Ao vivo: Marcos Valle recolore seu repertório em um show aguardado há quase dois anos

texto e fotos por Rodilei Morais

Quando “Cinzento” veio ao mundo, o mundo era muito diferente. Não havia um frasco de álcool-gel na porta de cada estabelecimento, os cinemas e teatros não deixavam lugares vagos propositalmente, máscaras no transporte coletivo eram raridade e não protocolo: “Cinzento” foi lançado quando a pandemia de COVID-19 ainda não existia, ou ao menos era algo ainda distante da realidade brasileira.

Lançado em janeiro de 2020, o 27º álbum de Marcos Valle teve de aguardar quase dois anos pelos seus shows de estreia em São Paulo. No começo de dezembro de 2021, ele finalmente encontrou o público paulista no teatro do Sesc Pompeia, para onde as apresentações haviam sido planejadas de início. O músico fluminense executou seu novo repertório nas noites de sexta (3) e sábado (4) com participações de Moreno Veloso e Bem Gil.

A espera, com certeza, valeu a pena. Marcos e sua banda entregaram uma performance inspirada, recheada de improvisações e com novos arranjos mesmo para hits tocados já milhares de vezes. Com 76 anos de idade e mais de meio século de estrada, Marcos Valle se reinventa um pouquinho a cada novo trabalho. “Cinzento” foi lançado pouco tempo depois de “Sempre” (2019), e, desta vez, o compositor havia feito todos os arranjos e melodias, mas buscou parcerias em uma nova geração para escrever suas letras. Duas delas, incluindo a faixa título, vieram do rapper Emicida, com quem Marcos já havia colaborado no premiado álbum “AmarElo” (2019). Zélia Duncan, Kassin e Domenico Lancelotti foram alguns outros nomes que se juntaram a ele.

E como não há nada melhor para um show de lançamento de álbum que algumas colaborações tocando ao vivo, Moreno Veloso e Bem Gil se juntaram a seu mestre no palco. Os filhos de duas lendas da Tropicália assinam cada um uma canção do álbum e o primeiro a tocar foi Bem. Sua música, “Se Proteja”, foi anunciada por Marcos como uma mensagem que veio a calhar para o momento pré-pandêmico. Em sequência, a banda tocou “Sereno”, de autoria exclusiva de Bem, e que fez parte do mais recente disco de seu pai Gilberto Gil, “OK OK OK” (2018).

Moreno Veloso, por sua vez, é responsável pela suave letra de “Redescobrir”, a qual este tocou também no violão. Como feito com seu outro parceiro, Marcos Valle pediu ao filho de Caetano que levasse uma música de seu próprio repertório para ser executada pelo grupo. “Não Acorde o Neném” foi a escolhida e foi sob o som dela que Moreno pode até dançar no palco e fazer sua percussão em um prato e talheres, ambas as coisas familiares para quem viu a turnê “Ofertório” da família Veloso.

Bem e Moreno compartilharam um momento em conjunto no palco nesta parte do show: a performance de “Samba de Verão”. A canção de mais de meio século de idade já passou por milhares de arranjos, como brincou Marcos, e foi inclusive regravada com muito sucesso pelo próprio Caetano Veloso. O tema ganhou mais uma nova interpretação para os shows em São Paulo e foi um dos mais belos momentos da noite de sábado.

O público mal teve tempo de se recuperar da emoção das participações pois foi logo atingido pelo boogie de “Estrelar”. O hit das academias dos anos 80, que fez com que Marcos fosse até confundido com professor de aeróbica soou fresco ainda hoje, mesmo contido nas restrições de um teatro. Depois desta, outros clássicos se seguiram, como a antológica “Mustang Cor de Sangue”, faixa homônima do álbum de 1969, em que Valle passa a incorporar outras influências em sua sonoridade, deixando para trás sua carreira na Bossa Nova, e “Freio Aerodinâmico”.

Marcos e sua banda deixaram o palco mas logo retornaram para um bis. A faixa “Cinzento” foi revisitada, como para lembrar aonde a noite começou, mas agora em um clima mais descontraído. Foi nesse clima que Moreno, Bem e Patrícia, cantora e esposa de Marcos, voltaram ao palco, para a performance de um outro hit oitentista. “Bicicleta” e sua introdução caíram como uma luva para o fim do show: “É tão legal juntar um monte de gente, gente que a gente curta, né?”.

Mas não acabou por aí. Surpresa! “Estrelar” novamente! Se pareceu um crime a música tocada na primeira vez com todo o público em seus assentos, a plateia toda se levantou nessa reprise. Ainda que sem a aglomeração de uma pista de dança, todo mundo queria um tititi a mais e um bumbum pra trás. Em uma retomada gradual de espetáculos como este, é até difícil dizer que o título do álbum de Marcos Valle se justifique. O mundo não é o mesmo dos anos 80, não é o mesmo nem de janeiro de 2020. Mas, depois de um período de tanta adversidade, um show como este é um alívio para a alma. O álbum pode ser “Cinzento”, mas o repertório de Marcos Valle está mais colorido do que nunca.

– Rodilei Morais é jornalista e fotógrafo. Leia outros textos seus em https://medium.com/@rodilei

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