texto de João Paulo Barreto
Glauber Rocha, o mais importante dos cineastas brasileiros, morreu cedo. Partiu com apenas 42 anos de idade, há 40 anos, em 22 de agosto de 1981. Clinicamente, foi vítima de complicações decorrentes de sérios problemas pulmonares que se agravaram durante sua estadia em Portugal naquele mesmo período. Sua mãe, Dona Lúcia Rocha, porém, tinha uma opinião diferente sobre a causa da morte do rebento. “Meu filho não morreu de doença. Ninguém me convence. Ele não estava doente. Ele morreu de tristeza. Não tenho medo de publicar isso em jornal: meu filho morreu de Brasil”, disse a matriarca em entrevista publicada na Folha de São Paulo há 25 anos, em 1996.
Dona Lúcia faleceu em 2014, aos 94 anos, lutando para manter preservado o legado do filho através do “Tempo Glauber”, espaço que ficava localizado no Rio de Janeiro e onde manteve o acervo do cineasta durante anos. Por falta de suporte financeiro, infelizmente foi fechado em 2017. Os riquíssimos objetos, como cartazes originais e croquis desenhados por Glauber e Rogério Duarte (que assina a arte do pôster de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de 1964), além de xilografias de Carybé e desenhos de Calazans Neto, bem como a biblioteca do cineasta baiano e documentos históricos, foram transferidos para um galpão da Cinemateca Nacional, em São Paulo. O local, como bem sabemos, pegou fogo recentemente. Dona Lúcia não teve o desgosto de ver incendiado parte do acervo que custou a preservar por anos. Nós, no entanto, tivemos. Em resumo: a doença Brasil ainda se alastra, queimando História e futuro, mesmo tantos anos após levar embora o cineasta que dirigiu “Terra em Transe” (1967).
Gênio precoce, Glauber teve uma história intensa e breve. Nascido em Vitória da Conquista em 1939, migrou para Salvador nos anos 1950. Logo no começo de sua vida acadêmica na capital baiana, abandonou o curso de Direito para se dedicar ao Cinema. Após isso, atuou como crítico e jornalista, iniciando sua carreira como diretor aos 20 anos de idade com o curta “O Pátio” (1959), filme com influências do movimento concretista brasileiro, bem como do cinema soviético e do expressionismo alemão. Aos 21 anos, lançou outro marco, “Cruz na Praça” (1960), também um curta-metragem. Em 1962, aos 23 anos, finaliza seu primeiro longa, “Barravento”, filme exibido na Europa e no Festival de Cinema de Nova York. Em 1963, dirige sua primeira obra-prima, “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, que, quando lançado em 1964, o levou a concorrer à Palma de Ouro em Cannes. Não que todas essas nomeações e láureas lhe importassem algo. Glauber estava interessado em um cinema não de premiações e glamour, mas como força de uma expressão política, de reflexão, e que viesse a traduzir um Brasil a fugir de ingerências imperialistas e das forças manipuladoras diante da fé de seu povo. Foi com essa força que “Deus e o Diabo na Terra do Sol” pavimentou a estrada do Cinema Novo.
O conquistense não teve em vida, no entanto, todo o reconhecimento que merecia. No começo da década de 1970, durante os anos de chumbo do autoritarismo da podre ditadura militar, deixou o Brasil, se exilando no Chile e, em seguida, em Cuba. Filma neste período “O Leão de Sete Cabeças” (1970), rodado no Congo, além de “Cabeças Cortadas” (1970), filmado em Barcelona, trabalho que ele mesmo chamou de “continuação metafórica de ‘Terra em Transe’”. Retornou ao país em 1976, quando filmou um documentário sobre Di Cavalcanti utilizando o velório do artista plástico como pano de fundo. Nesse período também iniciou a produção daquele que viria a ser seu último filme, “Idade da Terra”, de 1980. Já com sua saúde frágil, Glauber seguiu para Portugal em 1981 afirmando que aquele seria seu segundo e final exílio, o que confirmava algo que dissera na adolescência, quando chegou a escrever que morreria aos 24 anos, mesma idade da morte de Castro Alves. Viveu mais tempo, alcançando o número inverso, 42, quando foi vitima da causa mortis que dona Lúcia pontuou no seu desabafo pela perda do filho.
Em sua filmografia, os momentos icônicos e simbolismos são diversos. Um deles está na intensidade da tempestade e das marés de “Barravento”, em uma representação da força da natureza a levar aquelas pessoas litorâneas adiante, desafiando os maus tratos da vida, tal qual faz Firmino, personagem de Antonio Pitanga no longa. Na rima certeira com um país que parece fadado a repetir os mesmo erros, um momento de “Terra em Transe” ecoa forte em uma revisita ao filme. É quando Paulo, jornalista e poeta interpretado por Jardel Filho, profere aquela que seria uma das mais marcantes linhas do clássico de Glauber, e que define plenamente o elo entre a fictícia Eldorado de 1967, e o triste e, infelizmente, real Brasil de 2021. Em uma mescla de fúria e desesperança, Paulo brada que “não é mais possível esta festa de medalhas, este feliz aparato de glórias, esta esperança dourada nos planaltos, não é mais possível essa marcha de bandeiras com guerra e Cristo na mesma posição. Ah, assim não é mais possível a ingenuidade da fé, a impotência da fé”.
A fala é proferida pelo homem no momento em que, mesmo quase abatido por policiais, Paulo segue em sua fuga após perceber a fraqueza moral daquele que apoiara como representante, e a entender que seria apenas indo às armas que poderia mudar algo da injustiça social e miséria que assolavam Eldorado. “Não se muda a história com lágrimas”, afirma ao ser lembrado pela companheira e ativista Sara, vivida por Glauce Rocha, do sangue consequente de uma guerra. Cristo e guerra na mesma posição de influência política da Eldorado fictícia se confundem com a perda da razão em nome de dogmas religiosos quando, em tempos atuais, se misturam Estado e crenças pentecostais de forma a manipular opiniões e massacrar minorias. Os resultados parecem se repetir mesmo com mais de meio século do lançamento de “Terra em Transe”.
O filme, que chegou a ser censurado no Brasil por ter sido considerado subversivo e desrespeitoso perante a igreja católica como instituição, teve trajetória marcante em festivais como o de Cannes, no qual Glauber foi agraciado com o troféu Luis Buñuel e com o prêmio da crítica, além de ter sido exibido em Locarno e no festival de Havana. Obra pilar da filmografia mundial, chegou a ser citado por cineastas como Martin Scorsese, que o definiu como algo que nunca tinha visto igual em sua combinação de estilos. O ítalo-americano, além de diretor, é preservacionista e criou a The Film-Foundation, organização dedicada à preservação de diversas obras fílmicas oriundas de várias partes do mundo. “A humanidade e a paixão do filme eram muito poderosas. Eu fui dominado pela interpretação visual e paixão política, especialmente no fim de ‘Terra em Transe’. Junto com ‘Barravento’ e ‘Antonio das Mortes’, são filmes que não saem da minha cabeça e eu gosto de vê-los todo ano ou a cada dois anos”, afirmou Scorsese em entrevista acerca da experiência de se aprofundar na obra glauberiana, na qual se iniciou em uma mostra especial dedicada ao Cinema Novo no Museu de Arte Moderna de Nova York, ainda no final dos anos 1960.
Enquanto isso, no Brasil, tal poder cultural em sua forma física, mesmo com alertas constantes da necessidade de preservação, incendeia-se. Mas trata-se de um poder intenso. Seu detentor e criador foi vítima desse mesmo país que não busca preservá-lo, que deixa as chamas transformar em cinzas sua preciosidade.
Com a mesma tristeza que vitimou seu autor, a obra de Glauber persiste em um Brasil atual e dolorosamente terra em transe.
Texto publicado originalmente no jornal A Tarde, de Salvador (BA)
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual. A foto que abre o texto é de Paula Gaitán.
Só acho curioso que não tenha sido relatado o comentário elogioso de Glauber Rocha a Golbery do Couto e Silva.