Balanço: Saiba como foi o NOARCM 2021

texto por Marco Antônio Vieira
fotos por NOARCM

Após dois anos sem edições presenciais devido a pandemia, o renomado festival pernambucano No Ar Coquetel Molotov retomou as atividades festejando sua 18ª edição com shows no Teatro Guararapes, em Olinda, local que já abrigou outras edições do evento, e que nos dias 13 e 14 de novembro iria acolher nomes como Boogarins, Céu, Mateus Aleluia, Marina Sena e Lia de Itamaracá, entre outros, seguindo as determinações dos órgãos sanitários do estado.

DIA 1

Boogarins em foto de Tiago Calazans / Divulgação

A banda formada por Fernando Almeida (vocais e guitarra rítmica), Benke Ferraz (guitarra solo), Ynaiã Benthroldo (bateria) e Raphael Vaz (contrabaixo) ficou encarregada de abrir as atividades no sábado, e o Boogarins mostrou-se à vontade e contente no palco, notavelmente relaxados com o tempo de show (a previsão era de 1h, passou quase 10 min disso, num line-up com horário bastante estrito).

Houve espaço para merchan, sorteio de compacto de vinil e camiseta oficial da banda e até menção a um ‘bloco Juliette’ (“Doce”/ “Benzin”/ “Sei Lá”, alusão a nomes iguais de músicas presentes no EP da ex-BBB, atual cantora, entre outras atividades, que viraram piada na internet recentemente) numa performance enérgica, com a banda entrosada e os volume das caixas de som lá em cima.

Céu e Boogarins em foto de Hannah Carvalho / Divulgação

Na sequência, a cantora Céu pisou no palco dos goianos afirmando estar “muito feliz, em carne e osso, fazendo que a gente gosta de fazer”. Esse bloco do show do Boogarins começou com “Benzin” seguida por “Make Sure Your Head Is Above”, essa última presente em discos de ambos, em versões diferentes, “Camadas” (composição de Fernando Almeida e Céu) e, por fim, “Foimal”, uma música muito querida pelos fãs. “E eu só te quero pra cima” foi o verso que encerrou o show em alto astral.

Com disco celebrado em 2020, Mateus Aleluia entrou em cena sendo recebido pelo público, reverente, todo de pé. Iniciou com “Ogum Pa”, e seu domínio de violão encheu o teatro, acompanhado no palco pelo pianista Ubiratan Marques, violão e piano conjugados numa sonoridade delicada. Durante “Na Beira da Mar”, pediu para o público cantar junto, animando um afinado coro. “Despreconceituosamente” foi recebida pelo calor do público logo no início da sua execução, e aplaudida em cena aberta no meio da música. Mais afetos foram despertados com “Palavra Que Reza (Palavra de Imbondeiro)”.

Mateus Aleluia em foto de Hannah Carvalho / Divulgação

“Cordeiro de Nanã”, um clássico de seu repertório, foi intercalada com falas incisivas: “A luta continua, a vitória virá”. “Filho de Rei”, de seu mais recente álbum “Olorum”, foi outro momento enérgico, com versos progressivos como “Canto um canto de adoração/ Canto um canto de meditação/ Canto um canto de libertação/ Canto o canto das massas, eu sei”. A versatilidade dos vocais do artista se mostrou extraordinária.

Ao anunciar que o tempo do show havia esgotado, Mateus Aleluia causou burburinho, típico de quem não quer que aquela alegria termine. No embalo, incentivou um bis antecipado, encarando com preciosidade o tempo restante. “Deixa a Gira Girar” rendeu um momento de grande extroversão do público em um show com diversos momentos de arrepiar.

Jessica Caitano e Luana Flores em foto de Tiago Calazans / Divulgação

Luana Flores, a seguir, trouxe seu set autoral de personalidade marcante, com público receptivo, que festejou ainda mais quando Jessica Caitano pisou no palco. A beatmaker, percussionista, DJ, cantora e compositora aproveitou o espaço luxuoso de se apresentar entre duas lendas da música brasileira para introduzir os presentes em seu Nordeste Futurista (alcunha que ela utiliza em seu Instagram) apostando na experimentação e teatralidade. Funcionou.

Para fechar a primeira noite do No Ar Coquetel Molotov presencial 2021, nada como a benção e a alegria de Lia de de Itamaracá, que surgiu de vestido azul claro (que ela trocaria por um vermelho no decorrer da noite) e não fez apenas o público presente dançar seus hits cirandeiros como aproveitou a ocasião do festival para mostrar a novíssima “Mar de Fogo”, ponto de Exu com o qual Lia saúda a religião de matriz africana acompanhada no palco por Lucas dos Prazeres, as irmãs Maria Dulce e Severina Barracho e Uana Mahin – a canção, feat com André Moraes, chega às plataformas no Dia da Umbanda, 15 de novembro. Todo mundo foi feliz pra casa.

Lia de Itamaracá em foto de Hannah Carvalho / Divulgação

DIA 2

A segunda e última noite da 18ª edição do Festival No Ar Coquetel Molotov trouxe uma boa representatividade da rica e diversa cena local pernambucana e a cantora em ascensão, vinda do norte de Minas Gerais, Marina Sena. Fazia um calor atípico em Recife/Olinda nesse domingo de tempo firme. Um gostinho de normalidade, porém, viria a noite.

O público que lotou o piso principal do Teatro Guararapes era diverso em gênero, raça, sexualidade e faixa etária, proporcionando um clima de reencontros, leveza e descoberta. O aspecto uniforme muito bem-vindo era o constante uso de máscara dentro do teatro. Membros da equipe do festival observavam atentamente qualquer atitude que desviasse das regras de convivência no espaço, efetivando os protocolos sanitários em vigor no Estado.

Pierre Tenório e Jáder. do Mulungu, em foto de Tiago Calazans

A banda pernambucana Mulungu apresentou seu disco “O que Há Lá” (2021), com sonoridade autentica, que não remete a semelhantes tão facilmente. O vocal suave de Jáder se integra bem ao som da banda, que tem elementos eletrônicos e riffs de guitarra que evocam tranquilidade e introspecção. Destaque para “Pendulo”, “A Boiar’ e “O Certo” num repertório atravessado por questionamentos existenciais.

Esse show contou com a participação de Pierre Tenório, que após cantar “Ao Avesso” com Jáder, num entrosado dueto, ocupou o palco com uma corajosa e afinada versão a capella de “Lovesong”, aquela música do The Cure que foi regravada por Adele. O teatro ainda não estava tão cheio, mas cada música foi aplaudida com convicção. A Mulungu é formada por Jáder (voz), Guilherme Assis (bass synth), Ian Medeiros (bateria e SPDS), Carlos Filizola (guitarra).

Luiz Lins em foto de Hannah Carvalho

A seguir, Luiz Lins, natural de Nazaré da Mata, no interior do estado, trouxe composições de fossa reflexiva, trabalhando temas como vulnerabilidade ao modo masculino, orgulho, balanço do pós-término, resquícios, lembranças. E são tantos versos extraordinários. “Fizemos a melhor história sem a melhor parte / Foi um quadro não exposto, ninguém viu a arte”, diz a letra de “O Que Sobrou”, pra citar um exemplo, ou o emocionante vocal materializado em “Tudo que eu faço pra me suportar desde cedo / tudo que eu passo em segredo / A lágrima oculta por trás do sorriso / Eu preciso lidar com meus medos” (de “Eu Tô Bem”).

O público estava afiado, sabia todas as músicas, e gritava para extravasar emoções represadas. Talvez os momentos de coro menos intenso foram as interpretações de músicas do repertório de outros artistas. Nesse bloco destacaram-se “Tarde Demais” (de Dorgival Dantas, prolífico cantor e compositor potiguar), “Proteção de Tela” e “Hoje Dói”, ambas de Tarcísio do Acordeon (compositor e cantor cearense) e “Com ou Sem Você” (de Nattan, jovem cantor cearense de forró romântico). “Sem Você”, um hit recente, encerrou o show com os versos assombrados “É que parece que eu ‘tô / Te vendo calada no seu celular / Demorou um tempo pra eu acreditar / Que daqui pra frente ia ser sem você”. A apresentação se estendeu além do previsto, com o produtor de Luiz Lins pedindo ‘só mais duas’ para a produção.

Romero Ferro em foto de Tiago Calazans

Romero Ferro, cuja sonoridade tem elementos de brega, pop e new wave, intercalou músicas de três eixos temáticos, basicamente. Propostas sedutoras com linguagem mais sensual (“Verdadeiro Amor”, “Corpo em Brasa”, “Love por Você”), constatação do término e sua bagagem emocional (“Pra te Conquistar”, “Acabar a Brincadeira”) e crítica social (“Fake”, “Tolerância Zero”). A convidada Mun Há teve seu momento solo no palco, trazendo a impactante mensagem “Parem de nos matar”, com boa recepção do público, também impressionado com seu look e presença cênica.

Na última música do show, o vocalista do Mulungu e Mun Há se juntaram a Romero para cantar “Tolerância Zero”. Vale o registro sobre o capricho nas coreografias das músicas mais dançantes, e diversidade de corpos entre os bailarinos, muito talentosos. O desenho de luz do show, assinado por Toninho Miranda, foi o mais criativo de toda a edição do festival esse ano. Merece destaque também para o modo incisivo que Romero Ferro externou sua consciência política, indo de comentário sobre a valorização do artista independente até um protesto contra o atual presidente da República.

A atração mais esperada da noite, Marina Sena foi recebida por um público exaltado, que ficou de pé durante todo o show. A mineira iniciou com um bloco de b-sides de seu disco “De Primeira” (2021), para depois se dirigir aos hits. E não é que todas as músicas dos 11 números do selist foram cantadas como se fossem sucesso consolidado? Se por instantes a voz do coro parecia quase encobrir a voz da cantora, em dado momento foi estabelecido um equilíbrio. Felizmente o volume do vocal estava dando conta da característica de show karaokê.

O refrão de “Por Supuesto” foi um momento rock, de grande energia e agitação. Já “Voltei pra Mim”, uma música que fala sobre restauração da individualidade e melhores escolhas, foi abraçada com muito carinho pelos presentes, no coro mais bonito da noite. A etérea “Temporal” contou com um momento onde Marina soltava a voz, ao final: “Me entrego ou deixo a ferida aberta / Eu não posso deixar mais”.

Num dos momentos de interação com a plateia, a artista perguntou quem conhecia seu projeto anterior, Rosa Neon, e a resposta foi a maioria do público. A cantora se mostrou emocionada e grata por diversas vezes, e se esmerou no gestual das músicas, com sensualidade e charminho bem próprios. Além da integralidade do CD de estreia, ela tocou, por último, o hit do Rosa Neon, “Ombrim”. O piso principal do teatro estava lotado, e havia gente no balcão também, totalizando em torno de 1700 pessoas, umas centenas a mais que na noite anterior.

Quem duvidou do line-up totalmente brasileiro, uma novidade na história recente do festival, teve uma grata surpresa. O padrão da curadoria, na verdade, é qualidade de exportação. Quem veio ao Molotov 2021, porém, pode fruir parte do que o Brasil melhor tem a oferecer atualmente, no segmento alternativo. Foram 20 meses sem shows desde o distante Carnaval de 2020, quando ainda havia incerteza sobre o tamanho da ruína que a Covid-19 traria. É tempo de reconstrução, de refazenda. De pontes, de hábitos, de novos modos de fazer e viver de arte.

O conceito de acessibilidade foi além de uma rampa, de uma cadeira reservada. Todos os shows contaram com interpretação em Libras no palco. Foi anunciada uma lista gratuita para Pessoas com Deficiência, contando também um espaço de acolhimento. Havia também, uma lista gratuita para pessoas Trans. A área externa contou com várias opções de comida e bebida, e o caixa descentralizado ajudou bastante a evitar filas. O saldo final foi bastante positivo.

Marco Antônio Vieira é jornalista e assina o blog de cinema e música Cultura Revista

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