Especial: 30 anos sem Miles. Trompetista Joatan Nascimento fala sobre a trajetória e o legado de Miles Davis

entrevista por João Paulo Barreto

Em 28 de setembro de 1991, Miles Davis morreu devido a um acidente vascular cerebral. Dois meses antes, em 08 de julho, fazia sua última aparição tocando antigos clássicos no famoso Montreux Jazz Festival, show que calhou de ser justamente capitaneado pela lenda viva Quincy Jones, e que viria a se tornar o clássico disco “Miles & Quincy Live at Montreaux”, lançado postumamente, em 1993. No palco, porém, o que se via era um Miles combalido, distante, com certa dificuldade em concentrar-se nas partituras e no domínio do trompete, instrumento que sempre foi sua ferramenta revolucionária. Ao seu lado, também no trompete, mas servindo de guia para as notas do seu mestre, Wallace Roney, pupilo de Miles, acompanhava o mentor, tocando alguns dos arranjos naquele que seria o último show de Davis tocando canções dos álbuns “Miles Ahead” (1957), “Porgy and Bess” (1959) e “Sketches of Spain” (1960) – Miles faria ainda mais 14 shows após Montreux, concentrando-se em material mais novo, e deixando os palcos para sempre em 25 de agosto, após um show no Hollywood Bowl, na Califórnia.

Porém, havia algo de muito simbólico naquele momento há 30 anos do festival suíço. Miles não gostava de revisitar o passado. Seguia em frente a cada trabalho lançado. Foi assim desde o começo, quando trabalhou com seus ídolos Charlie “Bird” Parker e Dizzy Gillespie em meados da década de 1940, período no qual ainda frequentava o prestigiado conservatório de música Juilliard, em Nova York. Porém, se dedicava com mais paixão não às aulas, que perdia com frequência, mas às noites nos clubes de jazz tocando bebop, uma da variações do ritmo. Foi com essa mesma vontade de experimentação (e sentindo não mais conseguir acompanhar a velocidade de Parker e Gillespie no bebop) que, nos anos posteriores, Davis focou na criação de um novo grupo. Com essa formação, e sob a batuta do arranjador Gil Evans, o trompetista trouxe ao mundo o seu primeiro clássico, não por acaso, batizado de “Birth of the Cool”. Gravado entre 1949 e 1950, as faixas chegaram a ser lançadas individualmente, mas compiladas sob o marcante nome e reunidas como coletânea em 1957.

Nesse período da segunda metade da década de 1940, Miles tocou no Paris International Jazz Festival, na França, fase na qual se maravilhou com a cidade-luz e sua vida cultural, tendo uma percepção de mundo muito diferente daquela que tinha em seu próprio país, onde o racismo era evidente. Na Europa, viveu um romance com a cantora e musa Juliette Gréco, e conviveu com figuras como Sartre e Picasso. Ao voltar para a América, foi atingindo como um golpe pela depressão que o levaria a afundar-se na heroína, que iria superar com a ajuda de seu pai. Mas seria algo temporário, infelizmente. No decorrer dos anos, gravou diversos trabalhos com o selo Prestige (de 1951 a 1961) e, em seguida, com a Columbia (de 1955 a 1976), através da qual traria à vida seus registros musicais mais conhecidos e icônicos, como “Kind of Blue” (1959); “Someday My Prince Will Come” (1961); “In a Silent Way” (1969) e, claro, o período no qual trouxe a fusão com o rock e os shows para multidões (dissecada no Scream & Yell). Dessa fase, seu trabalho lançado em 1970, o emblemático do Jazz Fusion, “Bitches Brew”, é o que mais se destaca.

Mas, voltando ao simbólico momento daquele show de julho, que aconteceu a partir da insistência do amigo de longa data, Quincy Jones. Após uma década na qual as concessões surgiram em alguns dos seus trabalhos mais ligados ao pop rock (o disco de 1985, “You’re Under Arrest”, trazia versões de músicas de Cyndi Lauper e Michael Jackson, que seriam a base dos últimos shows da turnê de 1991), e com seu disco “Doo-Bop”, lançado em 1992, trazia Miles em um encontro com o hip-hop, tão popular naquele período, não seria de se surpreender que Davis pudesse revisitar alguns de seus clássicos.

O trompetista alagoano, mas radicado na Bahia desde 1987, Joatan Nascimento, lembra do dia que viu aquele momento marcante há 30 anos. “Ali foi uma coisa incrível porque ele quis fazer algo a que se negou a vida inteira. E o Quincy Jones fala uma coisa interessante. Que de alguma forma, Miles sentiu que tinha que fazer aquilo. Talvez porque era uma das poucas coisas que ele não tinha feito na vida e que não seria exatamente negativo, mas, sim, algo a mostrar que Miles é tão maior do que até mesmo alguns conceitos que defendeu a vida toda. Quem esperava que Miles fizesse isso? Quando a vida toda ele dizia que não poderia olhar para o passado?”, afirma Joatan, que também atua como professor-doutor de Trompete, Improvisação e Percepção Musical na Escola de Música da UFBA e como músico da Orquestra Sinfônica da Bahia.

Joatan é ainda mais incisivo ao falar da importância daquele momento e em como aquilo foi um símbolo marcante para a despedida de Miles desse mundo. “Ele não podia mais fazer a música que tinha feito. Mas, de repente, Miles vai e faz. Surpreende nesse quesito. E, de fato, ele já não tocava como tocava nos anos 1950. Aquele tipo de música que fez com (o produtor e arranjador) Gil Evans. Como instrumentista, é incrível isso. Você, com uma determinada idade, visitar uma coisa que fez lá atrás, quando era mais jovem. Com um outro tempo, um outro ritmo, outra saúde, outra disposição, outro corpo. Eu fiquei muito surpreso quando vi aquilo. Quando o vi tocando e relembrando aquelas coisas. Pouco tempo depois, ele morre. Eu guardei essas palavras do Quincy Jones: ‘Miles sabia que tinha que fazer aquilo’, desabafa Joatan.

Miles Davis era um músico fiel à sua própria trajetória e legado. Sua agressividade e frieza tinha muito a ver com o modo como precisou se impor em um país racista e violento como os Estados Unidos. Soube explorar ao máximo seu poder de criação dentro do jazz e passou a fundi-lo a outros estilos. A sua identificação era voltada para o seu som e somente para ele. Tal identificação dentro de uma fusão com outros estilos musicais também guia a carreira de Joatan, tendo consciência de Brasil e de ser brasileiro destacada sempre como norte. “Miles me passou uma coisa muito importante que foi ser eu mesmo. Esse é um conceito que eu acho muito valioso. Quando eu penso, vejo e ouço Miles, e comparo com o que acontecia naquela época, Miles era Miles”, finaliza Joatan, cuja raiz musical dentro do manancial dos ritmos populares brasileiros ajudou a moldar essa mesma fidelidade.

Nessa entrevista ao Scream & Yell, Joatan Nascimento aprofunda sua visão sobre o legado e história de Miles Davis, além de trazer um pouco de sua própria (e riquíssima) trajetória como músico e professor.

Joatan Nascimento

É um desafio grande falar de Miles Davis, tentar abarcar as fases de sua vida, analisar os primeiros anos do bebop em comparação ao que ele construiu no decorrer das décadas seguintes. Como profundo conhecedor da carreira dele, como você avalia sua trajetória dentro das propostas precursoras que ele trouxe?
Miles Davis é um caso único na história da música dos Estados Unidos. Não consigo enxergar outra pessoa que tenha tido essa postura diante da música, diante do mercado, diante da vida. Uma pessoa de personalidade muito forte. Alguém muito perspicaz. Ele percebeu o ambiente onde estava. A qualidade de tudo que era feito ali. Ele surgiu em uma fase onde tínhamos Charlie Parker, Dizzie Gillespie, sem falar daqueles da geração anterior, como (Thelonious) Monk, Art Blakey, (Kenny) Clarke, o baterista Bud Powel. Pessoas geniais tocando uma música complexa. E foi algo apaixonante para ele. Ele disse que a sensação mais incrível que ele sentiu foi ter ouvido o show de Parker e Gillespie. Ele se apaixonou por aquilo e entendeu que era um caminho que deveria trilhar. Vai para Nova York atrás do Parker. Chega a estudar na Juilliard. Miles era uma pessoa que tinha uma condição social bem melhor, pois o pai era dentista, de classe média. Ele entra na Juilliard para estudar e isso gera uma reflexão. Por mais que ele quisesse tocar aquela música, e ele tenta, ele chega a tocar bebop daquela forma como se tocava nos anos 1940. Mas ele percebia que, talvez… e a minha viagem é essa… ele tinha uma outra voz, um outro caminho, um desejo de experimentar outras coisas. E é uma ruptura muito grande quando ele lança “The Birth of the Cool” (coletânea de 1957, mas com as faixas lançadas no final da década de 1940). É uma coisa incrível. Muito diferente do que estava acontecendo. Naquele momento, ele começa, por si só, a levar um outro tronco de desenvolvimento daquela música. Com ela, o bebop vai se desenvolver um pouco mais lento. Uma fase do bebop e do hard bop. Essa fase dura um bocado. Depois vem o experimento do free jazz e Miles consegue criar um outro veio, levando isso para frente até quando morre. Ele sozinho. E ele foi trazendo pessoas atrás. Outros foram seguindo, mas ele consegue fazer sozinho esse outro veio. Traçar esse outro caminho. E aí que entra uma coisa fantástica que é a personalidade dele. Era um cara que conseguia impor a personalidade. A visão dele das coisas. Arriscou muito, mas tinha algo dentro dele que dizia: esse é o caminho. Ele não errou. Praticamente, não errou em momento nenhum.

Essa fase de inovações ele levou continuamente até que resolveu parar tudo em 1975, só voltando à atividade em 1980. Qual a sua opinião sobre as razões para esse hiato, bem como sua carreira após isso?
Esse período de cinco anos no qual ele passa isolado, quando parou de tocar entre 1975 e 1980, eu acho incrível. Mas já é uma especulação minha. Já li algumas coisas, mas nada fica muito claro para mim. Então, eu me dou ao luxo de improvisar, também. De fazer um pouco de jazz disso. De fazer uma reflexão na cabeça do cara. Eu acho que Miles chega a um ponto em que diz: “o que mais pode ser feito? Eu cheguei ao topo de um processo de criação.” E quando ele começa a tocar aquela fase eletrônica, vem um dado curioso. Ele também foi muito ligado a essa questão do dinheiro. Do dinheiro que ele podia fazer com a música dele. Então, ele negociava os contratos de uma forma muito impositiva. Defendia bem seus interesses. Estava sempre atento. Queria as coisas bem claras para não deixar margens. Ele sabia o valor. Sabia dar-se o valor de um grande artista. Eu lembro de uma passagem naquele livro autobiográfico. Ele fala que quando viu aqueles shows do Jimi Hendrix, aquele povo todo, aquele público enorme, ele falou: “por que eu não posso tocar para cinco mil pessoas ao invés de ficar tocando para cinquenta em um clube?” É quando ele começa a pegar o jazz e trazer para o que estava ali em um processo dos anos 1960. Como falei antes, você vê uma coisa que aconteceu em 1958, 1959, que foi o surgimento do free jazz. Isso mexeu e fez um abalo grande nas estruturas do Jazz, no conceito. Mas Miles não conseguiu enxergar ali um caminho para si. Ele não aderiu. Por mais novidade que aquilo tenha sido, por mais que chamasse a atenção, por mais desafiador que fosse, ele não percebeu naquilo um caminho. Ele opta por trilhar outra coisa. Pega aquele material de jazz que vai desenvolvendo e consegue mais uma capacidade incrível de juntar músicos. Ele tinha essa capacidade incrível de formar uma banda boa e juntar músicos que o ajudassem nesse processo. Ele tinha (John) Coltrane no saxofone. E foi uma fase difícil quando Coltrane saiu. Ele queria o Wayne Shorter de qualquer jeito tocando na banda. Mas o Wayne Shorter tinha compromissos com Art Blakey no Jazz Messengers. Miles teve que esperar um pouquinho. Alguns saxofonistas passaram pela banda dele. Você percebe como soam diferente da ideia dele. Quando Wayne Shorter chega, eles tocam durante os anos 1960 e gravam muito material. E quando juntam o rock ao jazz, eles expandem a coisa de um jeito tão espetacular que eu penso que a pausa dele ali em 1975 foi uma coisa assim: “vou parar porque cheguei a esse ponto”. Não havia mais nada para ele fazer. Ele parou e percebeu que não tinha mais para onde ir no aspecto da criação. Ele só retorna nos anos 1980. Acho que Miles, quando retornou, talvez tenha pensado em fazer com que a coisa seguisse em um rumo mais pop. Mais de música pop. E aí é difícil fechar a coisa. Eu não consegui fechar. O material que Miles produz dos anos 1980, até quando morre, é algo que já não tem mais aquele espírito do material que ele fez até 1975. Entrou uma coisa mais pop. Os anos 1980 eram muito pop. Michael Jackson era bem pop. Marcus Miller produzia pop. Então, Miles entrou em um veio que talvez não tenha sido a fase mais criativa das propostas, mas talvez tenha sido quando ele atingiu a um público que não era exatamente o de jazz. Muitos fãs foram se desligando porque queriam ouvir o Miles dos anos 1950. Mas ele caminhou para outra coisa. De toda forma, essa junção do jazz atrai um outro público. O público do Miles que curtia rock, era especializado demais. Muitos se tornaram músicos. Mostrou como a percepção daquela música era forte em suas vidas. Mas dos anos 1980 para cima, eu acho que ele entra em uma coisa da música pop. Ele torna a coisa mais simples de assimilar, mas ainda sendo ele mesmo.

Foi um período que ele alcançou uma outra audiência, realmente.
Sim. Nesse momento ele atinge um público diferente. Um público que não era aquele pessoal que vinha de um nicho mais jazzistico. Mais do rock. Ele consegue atingir um público maior, sim. Você vê que ele lança o “You’re Under Arrest” (1985) com duas músicas bem pop, “Time after Time”, da Cindy Lauper, e “Human Nature”, do Michael Jackson. Eram músicas bem pop da época. E tem uma outra questão. Miles se torna mais popular, vamos dizer assim. Acho que o jazz nunca foi uma música popular, mas ele entra em uma outra pegada. E quando chega os anos 1990, com aquele último disco (“Doo-Bop”, lançado postumamente em 1992), quando ele já faz uma frente com o hip-hop. Ali era um outro veio que ele estava abrindo. Ele estava se comunicando com essa coisa. Era algo frequente naquele momento. E ele adentrou nisso de alguma forma, também. Acho incrível essa capacidade dele de moldar a coisa em si e se moldar a um contexto ainda sendo o Miles Davis Miles não deixou de ser Miles em momento nenhum. Mas é um camaleão. Tinha uma facilidade para se reinventar incrível.

Na sua carreira como trompetista, você traz muito da busca por experimentações dentro de diversas expressões musicais que o Brasil tem. Essa mesma busca por experimentações na carreira de Miles espelhou a sua própria?
Fico muito feliz que de alguma forma eu pudesse ter uma resposta positiva para essa sua pergunta. Miles me passou uma coisa muito importante que foi ser eu mesmo. Esse é um conceito que acho muito valioso. Quando penso, vejo e ouço Miles, e comparo com o que acontecia naquela época, Miles era Miles. Ele não fazia concessões. Fez essa última. Lembra do disco “Live in Montreaux” (1993), que ele gravou com o Quincy Jones? Ali foi uma coisa incrível porque ele quis fazer algo a que se negou a vida inteira. E o Quincy Jones fala uma coisa interessante. Que de alguma forma, Miles sentiu que tinha que fazer aquilo. Talvez porque era uma das poucas coisas que ele não tinha feito na vida e que não seria exatamente negativo, mas, sim, algo a mostrar que Miles é tão maior do que até mesmo alguns conceitos que defendeu a vida toda. Então, quem esperava que Miles fizesse isso? Quando a vida toda ele dizia que não poderia olhar para o passado? Não podia mais fazer a música que tinha feito. Mas, de repente, Miles vai e faz. Surpreende nesse quesito. E, de fato. Miles já não tocava como tocava nos anos 1950. Aquele tipo de música que fez com (o produtor e arranjador) Gil Evans. Já não tinha aquela conexão mais. Vou te falar, viu. Como instrumentista, é incrível isso. É muito complicado você, com uma determinada idade, visitar uma coisa que fez lá atrás, quando era mais jovem. Com um outro tempo, um outro ritmo, outra saúde, outra disposição, outro corpo. É difícil se lançar a um desafio como aquele. Naquele show, tem um trompetista ao lado dele, o Wallace Roney, que tocou algumas das partes dos arranjos. Ia ser muito difícil para o Miles lidar com a partitura, os arranjos, as voltas, os lugares, aquela coisa toda. Ele já tinha se desconectado daquilo. Mas, enfim, fiquei muito surpreso quando assisti. Fiquei muito emocionado, também, quando o vi tocando e relembrando aquelas coisas. Fico muito emocionado com aquele vídeo. E pouco tempo depois, ele morre. E aí, guardei essas palavras do Quincy Jones. Miles sabia que tinha que fazer aquilo. E aí vamos especular. Mais uma vez, acho que cada um faz um tipo de especulação pessoal sobre Miles. Porque é algo tão único. Não tem uma referência de alguém que tenha feito um processo semelhante e que isso gere um precedente. Era uma coisa muito dele. Quem vai saber? Talvez alguém saiba, alguém de perto, quais as razões que ele defendeu para aquele projeto “Live at Montreaux Festival”. Mas, voltando à sua pergunta, ficou essa coisa do Miles em mim. Primeiro a coisa do som. Como Miles soava. Isso é uma coisa que sempre persegui na vida. A voz. O som do seu instrumento. Então, Miles tinha esse cuidado. Ele soava muito bonito. A coisa de você mesmo. Você só consegue fazer com que as pessoas te ouçam quando você se mostra. À medida que você tenta mostrar uma outra coisa de uma outra pessoa, que você está copiando alguém, ou entrando em uma onda onde todos são lindos, você vai ser mais um. Ninguém vai prestar atenção. Mas, óbvio, você precisa ter muito talento para aquilo. E talento é uma coisa subjetiva demais, também. Mas quando você diz a verdade, alguém vai te ouvir, nem que seja uma única pessoa. É um público valoroso, de uma única pessoa. Mas uma pessoa que tem interesse de te ouvir como você é. Então, isso ficou muito forte para mim.

Vindo de Alagoas para Salvador há 34 anos, como foi esse processo dentro da música atuando como trompetista?
Eu, claro, não tinha e ainda não tenho as condições que Miles tinha de sobreviver com o que ele produzia. Era coisa demais. Eu não podia nunca almejar que, aqui no Brasil, eu pudesse ser um músico que seguisse a minha carreira como solista no contexto que vivemos. Eu não conseguiria. Então, de alguma forma, me sustentei com os meus vínculos de emprego como servidor público. Passei a fazer as outras coisas na medida do que valia para mim, do que eu gostasse, o que eu quisesse fazer. Vou te dar um exemplo. Aqui em Salvador, toquei com artistas da axé music… por 14 anos. Toquei com Gerônimo, toquei com Gente Brasileira, que era uma dissidência da Banda Mel, uma ruptura que eles tiveram no final dos anos 1980, com o Bucky Jones, as duas meninas que cantavam, Janete e Jaciara, e alguns músicos da banda. Mas acabou não indo muito longe. Mas foi o primeiro trabalho regular que fiz. Havia feito o carnaval de 1988 e 1989, com Jorge Zara, do Bloco Crocodilo, mas com uma banda mesmo, esse foi o grupo que eu toquei primeiro. Depois toquei com Gerônimo, Dionorina, que é um cantor de reggae de lá de Feira de Santana. E aí veio a Timbalada, Carlinhos Brown e os lançamentos do primeiros dois discos dele. Depois veio Daniela Mercury, com quem eu fiquei um tempo muito grande. Depois fiz uma turnê com Caetano. Fiquei tocando com ele por dois anos e meio. Após isso, voltei para a banda da Daniela, onde eu fiquei por quase seis meses. E aí bateu uma coisa em mim que eu pensei: “estou cansado dessa música”. Estava começando a doer. Sempre digo aos meus alunos. A música precisa te dar algum prazer, alguma realização. No dia que a música começar a doer, tem alguma coisa errada. É preciso olhar para isso com muita atenção antes que ela comece a te causar raiva. Quando começou a doer subir no palco para tocar axé, e digo isso sem fazer juízo de valor, mas para mim não fazia o menor sentido mais. Parei em junho/julho de 2002. Saí da banda da Daniela Mercury. Pouco tempo depois, fui chamado para tocar com a Ivete. Não estava trabalhando com ninguém. Pedi só um dia para pensar. Só para falar com a minha esposa na época. Eu falei assim: “se eu for, vou ganhar muito dinheiro. Mas se eu for, também, a gente vai se separar”. Se eu fosse, também, iria interromper um processo que eu havia começado, que foi entrar no doutorado da UFBA, para seguir um outro caminho. Decidi que não queria. Mas precisava comunicar a ela e foi esse dia que pedi para pensar. No outro dia, liguei para o Alexandre Lins, que era o produtor dela, uma coisa assim. Agradeci pela lembrança. Era um excelente gig, todo mundo estava querendo, mas eu não tinha mais condições. Eu estava em outro caminho e não ia abrir mão dele. Eu não sabia nem onde isso podia dar. Mas, enfim, surgiu um concurso na universidade e eu fiz. Concurso para Trompete no Curso de Música Popular. Depois eu pensei: “Meu Deus, como tudo fez sentido.”

Olhando em retrospecto, a escolha fez todo sentido.
Sim. Para mim, está sendo muito valioso colaborar com esse processo da educação com música popular, dentro dessa escola, do que se eu estivesse na banda da Ivete. Estou produzindo uma coisa que, para mim, é mais valorosa. É mais provocador. É mais instigante. Produzo alguma coisa que talvez não seja exatamente o som, a música que eu tenho feito em outras vertentes, mas, para mim, foi a coisa que fez sentido. É como se eu dissesse assim: “estou sendo mais útil, estou sendo mais valoroso para a música do que se eu estivesse tocando com artista pra lá e pra cá”. Então, essa postura de independência, alguns músicos disseram para mim: “olha, Joatan, eu não tenho como me agarrar, como você tem, mas as atitudes que você teve com essa turma, com esse mercado, me provocaram a buscar uma outra coisa para mim que pudesse me sustentar e não ser tão subserviente”. Porque, João, eu acho que as pessoas não têm ideia do que os músicos passam nesse contexto. Eu não gostaria ainda de fazer um comentário público, porque eu ainda quero dar um pouquinho de distância do tempo para poder falar, mas é uma coisa muito ruim. É uma relação muito ruim. É uma cultura diferente, porque eu vejo outros lugares que têm bandas pop, como o Rio de Janeiro, por exemplo, que tem um mercado muito grande com isso, e eu não consigo ver as mesmas coisas que se praticam aqui. Então, bom, eu ainda não quero falar sobre isso porque quero um pouquinho mais de distância do tempo. Espero que eu não morra antes disso. Mas é uma cultura ruim demais. Mas, enfim, Miles, de uma certa forma, foi quem me falou isso. Assim que eu comecei a ouvi-lo. Eu gosto muito de ler. E quando eu começava a ler nos encartes quando eu era bem novo, sempre tinha um encarte que falava algumas coisas. Logo cedo, eu comecei a comprar livros para entender e acompanhar muito as coisas que Miles dizia e que chegavam a mim. Aquilo foi criando uma espécie de conceito de vida, de inspiração, através daquilo. Fico muito impressionado pela maneira como Miles se impôs. A maneira como ele reagia no palco, como ele se comunicava com as pessoas. Ele era frio, também, claro. Se você comparar o Dizzy Gillespie com ele, é uma outra coisa. Ele era muito distante do público, mas as pessoas o amavam desse jeito. Quando ele começava a tocar, tinha sempre uma… (pausa) É porque muitas vezes, a música… A música tem várias funções sociais. Isso é muito claro para mim. Para essa música, que era uma função de apreciação, tem uma lado que precisa de um certo… de um retorno de diversão. Por exemplo, nos anos 1950, houve um revival daquela música tradicional de New Orleans, aquela coisa do dixieland. Houve um revival daquilo com muita força. Era como se as pessoas, depois do bep bop, daquelas experimentações todas, era como se uma parte do público cansasse tanto, que eles disseram: “eu quero ouvir aquela música, que é tão mais fácil de ouvir. Diverte tanto. É tão bom. Preciso da música nessa função para me divertir. Eu preciso daquilo. Ainda que eu possa consumir as duas coisas, eu estou aqui com o ouvido ligado, do que está acontecendo nos anos 1940, nos anos 1950. Mas eu preciso daquela música para dar um relax também para mim”. Mas tem aquele outro nicho, aquele outro público que pega aquela música e diz assim: “o que isso quer dizer?” Porque aí vem uma liberdade que o apreciador tem, o público, que o jazz provoca, que é dizer assim: “Agora é a sua vez de improvisar. Você vai ouvir agora essa música, vai digeri-la, percebê-la e entendê-la a partir de você”. É uma viagem, também, solitária, a do apreciador. A do apreciador mais atento.

Sim. E Miles conseguiu criar esse tipo de ponte com esse apreciador atento.
Sim. O cara consome essa música e ele mesmo participa daquele processo. E não é um processo de comunicação. Lembro de conversar com um professor e ele me dizer que, para ser uma linguagem, precisa ter fonemas, precisa ter uma série de coisas. Porque a gente, às vezes usa as palavras como meio/fantasia, e, às vezes, não funciona direito quando você vai para um outro ambiente. Então, a música não é linguagem porque não se conversa. Não tem fonemas, não tem estrutura de linguagem. Mas pode comunicar. Ela vai comunicar uma coisa e você, na qualidade de ouvinte, de público, você se torna um intérprete, também. Porque aquilo vai chegar a você e você vai digerir aquilo a partir do que você tem. Então, nesse conceito, o público, um certo público, continuou fiel a essa ideia do Miles de acatar, de receber as contribuições dele e, a partir daí, desenvolver a sua apreciação, o seu gosto por ele. Para mim, isso é uma coisa que sempre me toca porque é único. Eu não consigo enxergar outro artista que tenha tido a projeção que ele teve e tenha sido capaz de provocar tantas rupturas e ter levado aquilo no braço, sozinho. Ter levado essa música para caminhos tão inimagináveis. Desde os anos 1970 até o final, no comecinho dos anos 1990, ele conseguiu dialogar com um público que é fora do público do jazz tradicional. Ele consegue dialogar com um outro público e, nos anos 1980, conseguiu dialogar com o momento. Quando começa a fazer produções com o Marcus Miller, ele começa a entrar em outro filão. A perceber e a se perguntar: “o que está acontecendo atualmente e de que forma vou me inserir nessa música de hoje?” Aí ele já faz uma primeira concessão, talvez. Ele se coloca nos anos 1980 dessa forma. E aí, é outro pano pra manga. Tentar entender esses anos 1980 e essa última viagem de Miles. É assim que eu percebo um pouco dele. Acho que nos anos 1980 ele faz uma primeira concessão, que foi olhar para o entorno. O que o jovem está ouvindo, hoje, para eu me inserir. Porque quando ele faz essa junção com o rock, talvez ele tenha pensado nisso. Como ele declarou: “por que eu não posso tocar para cinco mil pessoas enquanto eu só toco para 50 em um clube?” Ele estava a fim de cativar o jovem. Ele queria que as pessoas mais jovens ouvissem a música dele. Mas ele ainda vinha no conceito jazzistico bem forte. Nos anos 1980, você já não vê esse Miles tão jazzista como antes. Já não é o jazz que a gente percebe tal qual. Mas é uma outra coisa. Acho que aí ele faz um diálogo com outro universo que não era aquele veio. Embora ele rejeitasse o conceito do jazz. Muitos rejeitaram ser taxados de jazzistas ou qualquer outra coisa. E o jazz é uma coisa difícil de definir em palavras claramente. Qualquer tentativa termina sendo sempre insuficiente.

Como você definiria?
Eu li uma entrevista do Woody Shaw, de 1974. Ele é um cara muito pessoal. Por incrível que pareça, é um dos poucos músicos trompetistas que causaram uma impressão no Miles Davis entre os anos 1970 e 1980. Miles falou assim: “Esse cara tem uma coisa nova na maneira de tocar. E é única, também. Bem particular”. Mas o Woddy Shaw, quando perguntaram a ele nessa entrevista o que era jazz, ele respondeu: “O jazz é uma maneira de viver. Um olhar sobre a vida. Um conceito. Não é uma música, não é um ritmo, não é um gênero. É uma forma de viver. Um estilo de vida”. Então, muitos tentam responder isso dizendo que o jazz se vale da música, mas ele é um conceito em que você, instrumentista, você, o músico, tem a palavra para falar de si e para falar de como você vê as coisas em torno de si. Porque, vamos lá, se a gente for buscar na História da Música, nos ambientes todos que a gente conhece, que música se prestou a isso? A dar essa voz ao músico? Porque, lá no passado. o compositor sempre teve mais proeminência. Compunham aquelas peças maravilhosas, e o músico ia lá e tocava. Executava aquela partitura. O solista, por mais destacado que fosse, ele ia tocar uma partitura de alguém. E aquela partitura estava escrita dentro de um esquema, de uma forma. Raramente você pode sair daquilo, daquele scritpt. Aí você sai um pouquinho da música ocidental, que domina esse público nosso aqui, se você for para a africana, já é um outro conceito. Mas um conceito, também, que se aproxima com o jazz, é o maior vínculo com a África. Quando dizem assim: “Ah, o jazz também tem uma coisa que vem da África”. Como? De que forma? Onde é que está isso na música? Quando você ouve Duke Ellington ou Dizzy Gillepse, onde é que está a África ali? É na percussão? Não. Tem alguma coisa que lembra a África ali naquelas batidas? Não. Mas é um conceito. Eu trabalhei muito tempo em Angola, e um amigo de lá dizia que a África são muitas. A África não é uma coisa só. A África e todo mundo é igual? Não. São várias Áfricas. Todas muito diferentes. Mas o africano não tem esse conceito de música para apreciação, essa cultura ocidental de você ir para o lugar apreciar a música como arte. Hoje em dia, você vai encontrar, claro, porque já tem uma presença ocidental muito grande ali. Mas para ele, para o cara ali da tribo, mais dentro da coisa, esse conceito de arte não existia. Porque, para eles, dançar, cozinhar, tocar, cantar, essas coisas eram ações do dia. Eram coisas normais do dia-a-dia. Não eram um conceito do tipo: “vou tocar aqui para alguém me ouvir”. Era uma coisa que era feita por todos e não com essa ideia de ser um objeto para ser apreciado, consumido. Eram ações do dia a dia. Como comer, andar. A necessidade de dançar, de tocar, de cantar, ou de esculpir ou de pintar, não era para que aquilo fosse vendido. Isso é um conceito posterior. Mas, para eles, era uma manifestação da vida. Veja como isso se liga, também, na mitologia africana, que gerou nossa cultura do candomblé. São coisas da vida. São expressões naturais da vida e que, sem elas, aquilo não faz sentido, também. Então, nesse ponto, o jazz carrega esse conceito que, para mim, é muito caro. Eu só vim perceber isso muito tempo depois porque poucas pessoas falam sobre isso. O que mais me impressiona no jazz é essa capacidade de criar a cada momento.

Como isso se espelha no seu trabalho como professor e, também, como compositor?
Sou professor de Improvisação na Escola de Música da UFBA. Talvez eu frustre alguns alunos quando chego para eles e digo: “olha, não tenho o material para te passar pronto, como muita gente faz, dizendo que você vai ter que estudar isso aqui e terá todas as respostas para as harmonias e para as músicas que você venha a tocar”. Não faço isso, João, porque não posso fazer. Primeiro porque não posso dizer a ninguém como interpretar, já que uma interpretação é uma liberdade individual de cada um. Se não vai ser outra coisa. Mas vou tentar te ensinar mecanismos para você criar melhor. Para você não errar a harmonia, não errar o acorde. Essas ferramentas que vou te dar. A partir daí, entra o artista. A partir daí, entra o intérprete, com a sua liberdade, para dizer o que ele quiser dizer. Etou tentando terminar dois discos que produzi agora. Está faltando dinheiro para terminar. Quando eu estava fazendo esse disco, tinha muita gente que faz assim: “Vou preparar os solos, os improvisos, para ficar uma coisa redonda, uma obra de arte acabada”. Eu não consigo fazer assim. Eu entrava no estúdio sem a menor ideia de como ia começar os solos daquela música. De como ele ia se desenvolver e como ele ia terminar. Esse para mim é o conceito. Todos os solos que aparecem naquele disco podem não ser maravilhosos, podem ser bem medianos, ou podem até ser ruins. Mas uma coisa ninguém vai tirar de mim: ali é o meu discurso. Aquela hora foi o que eu pude dizer, e o que eu quis dizer. Essa é uma coisa que Miles fazia. Aprendi dele. De impor essa liberdade da qual não posso abrir. Só posso fazer assim. Para mim, pego esse conceito dos africanos que eu li e guardei. É como se eu saísse de casa para ir ao Teatro Castro Alves para ensaiar. Nesse caminho de ida, que é uma ação que faço, não sei o que posso encontrar. Podem acontecer várias coisas. Um imprevisto. Não tenho controle sobre isso. A vida é assim. Não temos controle do que vai acontecer. Mas a gente espera que aconteça bem. Então, na música, para mim, quando estou improvisando, quando penso, quando toco essa música, guardo esse conceito e é difícil abrir mão dele. Vou fazer o que na hora vier à cabeça. O que posso criar na hora. É isso. Acho que são essas coisas que Miles deixou muito forte comigo.

É notório o modo como o período na França deu a Miles uma visão de mundo diferente da que ele tinha nos Estados Unidos, país notoriamente racista. Lá, ele conheceu intelectuais, engatou um relacionamento amoroso com a cantora Juliette Gréco, e foi valorizado como artista. Ao voltar, sua depressão foi pesada e o afundar na heroína quase inevitável. Você concorda que o fator principal para Miles demonstrar ter uma personalidade tão introspectiva e sua frieza, juntamente com os acessos de fúria, além de seu vício em drogas, têm relação com o modo como ele lidou com esse racismo e como isso o afetou?
Em parte, sim. Há sempre a questão do indivíduo. A maneira como cada um reage. A maneira como cada um filtra aquilo. As pessoas são diferentes. Quando vejo Miles nesse sentido, vejo que foi um cara que sentiu muito. Não acho impossível, nem absurdo, ele ter tomado essa pancada no modo como ele viu os Estados Unidos ao voltar. Porque o que Paris deu a ele naquele momento… Ele estava ali ao lado de Picasso e de outros. Isso foi muito chocante para Miles. Ele já vinha sentido isso. Ele contava que nos quartetos e quintetos de jazz, quando ele começou, ali nos anos 1940 e 1950, ele falava que o grupo tinha que ter o cara menos preto. Ele era muito preto, o Art Blakey era muito preto. Mas sempre tinha que ter um cara na banda com um tom de pele mais clara. Era esse cara que ia descer nos lugares para comprar comida quando eles estavam em turnê. E se todo mundo fosse de pele muito escura, eles teriam problemas sérios. Ele fala isso no livro. Isso é doloroso demais. Sou o tipo de pessoa que sinto muito esses golpes. Isso me deprime demais. Essa condição do ser humano. Logo quando ele volta de Paris, tem aquele incidente na porta do clube (Birdland), quando o policial o aborda e o agride. Isso não é uma coisa fácil. Não temos uma dimensão muito precisa. Aqui no Brasil temos um problema muito sério para lidar com a verdade. Um problema seríssimo. Já pensei sobre isso absurdamente. Quando um cara te pergunta uma coisa, você conta uma história para dar a resposta a ele. Tipo: “Temos ensaio na sexta. Você pode?” O cara responde: “Rapaz, sexta, minha mulher vai precisar do meu carro. Vai pegar para levar a criança na escola, depois vai…” O cara conta uma história! Eu preciso apenas de uma resposta para a pergunta: “Você pode ensaiar na sexta-feira?” É sim ou não. Quando você me der essa resposta verdadeira, não me interessa o que está acontecendo por trás disso. Nós lidamos muito mal com essa questão da verdade. Então, por isso, aqui no Brasil essa coisa do racismo é embolada no meio de um monte de enroladas e nunca fica muito claro. Todo mundo sabe que tem, mas ninguém reflete porque está nesse bolo todo. Desde quando aquela primeira história do Brasil, logo quando criaram o IBGE, houve um concurso para se criar a História do Brasil. No caso, UMA história do Brasil. E aí, quem ganha esse concurso é um alemão.  Esse cara consegue contar uma história fazendo exemplo com os rios. O grande rio representa Portugal, cujos afluentes vão se juntando a ele formando o encontro de três raças. Aquele romance. Essa balela de encontro de três raças. Que encontro de três raças?? Foi uma raça matando e dizimando as outras. E até hoje o processo continua. Criou-se uma ideia de romantismo, como aquela do brasileiro cordial, de que no Brasil não tem racismo e que muita gente defende até hoje. O livro daquele cara, o Ali Kamel, chamado “Não Somos Racistas”, esse cara fala tantos absurdos nesse livro. E tudo baseado em teses sociológicas etc. E muita gente não lembra ou talvez nem saibam, é que houve um pensamento intelectual aqui no Brasil que vingou de 1860 a 1930 que foi basicamente esse conceito de eugenia, de raça pura. Porque, naquele momento, se acreditava que tínhamos raças diferentes, e que havia um ranking dessas raças. Então, naquele conceito, os humanos mais evoluídos, mais civilizados, faziam parte daquele norte da Europa. Depois viriam os europeus ali do centro, depois os europeus mais mediterrâneos, que tiveram influência dos mouros. E eles iam catalogando isso. Naquela época, os africanos tinham até mais valor que os chineses, de tão fechados que os chineses eram. Eles detestavam a China, pois ninguém conseguia passar por aquilo ali. Então, o Brasil acreditou, com nomes como o de Nina Rodrigues, a lista é grande, muita gente validou essa teoria. De que nós só seríamos uma nação se fôssemos uma nação de brancos. E aí. quando vem a alforria, a lei Áurea assinada pela Princesa Isabel, o que os caras fizeram? Eu não sei se isso foi pensado e registrado como uma ação, mas nos deixa a ver que é isso. Acabou a escravidão, libertaram aquele povo todo. “Se vira. A partir daí é com vocês”. Talvez tivessem esperança de que esse povo acabasse, morresse. Porque não tinha mais o chicote, mas, também, não tinham comida, não tinham onde morar, não tinham mais nada. E aí começaram a trazer europeus para o Brasil. Aí, sim. É uma campanha documentada. Até Brasil e Argentina competiam para quem trazia mais gente da Europa para cá. Havia feiras internacionais e no Brasil se fazia esse tipo de divulgação. Então, atraíram esses europeus para cá, instalaram naquelas terras férteis do Sul do país, com a esperança de que eles se misturassem e fossem branqueando a população, para, aí sim, de fato, nós chegarmos à civilização. Esse foi um conceito que durou até a década de 1930. Então, é uma questão que está muito clara. Não dá para ficar numa enrolação de que não tem racismo no Brasil. Isso é incrível.

No caso de Miles, esse racismo foi golpe pesado que o levou ao vício de maneira violenta.
Sim. Para algumas pessoas, vai gerar uma reação muito forte. Miles se ressentiu muito disso. E aí essa coisa da droga nos leva a pensar o seguinte: geralmente é uma maneira de você sair da realidade. O cara usa aquilo para tirá-lo daquele momento. Levá-lo para uma outra coisa. É como se você buscasse um recurso para fugir daquele momento onde, no dia-a-dia, você teria que se defrontar, reagir e sobreviver. Muitas das razões para o uso é meio que essa busca por um descanso, por uma outra realidade. E aí é tão ruim quanto, pois gera uma coisa muito pior. Entendo perfeitamente o que acontecia com Miles Davis nesse momento. Existia, também, um romantismo, como vemos hoje aquelas propagandas nas quais as pessoas apareciam com o cigarro na mão. Aquilo era tão charmoso, tão bacana, que todo mundo fazia. Se você bebe, você toca melhor. Se você fuma, você toca melhor. Se você se droga, você toca melhor. Se você aplica heroína no braço, cheira cocaína, faz qualquer outra coisa, você vai fazer aquilo melhor porque muitos que fizeram coisas bacanas faziam isso. Existe esse romantismo e é onde a porca torce o rabo. A coisa complica. Mas, enfim, eu não tenho a menor dúvida de que havia uma grande pressão sobre ele. A maneira como ele reagia era o resultado de uma pressão grande. Era um músico negro que estava tendo uma projeção muito forte. E a coisa nos Estados Unidos não é minimamente camuflada. As coisas lá são bem escancaradas. Nesse sentido, ele se recente dessa falta de respeito, dessa falta de acolhimento. E eu acho que nesse momento, a partir desse embate, ele desmorona. É doloroso.

Quando olhamos a trajetória do Miles Davis no decorrer das décadas, vemos essa construção gradativa. Essa característica marcante dele de nunca olhar para trás em sua carreira, sempre seguir buscando por algo novo é algo perceptível, como algo que o moldou e o levou para frente. E a característica principal era a experimentação. Lembro de ter visto um vídeo seu, Joatan, lá em Cachoeira, tocando junto com a Orquestra Reggae e, ao rever aquele vídeo recentemente, senti vontade de te perguntar sobre essa mesma capacidade de experimentação presente em seu trabalho e em sua trajetória como artista brasileiro.
No meu caso, se deu mais ou menos assim. Quando me percebi brasileiro… Isso é um exercício importante. Não sei se todo brasileiro se percebe brasileiro. E quando digo isso, me refiro ao ser cultural. Antes de qualquer coisa, para mim, o aspecto mais importante é o fator cultural. Sempre defendo que, qualquer governante aqui, deveria traçar o seu governo, as suas questões, o seu programa, a partir do homem cultural. Não há formas de você desenvolver políticas para aquele cidadão sem que você o conheça culturalmente. Porque a cultura vai dizer quem ele é. A cultura vai falar das suas carências, de uma série de coisas. É riquíssimo. Acho que a gente acertaria muito se esse entendimento fosse o primeiro. Não dá para trazer uma política econômica se você não sabe quem é aquela pessoa. Não vão funcionar as fórmulas lá de Chicago. Então, para mim, é o ponto principal. Para mim, começa com a cultura. Daí para frente, você pode colocar como segundo ponto qualquer um que você queira. Mas, para mim, o primeiro ponto é o cultural. Quando me percebi brasileiro, quando olhei para trás de onde eu vinha, de uma avó que era uma índia que morava em uma tribo. Meu pai a conheceu por pouco tempo, pois ela morreu muito cedo. Ele era o caçula. E outros antepassados que encontrei, como um espanhol de onde vem meu sobrenome Mendonça. É um monte de coisa. É uma junção de muita coisa. E aí tem uma disciplina na Escola de Música da UFBA que eu ministro que se chama Oficina de Estilos. Sempre começo falando do Choro, que foi a nossa primeira música popular urbana. Faço isso para que vocês se reconheçam, para que vocês se vejam como parte disso. E como foi importante essa maneira de misturar as coisas. Sempre digo que o maior trunfo nosso está no fato de sermos misturados. Porque quando você mistura duas coisas estanques, duas coisas diferentes, mas estanques, ali, você vai gerar uma terceira. O café é uma coisa, o leite é outra, mas quando você mistura, vai sair o café-com-leite, que é uma outra coisa diferente daquelas duas coisas estanques ali. E esse é um processo de riqueza, esse é um processo de criação. Nós temos essa qualidade que vem naturalmente desse fato da gente já ser misturado. Tem uma outra coisa também. Tem uma tese do Darcy Ribeiro que ele diz que essa baixa autoestima nossa vem do momento em que o primeiro brasileiro surgiu. Aquele brasileiro que já não é nem somente o índio, nem somente o africano, nem somente o português. E aquele cara nasce sem um histórico. Ele surge sem uma cultura dele. Para dizer dele. Ele já não podia ir para a Casa Grande, já que não era o lugar dele. Ele nem podia ir para a tribo, porque também não era o lugar dele. E ele também não podia ir para a senzala porque também não era o lugar dele. Ele nasceu sem uma identidade. E isso precisa ser feito. Creio que isso foi o que faltou para que a grande elite brasileira desde sempre manipulasse. Uma coisa incrível que se faz no processo de escravidão é quando você destrói a cultura do cara. Os soldados, geralmente, estupram as mulheres para que nasçam filhos misturados e, assim, gera uma coisa sem história, sem passado. Começam a destruir a cultura daquele povo. Ocupam, destroem museus, incendeiam os livros, e eliminam os registros do passado. Você começa a se enxergar sem lastro. Então, fizeram isso com os africanos que vieram para cá, mas eles sobreviveram. Porque a invenção do Candomblé foi uma coisa maravilhosa. Inventaram uma coisa que fez com que eles sobrevivessem. Eram africanos de vários lugares, de vários conceitos religiosos. Mas, enfim, foi a maneira como eles encontraram de sobreviver. Pelo menos no aspecto cultural sacro, essa foi uma coisa que fez com que eles sobrevivessem. E de certa maneira, como estavam todos confinados, começaram a desenvolver coisas ali. Mas eles não eram os brasileiros. Estes são aqueles caras que já vêm de uma mistura disso. E aí a gente não se deu conta ainda de que povo somos, João. A gente não consegue perceber quais são as nossas raízes, e qual é a nossa história. Temos esse medo de visitar a história, o passado, porque não queremos ligar com a verdade. A verdade que eu falo que a gente tenta escapar dela o tempo todo.

Essa questão da identidade cultural ao falar de jazz se destaca como junto aos seus alunos?
Sempre digo aos meus alunos: “Se você quiser tocar jazz como aquele que toca nos Estados Unidos, porque é bonito, porque é bacana, você pode conseguir. Você vai lá, adentrar na cultura, vai aprender, vai para a escola, que vai te dizer como é que se improvisa, como é que se deve fazer para tocar aquela escala, aquele harpejo, aquele acorde. Mas não sei se você vai conseguir ser você mesmo. Não sei se você vai conseguir ter um discurso seu. Não sei se você vai conseguir entrar naquela cultura como você espera entrar. Talvez seja um caminho você se servir daquela cultura, mas sendo você. Você não vai fazer aquilo do jeito que eles fazem, porque foi um processo muito longo para que eles chegassem até ali. Você não pertence. Você pode absorver como um viajante que vai para um lugar novo e absorve tudo que ele pode, o máximo que dá. E aquilo não é suficiente para mudar quem você é”. Então, João, não tem jeito. Qualquer coisa que eu fizer, da cultura do outro, por gostar, por apreciar, por respeitar, tudo que eu fizer vai ter sempre um DNA de um brasileiro. Porque fiz questão de assumir essas posses dessa cultura. E isso reflete um pouco nesses meus encontros com tantas coisas diferentes. É uma necessidade. No momento em que me percebi brasileiro, que tinha todas essas questões que falei antes por detrás, pensei comigo, conscientemente, pensei que eu queria tomar pé disso. Eu queria ter contato com isso, eu queria assumir como meu tudo o que havia chegado para mim. Seja o que chegou da educação doméstica, a escola, o que eu ouvia no rádio, qual era a relação na rua, as brincadeiras. Pensei: “Isso aqui é o meu universo. Preciso me apropriar disso para poder me colocar, para poder ser quem eu sou”. E me perguntei: “O que temos aqui no aspecto cultural relacionado à música que eu preciso me apoderar?” E aí foi chegando. A minha necessidade de estar nesses lugares todos, é uma maneira de dizer: “Estou me apropriando da minha cultura, do meu povo e eu só serei eu se tiver a posse dessas coisas. Elas vão me definir”. Não vejo outra maneira de me colocar. Já tive alguns embates com colegas por causa disso. Mas parei de querer discutir essas ideias porque, também, tinha que respeitar o que o outro pensa.

E como é estar em várias frentes distintas dentro do campo musical? Vasta experiência com artistas baianos de diversos estilos, presença na OSBA, carreira acadêmica, todo esse contato com a cultura musical brasileira, e, claro, com as experimentações do jazz.
Vou te falar. Algumas pessoas dizem: “Ah, você entrou porque ganha mais dinheiro, porque ganha mais projeção”. Cara, é porque eu preciso disso (que entrei). Se fosse músico somente de orquestra sinfônica, tocando repertório de música de concerto, europeia ou brasileira, qualquer que seja, pode ter certeza que eu seria uma pessoa infeliz. Se fosse somente um chorão, que tocava somente Choro, eu ia ser muito infeliz. Se fosse obrigado a tocar jazz somente e improvisar, eu ia ficar infeliz demais. Porque não dá. Não posso ser uma coisa só. Não posso me vestir com um único tipo de roupa, não posso comer somente uma comida. Não posso falar e escrever somente o português mais formal porque preciso disso na universidade. E com isso não poder falar gírias, não poder falar o baianês. Eu preciso disso tudo porque tudo isso sou eu. Como é que eu vou negar agora? Estou há 34 anos em Salvador, na Bahia, como vou negar que isso vai se expressar em mim de alguma forma? Não dá! Como é que ouço um trio pé de serra tocando baião? Eu vou reger aquilo? Uma orquestra de frevo tocando maracatu? Um carimbó. Um Pinduca, lá do Pará, cantando: “O pinto quando nasce, ele dorme debaixo da mãe”. Você quer que eu não reaja a isso? Você está louco? Se eu ouço uma toada do centro-oeste, você acha que eu não vou reagir àquilo? Está louco? Como assim? Então, João, isso tudo é meu. São posses minhas. Inalienáveis. Não abro mão. Porque não serei, não consigo me fazer existir, representar, se eu não estiver de posse desse material. Aí você me quebra totalmente se disser que daqui para frente só vou poder tocar um estilo. Ah, então terei que fazer outra coisa. Vai doer. Então, para mim, tem funcionado assim. E hoje, já estou desacelerando um pouquinho, por vários motivos. Hoje, digo para você, ainda acho que tenho pouco para realizar, mas já posso dizer que me realizei com a música. Ela já me deu um sentido na minha vida. Posso ter outras representações, como o Joatan professor, Joatan filho, Joatan pai, Joatan cidadão. São várias representações sociais. Mas posso ter outros sentidos na vida. Um religioso, vários outros. Mas esse é um sentido na minha vida. Eu não sou um músico. Eu sou um servo da música. Quando o terapeuta perguntou para mim: “Qual Joatan você define primeiro? Qual o primeiro que salta?” Eu falei: “O músico”. Ele vem, João, antes de qualquer coisa. Mas é a música, sabe? Eu não sou somente o trompetista, o executante do instrumento. Eu sou essa coisa toda. Tenho uma sacola de percussão, um violão, vou comprar um teclado. Tudo isso sou eu. É um monte de coisa. Um monte de músicas. Um monte de instrumentos. Um monte de expressões. Então, é mais ou menos assim como eu me defino. Nesse aspecto das coisas que eu fiz, elas eram necessidades. Elas eram um material que eu precisava tomar posse para me definir e completar esse processo. Do momento em que eu recebi essas informações, e que ainda estou recebendo até hoje, da maneira como eu enxergo cada uma delas, e me vejo nelas. Esse aqui é um material que eu preciso assumir para mim.

Como a Bahia se apresentou a você musicalmente, quando você decidiu viver aqui?
Lembro quando eu vi, pela primeira vez, o Samba Reggae, ainda em Maceió, no Globo de Ouro, Gerônimo cantando “Eu Sou Negão”. Muito bem. Aquilo foi impactante. Mas eu era muito novo. E na minha cabeça, naquela época, foi aquele impacto que ficou. Quando eu já morava em Salvador, eu estava indo na rodoviária comprar passagem para ir a Maceió. Aí toca no rádio do ônibus “Faraó”. Meu amigo, quando ouvi aquela percussão do samba-reggae, fiquei enlouquecido, encantado. Me senti em um caldeirão, que estava em uma panela gigante de coisas acontecendo. Entrei de cabeça para absorver o que a cidade de Salvador me colocou. E na medida que eu tinha oportunidade para trabalhar nas cidades do interior, aí que a coisa pega. Você vai enxergando tanta coisa. Foi uma necessidade de me entender, e de me definir. Essa definição do que é ser brasileiro. Utilizo isso na vida para, também, me manifestar nesses braços todos onde posso atuar. E dando aulas hoje, me nego a ser um professor que apenas dá o conteúdo aos alunos. E parece que tem funcionado à medida que quase todos, quando chegam no recital de graduação, na hora de formar, mencionam esse fato. De que nas nossas aulas falamos sobre vida. Sobre aspectos gerais da vida e de como nós, como instrumentistas e músicos, nos encaixamos nisso. Qual o papel da gente? O que se espera de ações ou de posições de um artista. Alguém que teve o privilégio de cursar uma universidade. De que forma queremos ser vistos? Me lembro de quando a gente viajava em grupos de muita gente, eu chamava os meninos e perguntava: “Que imagem vocês querem passar do Brasil lá fora?” Posso garantir a vocês que a nossa imagem não é boa, já viajei bastante, já vi. Tenho N exemplos de pessoas que ficaram chocadas pela forma como se construiu a imagem do brasileiro lá fora. Então, sempre perguntava, seja com a Rumpilezz, ou com a Timbalada, de que forma queríamos ser vistos lá fora. Porque a alegria é uma coisa boa. Mas ela tem um ponto. Depois daquele ponto da alegria, ela vira baderna. Vira algo que é demais. Um conceito que eu gosto de carregar: Você pode usar aquilo, se servir daquilo, mas não pode virar servo daquilo. Então, você se serve da alegria, mas ela não pode passar de um ponto que começa a doer, trazer dor. Acho que foi uma necessidade de assumir quem eu era, de assumir esse material. E, a partir daí, me expressar. Acho que mais ou menos foi isso.

Você tem uma fase preferida de Miles Davis?
Não tenho não. Fiz uma playlist de Miles aqui, e tem tudo dele. Gosto de tudo. Agora, vou ser sincero a você. Ainda estou estudando essa fase do final do anos 1960 e começo dos anos 1970, essa fase mais misturada com o rock. Ainda estou absorvendo. Acho que ele tem material demais, conceito demais. Não é apenas a estética da música. Ali tem coisas muito profundas que precisam ser ouvidas com muita calma. Com muita paciência. Porque o conforto da harmonia, o conforto da forma musical, o conforto da melodia, é uma coisa que a gente já domina. Mas quando você começa a romper com essas coisas, é preciso que você compreenda aquilo antes de você rejeitar. Então, muita gente rejeita Miles nessa fase porque não consegue enxergar aquele conforto que elas sentiam nas outras fases. É complicado. É como se você precisasse de um processo de formação de plateia. Fico sempre dizendo. Imagine um cara que nunca entrou no Teatro Castro Alves. Sempre teve vontade. Todo dia, ele para ali no ponto de ônibus e se pergunta quando vai entrar nesse lugar. Um dia ele consegue ir assistir a um concerto a Orquestra Sinfônica da Bahia. Se estiver tocando uma peça contemporânea dessas de hoje, que tem não só notas, mas ruídos e pancadas, etc, se ele tiver essa experiência de cara e não for um cara especial para dizer: “Poxa, tem valor isso aí”, ele não volta nunca mais. Ele não tem relação, não tem referências daquilo. O que ele ouve no rádio, o que ele consome no dia a dia, é muito diferente daquilo. Ali rompe demais o entendimento dele. Então, esses compositores mais modernos, de (Arnold) Schoenberg pra cá, esses compositores europeus diluíram a música. Para você desconstruir uma coisa, é preciso que você saiba muito dela, porque você pode estar destruindo ao invés de desconstruir. São duas coisas diferentes. Então, esses caras fizeram isso com uma música. Fizemos uma análise em uma matéria aqui no doutorado de uma peça chamada “Pierrot Lunaire”, de Schoenberg. Quando você ouve, é uma estranheza. Mas quando eu peguei a partitura com o professor na turma e começamos a analisar, tudo estava ali muito bem colocado. Tudo se explicava. Depois disso, eu fui ouvir “Pierrot Luaire” e a coisa fez um sentido incrível. É aquela coisa do cara dizer que não vai consumir isso. Bom, gosto não se discute. Mas se refina. A gente pode refinar o gosto. Então, um processo de criação de plateia seria bom. Voltando para o Miles, é isso. Estou estudando essa música de Miles desses anos aí. Não porque quando a ouço, eu a rejeito ou coisa do tipo. Eu quero assimilar mais. Quero ouvir e entender mais. Quando você fala dessa coisa da influência da música espanhola e indiana em algumas faixas de Miles, e por mais que a gente traga essas outras coisas, elas estão ali mas, talvez, não estejam tão óbvias. Ali, há mensagens que talvez estejam tão óbvias. Então, é preciso parar e entender aquilo. Tem uma apresentação dele na Ilha de Wight, na Inglaterra, em que ele toca apenas uma música. Um festival onde Gil e Caetano estavam, também. Nos anos 1970. Ele entra e faz uma música com 28 minutos. Acaba a música e ele sai do palco. O show dele foi aquilo ali. É algo tão bonito de se assistir. E você observar o processo criativo, da forma como eles se comunicavam, se olhavam. Da maneira como cada um contribuía e contribuiu. Quando eu assisti àquilo, eu fiquei aqui em casa assim absorto. Uma coisa incrível. Ao final, aparece ele saindo do palco, meio que olhando para o público, dando tchau. Eu só pude pensar: “Esse cara é um gênio. É uma coisa para além do trivial”. Muuuuito além do trivial.

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