoal, se vê que praticamente todos nós vivemos a vida inteira até aqui fazendo só o que gostamos. Dificilmente tivemos de abaixar a cabeça e ir pra um trampo merda, aguentar patrão pagando um sapo pra receber um salário de merda que só dá pra subexistir. E a gente conheceu o mundo inteiro, gravamos inúmeros discos, tem um monte de gente que se identifica com o que a gente faz, admira e enaltece nosso trampo. Isso é uma puta sorte fodida. Então, por um lado eu vejo que tá tudo uma merda, e por outro, num plano pessoal, que a vida foi generosa. E a gente tem de aproveitar isso aí até onde a saúde permitir.

João Gordo — Pra nós foi mesmo, só chinfra.

Juninho — Pra nós tá tudo lindo. Meu armário tá cheio de vinil, tô felizão. Mas não é a realidade do resto do povo. O ideal é todas as pessoas estarem bem, plenas, com um cantinho pra morar, com rango. Infelizmente, não é assim. Voltando só um lance que o Boka falou, de a gente ver como estão as coisas no mundo, o pior problema é esse lance de sempre evoluir, aumentar a produtividade. Essa é cagada de qualquer coisa do mundo. É sempre crescer, aumentar.

Em nome do progresso.
Juninho — “A energia nuclear é prejudicial, tem de criar outra pra substituir”. Eu penso 100% oposto disso: em vez de criar alternativas pra continuar do jeito que tá, tudo destruindo, tinha que rolar um bagulho de frear, de diminuir as coisas. Não sei se você viu aquele documentário do Michael Moore sobre energia verde no planeta (“Planeta dos Humanos”)… “Vamos criar placas de energia solar e energia verde”. Mano, é tudo balela. Só que em vez de a empresa destruir uma coisa, destrói outra pra tentar suprir a energia, as coisas que o ser humano precisa. A real é que a gente não tinha que gastar R$ 200 de luz, tinha de gastar R$ 100. Isso que é uma evolução. Porque se estamos destruindo tudo, não dá pra inventar uma outra alternativa pra seguir assim. Tem de diminuir. É por isso que nada vai mudar, pois todos querem fazer o que já fazem pra mais, nunca reduzir. Vai só foder.

João Gordo — O futuro é não ter futuro. Uma extinção em massa breve.

Vi que tem gravadoras envolvidas tanto no lançamento nacional do “Necropolítica” quanto na gringa. Mas é pra distribuição ou essas marcas bancaram o trabalho? O “Século Sinistro” foi vocês mesmos que pagaram, né? E emendando outra pergunta ainda: por que fazer formato físico?
João Gordo — É coisa de colecionador. Todo mundo que é aficionado no estilo gosta de ter. Se der um tilt no mundo, acabaram seus discos. Os meus não, estão todos guardados aqui.

Pra banda, financeiramente compensa?
João Gordo — Quando eu vou pensar em disco, penso em vinil: lado A, lado B. Nem CD eu penso mais. Mas tem de fazer CD porque o pessoal dos anos 1990, que coleciona esse formato, vai querer. Tem de atender esse público. O vinil hoje em dia virou artigo de luxo, quem tem condições ou é muito aficionado vai comprar. E quem não é, pode ir no Youtube escutar. Tem pra todos os gostos.

Boka — O disco inteiro a gente gastou uma baita grana, fomos nós mesmos que pagamos. Aí, licenciamos o álbum para pra esses selos. O disco foi caro pra caralho. O lance de ter os discos… O lançamento, pra gente, ter o formato que hoje em dia chamam de físico — uma palavra que me dá horrores, físico é o meu preparo, se é magro, gordo — tem que ter. Porque a gente tem fãs, e eles gostam. Se entrou no estúdio e gravou, tem que materializar. Não vende o que vendia antes, porque há várias opções pra pessoa escutar música, mas sempre vai vender. Se for trocar em miúdos, pra uma banda que nem o Ratos, talvez venda quase igual ou até mais do que já vendeu antes.

Juninho — O estilo que a gente toca, que vem do punk, do hardcore e do metal, tem que ter o disco. Mesmo que só em CD, já que tem muitas bandas que não conseguem viabilizar o vinil porque é caro, mas acho que tem de produzir. Esses artistas que lançam só no digital, pessoal do rap e do trap, por exemplo, sei lá, disponibilizam um álbum por ano. E os fãs deles não escutam álbum, ouvem single. Depois lá na frente lança o álbum. Quem tem um histórico de lançamentos em disco, tipo Ratos e Racionais, faz parte. A banda fica 30/40 anos lançando disco e, agora, não vai fazer isso? Não faz sentido. As pessoas querem, tipo essa capa que falamos do Black Sabbath, pegar na mão, olhar a capona, o encarte, ler as letras. Sem isso não faz muito sentido.

– Homero Pivotto Jr. é jornalista, vocalista da Diokane e responsável pelo videocast O Ben Para Todo Mal. A foto que abre o texto é de Marcos Hermes / Divulgação

4 thoughts on “Entrevista: Ratos de Porão num papo sobre Brasil, pandemia, indústria farmacêutica, genocídio e “Necropolítica”, o novo álbum

  1. “Quanto mais eu escuto, mais vejo pedaços que dava pra mudar, coisas que eu poderia ter feito melhor” … caralho quanta humildade hehehe

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