Música: “Bright Magic”, do Public Service Broadcasting

texto por Luciano Ferreira

Quando se mudou de Los Angeles para Berlim Ocidental em 1976, David Bowie pretendia dar um novo curso à sua carreira, aprofundando-se num dos centros da cultura europeia. Lá encontrou um povo destruído psicologicamente, um país separado por um muro e abalado pela violência, tanto dos movimentos extremistas quanto do próprio Estado. Num dos períodos mais férteis e criativos de sua história musical, Bowie saiu de lá com a clássica “Trilogia de Berlim”: “Low” (1977), “Heroes” (1977) e “Lodger” (1979). Mais que isso, construiu uma Berlim imaginária, romântica, capaz de aguçar a criatividade – assim como Paris para os escritores –, que se manteve e mantém ao longo das décadas, vide o número de músicos que lá buscaram refúgio em algum momento de sua carreira – U2 e Depeche Mode que o digam.

Esse fascínio pela capital alemã levou também o músico J. Willgoose, Esq., força criativa do grupo Public Service Broadcasting, a seguir os passos do “camaleão” em direção à capital alemã. Lá encontrou uma outra Berlim, é verdade, diferente daquela dos anos 70, de Bowie; diferente da dos anos 80, do Depeche Mode; e diferente da dos anos 90, do U2. Política, econômica e geograficamente, Berlim mudou muito, mas sua identidade cultural e sua história permanecem intactas, apesar dos momentos mais trágicos.

Quarto trabalho de estúdio do grupo londrino Public Service Broadcasting, “Bright Magic” (2021) é um excelente atestado dessa afirmação e também uma bela homenagem a cidade do Hansa Studios, local onde o álbum foi gestado (e que também abrigou de Nick Cave a Snow Patrol, de Siouxsie and the Banshees a R.E.M., de Pixies a Manic Street Preachers). “Bright Magic” é um mosaico de referências condensado em 45 minutos de música, percorrendo mais de um século de história, numa verdadeira declaração de amor à cidade.

Partindo da premissa de utilizar samples publicitários para criar álbuns conceituais (a corrida espacial, a ascensão e queda das minas de carvão inglesas) desde os primeiros trabalhos, a partir de “Every Valley” (2017) o Public Service Broadcasting começou a sair de sua própria bolha, permitindo a inserção de outros artistas e vozes em sua música – James Dean Bradfield foi um dos que já esteve presente. “Bright Magic” mantém essa tendência, mas abandona os informes publicitários temáticos. Isso não descaracteriza a sonoridade do grupo, apenas põe em suspenso um conceito inicial que tinha tendencia a repetição. E é na fuga dessa auto repetição que é possível encontrar o sentido maior do álbum, que resulta do total aprofundamento de Willgoose no universo alemão, fazendo o disco transpirar Berlim “por todos os poros”.

Está no título, que referencia o escritor berlinense Alfred Döblin; nas ideias que nortearam grande parte do trabalho, inspiradas na revolucionária obra de Walter Ruttmann, diretor de cinema dos anos 20, principalmente “Berlin: Symphony of a Great City” (1927) e “Lichtspiel I: Opus” (1921); está na presença de músicos berlinenses como Blixa Bargeld, Andreya Casablanca e Nina Ross em algumas canções; nas homenagens que prestam a ícones da cidade como a atriz Marlene Dietrich (“Blue Heaven”).

Nas próprias referências musicais do grupo sempre foi possível identificar muito da música eletrônica alemã, não só a óbvia presença do Kraftwerk (atenção em “Der Rhythmus Der Maschinen”), mas também do Neu!, já que em diversos momentos (“Spitfire” e “Everest”, 2013, “Go!”, 2014; “Progress”, 2017) eles utilizaram aquelas batidas em direção ao futuro criadas por Klaus Dinger, a “motorik beat”, retomando a levada em “Blue Heaven”, das faixas mais convencionais já compostas pela banda.

Temático e não menos ambicioso que qualquer de seus outros trabalhos, “Bright Magic” divide-se em três partes: “Building A City / Building A Myth / Bright Magic” (Construindo uma Cidade / Construindo um Mito / O Brilho Magico). Se em “Low”, de Bowie, a divisão entre os dois lados que compõem a obra é marcada pelos lados do disco (no caso o vinil), aqui a mudança entre as partes não é tão clara, ocorre de forma mais sutil, mas perceptível nos sentimentos que evoca e nos elementos sobre os quais se estruturam os arranjos.

O primeiro terço é sinfônico ganhando ritmo em “Der Rhythmus Der Maschinen” (faixa 3, que conta com Blixa Bargeld), iniciando a transição para o ritmo eletrônico e dançante de “People Let’s Dance” (faixa 4). Numa ruptura rítmica, mas não conceitual, a faixa é cantada em alemão pela vocalista/compositora norueguesa EERA, traz samples de “People Are People” (do Depeche Mode) e o título foi retirado do livro “Berlin: Imagine a City”, de Rory MacLean. O último terço é marcado por canções mais abstratas, de clima melancólico e contemplativo, fechando com o recital do poema de “Ich und die Stadt”, do escritor Ludwig Meidne, pela atriz Nina Hoss, ambos berlinenses. Como não poderia deixar de ser, o disco presta homenagem a Bowie em forma de canção, com a instrumental “The Visitor”, de clara inspiração no lado mais experimental de “Low”.

Se Berlim é o tema central do álbum, elementos como cor, luz, movimento estão entre os subtemas, espalhados no título de várias faixas e até mesmo nos videoclipes, que utilizam a obra de Ruttmann como inspiração: no uso das cores de “People Let’s Dance” e no de samples em canções; e até pega cenas emprestadas para a composição de todo o videoclipe (“Der Rhythmus Der Maschinen”). Se Willgoose partiu para Berlim para fazer um disco para falar de artistas que vão a Berlim para fazer um disco, acabou encontrando mais que a cidade criada pelo imaginário. Através dos olhos de terceiros, encontrou a sua própria Berlim, e a colocou em 11 canções que não resumem a cidade, mas espalha fragmentos diversos que unidos compõem um caleidoscópio imersivo e multifacetado chamado “Bright Magic”.

– Luciano Ferreira é editor e redator na empresa Urge :: A Arte nos conforta e colabora com o Scream & Yell.

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