Entrevista: Fabiana Caso fala sobre o livro “O Som de São Paulo”

por Marcelo Costa

São Paulo é uma cidade absolutamente incrível. Talvez a opinião de um paulistano nascido no Belenzinho e registrado num cartório da Rua Augusta (o mesmo que receberia o registro de seu filho 40 e tantos anos depois) possa soar enviesada, mesmo que em 50 anos de vida ele tenha passado 25 dos 30 primeiros numa cidadezinha de interior sonhando o dia em que desceria a Rua Augusta caminhando a 4 quilômetros por hora, mas falar sobre São Paulo sempre irá gerar comentários calorosos, apaixonadamente caóticos e verborrágicos – para o bem e para o mal. Tai uma cidade que suscita um emaranhado de sensações, frustrações, paixões e opiniões que nem mesmo num boteco virando a madrugada seriam apaziguadas. Porém, é absolutamente inegável como esse pedacinho de terra movimentou – e continua movimentando – histórias na música brasileira.

A jornalista Fabiana Caso, nascida e criada nessa megalópole cinza, decidiu compilar alguns desses causos musicais dessa cidade apaixonadamente absurda propondo uma cartografia sonora de São Paulo, resgatando depoimentos e testemunhos de protagonistas e coadjuvantes dessas histórias sonoras (incluindo entrevistas com nomes como Arnaldo Baptista e Sergio Dias, Edy Star e Tom Zé, Clemente Nascimento e Sandra Coutinho, Arrigo Barnabé e Pericles Cavalcanti, entre tantos), memórias visuais, os clubes (Madame Satã, Lira Paulistana, Teatro Ruth Escobar), as músicas (por meio de listas, resenhas de álbuns etc.), as lojas de discos (Baratos Afins, Wob Bop, Punk Rock Discos) e outros locais importantes, sem abrir mão da conexão com o presente, na medida em que estabelece pontes com as cenas musicais da atualidade.

O resultado é “O Som de São Paulo – 1967/1985”, livro de edição bilingue (português / inglês) que está sendo lançado no Brasil pela Editora Terreno Estranho (e no Reino Unido pela Rough Trade), e que traz Fabiana Caso acompanhada da ilustradora Talita Hoffmann, que assina o belíssimo projeto gráfico. “A intenção era justamente essa sinergia entre texto e ilustrações, em um resultado que resgatasse também as memórias visuais e estéticas ligadas a cada cena diferente”, explica Fabiana na conversa abaixo. Da psicodelia ao tropicalismo, da MPB ao glam, do punk ao pós-punk, da não wave à Vanguarda Paulista: “O Som de São Paulo – 1967/1985” passeia de uma maneira leve e informativa, tal qual um almanaque, por várias São Paulo, umas que conhecemos, outras que ouvimos falar e algumas que nem sabíamos que existiam. Tudo na mesma cidade. Tudo no mesmo livro. Conta mais, Fabiana!

Como surgiu pra você esse desejo de contar a história do Som de São Paulo? E, ainda, como foi fazer esse recorte de 18 anos? O projeto já começou assim?
Sempre gostei de pesquisar e relacionar a influência das cidades, e ambientes, à música. Em meu trabalho jornalístico isso também é uma constante, com matérias sobre cenas musicais ligadas a diferentes cidades e guias de turismo musical como os que fiz em Berlim, Nova York e Providence. E um dos motivos para eu ter morado em diferentes cidades e países. Desde muito cedo eu também costumava curtir imaginar que tipo de cidade influenciaria o surgimento de uma cena rocker ou eletrônica, teria a ver com o cinza e as fábricas? E esse tipo de coisa… Por outro lado, sou muito curiosa sobre os locais relacionados à música, o que me levou a muitas investigações desde a minha adolescência, como a de ter ido inúmeras vezes à Serra da Cantareira assim que aprendi a dirigir para procurar a casa onde os Mutantes moraram em comunidade lá, rs. Sempre me admirei também com a maneira como o tropicalismo se desenvolveu em São Paulo, que fermentou os encontros, os “parceiros do futuro” e o processo criativo do grupo. E ao longo de minhas entrevistas para a imprensa com Tom Zé, também ficava impressionada ao ouvi-lo falar sobre o impacto acachapante de São Paulo em sua vida e arte. A princípio, eu pensei em fazer um livro sobre cenas de pop rock de todo o Brasil, mas fui percebendo que o tema era amplo demais, e que foi justamente em São Paulo, onde eu nasci e cresci, que os gêneros musicais mais relevantes para mim floresceram. A capital paulista foi o epicentro que congregou artistas de todos os cantos que nela encontraram parceiros, ambiente e lugares que geraram combustão para detonarem gêneros tão originais e brilhantes como o tropicalismo ou o que ficou conhecido como “Vanguarda Paulista”, que provavelmente não teria sido possível sem um Lira Paulistana ou as trocas de ideias na FAU-USP. Em outras cenas, como o punk rock, também é interessante pensar que sem o encontro com Antonio Bivar, por exemplo, ou sem uma loja como a Punk Rock Discos na Galeria do Rock ou o “salão” de shows Construção na zona norte, a história talvez tivesse sido diferente. Entendi também que seria muito mais interessante e abrangente dividir o livro por gêneros musicais ao invés de anos, incluindo os locais ligados a cada cena e as suas conexões com o presente, em um formato que eu nunca vi publicado assim. Senti essa lacuna e quis preenchê-la, em uma publicação que também homenageia a cidade e as suas histórias e memórias musicais. E ah, o período de 18 anos levou em conta o rock psicodélico, que acabou se ligando ao pontapé universalista tropicalista – um marco fundamental que, de uma forma ou de outra, acabou influenciando tudo, absolutamente tudo!, o que veio depois na música brasileira, incluindo o pop rock, pela liberdade estética que instaurou. E em quase toda a fase que “O Som de São Paulo” aborda, de 1964 até 1984, o Brasil esteve sob o terrível jugo da ditadura militar, da cassação de liberdades artísticas, da censura. É algo extremamente impressionante e motivo de muito orgulho nacional que essas cenas musicais fenomenais pudessem se desenvolver, apesar disso, e cada qual à sua maneira, inclusive, fosse de forma estética ou direta, contestatória do autoritarismo. Não foi uma motivação consciente essa dos anos musicais ultracriativos apesar da censura, mas o recorte de tempo acabou focando isso também.

O texto dialoga maravilhosamente com as ilustrações. Quando a Talita entrou no projeto? Você já tinha essa imaginação de ter o livro com traços de fanzine?
Que bom ouvir isso, Marcelo! A intenção era justamente essa sinergia entre texto e ilustrações, em um resultado que resgatasse também as memórias visuais e estéticas ligadas a cada cena diferente. E sim, sempre houve a intenção de evocar a estética dos fanzines, inclusive no começo queríamos usar fontes de letras e cores de páginas diferentes em cada capítulo… A minha ideia original era trabalhar com diferentes ilustradores. Mas em 2014, vidrada pelo trabalho de pintura brilhante da Talita, fiz o convite a ela para ilustrar um capítulo. Só que ela se entusiasmou com a ideia do livro e de fazer todas as ilustrações, já saiu criando também a diagramação e o design gráfico das páginas sobre o “glam” tropical. Foi o primeiro capítulo em que trabalhamos, eu já tinha parte da pesquisa por eu ter escrito também um artigo acadêmico no livro sobre paralelos do glam rock “Global Glam and Popular Music: Style and Spectacle from the 1970s to the 2000s”, publicado pela editora britânica Routledge. Então fomos trabalhando juntas, em nosso tempo livre, ao longo dos anos, com muitas conversas sobre referências visuais, estilo… e eu não podia estar mais satisfeita com o resultado desse nosso trabalho no Som de São Paulo.

No grupo de entrevistados há pessoas sensacionais que falam pelos cotovelos, refletem a história com uma agilidade e conexão impressionantes. Como foi a experiência de conversar com essas pessoas ilustres? O que de curiosidades você pode contar?
Foi incrível cada uma das conversas que tive para o livro, mais de 15 entrevistas, uma melhor que a outra! Desde conversar com Edy Star em uma mesa de bar no Copan e presenciar o reencontro esfuziante dele com amigxs na ruinha do prédio, até a sensacional experiência de ter conversado com o Antonio Peticov, o grande conector da cena do rock psicodélico, em seu ateliê, aborrotado de telas atuais e pôsteres dos anos 60 – incluindo o do festival Primavera, o “Woodstock” paulistano que ele quase realizou no Parque do Ibirapuera, não fosse ele ter esquecido completamente que tinha que pedir autorização prévia para as autoridades da ditadura militar da época. Aprendi tanto com ele. E com as histórias da ECA como celeiro de bandas do pós-punk com a Sandra Coutinho, das Mercenárias, com nomes que eram “contranomes” como ela me explicou, como As Gralhas. Ser contaminada pelas gargalhadas do Clemente (Nascimento) em uma tarde de sol na Lapa, enquanto ele me contava detalhes das histórias do passado punk rock. Dei muita risada também quando o Miguel Barella me contou da confissão etílica a ele do Júlio Barroso: quando ouviu o Agentss, o Júlio tomou um porre de whisky para superar a frustração de ter uma banda mais “new wave” que a dele, a Gang 90. E ele até se mudou do Rio pra São Paulo! Olha, são tantas curiosidades e histórias que eu poderia escrever outro livro aqui sobre isso, rs. Então, convido a todos a lerem o livro.

“O Som de São Paulo” ganhou uma edição bilingue, o que é perfeito pensando em algumas das cenas retratadas no livro, que repercutem até hoje no exterior. Foi isso que motivou o lançamento em português e inglês?
Sim, desde o princípio a minha intenção era encontrar um modo de publicar o livro tanto no Brasil como no exterior para mostrar tanto cenas musicais que repercutem até hoje como outras menos conhecidas, mas que sempre geram curiosidade no público estrangeiro. Mostrar que a música brasileira tem um espectro muito mais amplo de gêneros do que a imagem cristalizada do “país” da bossa nova, samba e MPB também motivou isso. Além do que os meus amigos estrangeiros sempre me pediam recomendações de bandas, artistas, canções, por onde começar em cada gênero… então por isso também decidi escrever um livro que serve como uma porta de entrada para cada cena, e de um modo bem visual. A fantástica editora Terreno Estranho nos proporcionou a solução perfeita com a proposta de uma edição bilíngue, acreditando em nosso sonho, materializado lindamente nesta edição, com tradução para o inglês do Fernando Scoczynski Filho.

Qual sua fase favorita dessa história toda de “O Som de São Paulo”? E, paralelamente, houve alguma descoberta pessoal que te empolgou muito durante a feitura do livro, algo que você não conhecia, ou até já tinha ouvido falar, mas mergulhando na história para o livro, te deixou completamente chapada?
Eu gosto demais de todas as fases sonoras abordadas no livro, mas pessoalmente sou muito ligada ao rock psicodélico, aos já citados Mutantes e ao maestro Rogério Duprat, assim como ao pós-punk e às waves sintéticas e não-waves. Inclusive eu criei um pequeno festival e festa, a Néonloop!, ligada à cold wave e pós-punk de diferentes países, quando discotecava músicas do Agentss, Azul 29 e outras bandas brasileiras que desbravaram a música com sintetizadores por aqui. Engraçado que a melhor “não-entrevista” do livro foi com o Kodiac Bachine, do mesmo Agentss do Barella e que hoje atende por Alpa: nosso amigo em comum, o compositor, pianista e também DJ Katz Rochlitz, me contou que o Kodiac foi a uma das edições de minha festa, mas eu não o conheci lá, acho que eu estava discotecando. Acabei sendo apresentada a ele pelo Katz em uma outra festa, e ele é uma personalidade incrível, olhou para mim e adivinhou o meu signo astrológico de cara e nos demos super bem! Combinamos a entrevista, mas como ele não tem celular nem email nem nada do tipo, nunca consegui resposta aos meus inúmeros telefonemas ao número fixo dele. Espero poder encontrá-lo de alguma forma para mostrar o livro, com o Agentss na capa, fica o apelo aqui. 🙂 Sobre outras descobertas musicais, eu diria que mergulhei ainda mais nos tantos álbuns psicodélicos aos quais o Lanny Gordin emprestou a sua genialidade guitarrística tanto como ouvi mais os Baobás, o Beat Boys, a sensacional tríade de álbuns psicodélicos do Ronnie Von, o primeiro álbum do Edy Star… Chapada mesmo eu fiquei com o álbum do Grupo Um lançado pelo selo do Lira Paulistana em parceria com a Continental – impressionantes paisagens sonoras eletroacústicas, que eu não conhecia! Recomendo muito, assim como o álbum solo “Poema da Gota Serena“, do Zé Eduardo Nazário, relançado pelo selo Lugar Alto. Outra banda que me deixou encantada descobrir durante o processo de feitura do livro e que é contemporânea é o Firefriend, que menciono no livro nas conexões com o presente e que tive a alegria de ver shows tanto aqui em São Paulo, em lugares como a Casa do Mancha e o Hotel Bar, como no Urban Spree em Berlim em 2019.

Acho que é legal falar que, apesar de focado n”O Som de São Paulo”, a narrativa abre espaço para citar obras nacionais, principalmente nas listas, certo (como “Paêbiru”, os discos tropicalistas…)
Ah sim, nas listas de conexões com o presente e de locais que proporcionam experimentar essas cenas musicais hoje, eu inclui lojas de discos com bons acervos e raridades, e pensei que seria interessante expandir a geografia das obras e comentá-las. A propósito, tivemos que editar bastante as listas de conexões com o presente devido aos fechamentos e perecimentos durante a pandemia, tanto de festas e bares como especialmente de espaços de shows, como foram os casos muito tristes do Hotel Bar e da Casa do Mancha, entre tantos outros, que deixarão muitas saudades sonoras.

Infelizmente vivemos tempos pandêmicos, mas em tempos normais quais seriam os artistas que poderiam tocar em um show de lançamento do livro? Quem você gostaria de convidar?
Poxa, sim, eu lamento demais não podermos celebrar o lançamento com música, bate-papos, discotecagens – espero que possamos nos reunir assim em breve, que tenhamos segurança sanitária para tanto. No meu line-up ideal e neste momento imaginário, eu faria convite para As Mercenárias, os Agentss ou pelo menos o Miguel Barella revisitando as músicas das tantas bandas incríveis em que tocou, a nova formação do Gang 90, Os Inocentes, Alex Antunes, convidaria o Arrigo Barnabé para tocar o “Clara Crocodilo”… Eu proporia inclusive uma jam entre todos eles para vermos qual é o som de São Paulo de fato, haha, indo bem longe na minha imaginação experimental, já que é só um sonho neste momento. Imagina que barato uns interpretando a música dos outros? Por outro lado, é claro que eu também convidaria bandas e artistas mencionados nas repercussões atuais como Jonnata Doll, Rakta, o citado Firefriend, Radio Droids e muitos dos synth-artistas que costumavam tocar na Néonloop!.

Impossível não pegar carona na deixa da Natália Barros no prefácio: já há uma ideia de uma sequência?
Ideia há sim, e até pesquisa. Mas livros como esse são jornadas bastante delicadas e trabalhosas. Eu e a Talita investimos nosso tempo livre para trabalharmos no Som de São Paulo ao longo dos anos, eu inclusive deixei meu último emprego fixo como editora de música em um serviço de streaming para conseguir finalizar esse volume I. Então, tomara que com a publicação desta edição sensacional da Terreno Estranho a gente possa conseguir bastante repercussão com muitos livros vendidos e recursos para trabalhar em um segundo volume com toda a dedicação que um trabalho assim exige.

– Marcelo Costa (@screamyell) edita o Scream & Yell desde 2000 e assina a Calmantes com Champagne. 

3 thoughts on “Entrevista: Fabiana Caso fala sobre o livro “O Som de São Paulo”

  1. Eu estava lendo a entrevista, e da Maneira como a autora comenta sobre a cidade de SÃO Paulo, já me interessei pelo livro. Posso deduzir com esta entrevista, que o livro é bastante interessante, porque quando ela menciona o som psicodélico, logo me fez voltar a minha juventude, na qual fui submetida, a algumas influência cultural, estou ansiosa para ler este livro.

  2. Livros como esse costumam ser uma delícia de leitura. Vou correr atrás. Quanto à frase que abre o texto do queridissimo Marcelo, eu tb pensava assim na minha juventude, um paraense que olhava a metrópole com olhos gulosos. A experiência de vida me ensinou no entanto, que o buraco é mais embaixo. A São Paulo que enxergo hoje capitaneia golpes, se mostra preconceituosa com nordestinos e nortistas, faz um cinema e séries estilosos, mas na maior parte das vezes oco, clean demais, tem jornalistas influentes que sempre agiram contra a música feita no Brasil (Barcinski e Álvaro Pereira Jr são apenas dois exemplos mais gritantes). Gostaria muito de exaltar São Paulo como os paulistanos gostariam que ela fosse exaltada, mas aí lembro da música do Ira!, penso no Paulo Skaf e volto o olhar novamente para o Nordeste. Vou comprar o livro e me dar de presente de aniversário em dezembro, mas São Paulo para mim hoje representa o atraso de um país branco, masculino e conservador.

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