entrevista por João Paulo Barreto
Para os não iniciados neste tipo de cinema, existem notórias regras na identificação de um autêntico noir. São filmes geralmente fotografados em preto e branco (há exceções, claro), com ambientes pouco iluminados e de muitas sombras. Reza a lenda que, nos anos 1940, quando começaram a se popularizar, eram filmados assim no intuito de se economizar energia elétrica, pois o orçamento das obras era pequeno. Além disso, têm tramas complexas, por vezes confusas, ou até mesmo incompreensíveis. Há, também, personagens de motivações angustiadas e desesperançados, sendo que a traição é algo bem comum entre eles. Não confiar é um lembrete constante, principalmente nas mulheres lindas e fatais que habitam aquele universo. Juntamente com a narração em primeira pessoa, com voz over, e o protagonista guiando o espectador verbalmente pelo labirinto confuso de suas próprias impressões, os filmes noir tendem a focar em uma ação mais psicológica do que física, deixando de lado sequências de tiroteios ou perseguições.
O professor e crítico de cinema paulistano, Sergio Rizzo, em texto escrito há 20 anos para a saudosa Revista SET, além de citar as regras lembradas acima, pontuou que a definição do filme noir como um gênero cinematográfico é motivo de controvérsia. Ao invés de chamá-lo de um tipo de “gênero” de cinema, “há quem prefira se referir a ele como uma espécie de abordagem que pode ser aplicada aos formatos tradicionais de qualquer gênero, do faroeste à ficção científica”, escreveu o autor. Tal texto surge na memória duas décadas depois de lido ao perceber que é justamente por essa estrada que segue “Caminhos da Memória” (“Reminiscence”, 2021), filme de estreia de Lisa Joy, co-criadora, ao lado de Jonathan Nolan, da excelente série “Westworld”, que mistura ficção científica e faroeste.
De modo semelhante ao seu trabalho como showrunner no seriado de TV (cuja premissa baseia-se no homônimo filme dirigido por Michael Crichton na década de 1970), Lisa Joy leva para seu texto e direção em “Caminhos da Memória” uma proposta parecida, mas, aqui, ao invés do western, é o noir que se faz presente nessa mescla com a ficção científica. O gênero noir (sim, vamos chamá-lo desse modo) surge como ilustração da trama de um cenário futurista e pós-apocalíptico, cujos aspectos visuais são desdobramentos de nossa própria realidade atual, na qual a natureza vem nos concedendo claros alertas das consequências do aquecimento global.
Assim, em um futuro no qual o nível do mar inundou as cidades costeiras e as pessoas se tornaram reféns de um mundo onde apenas os mais abastados têm condições de viver em terras secas, a vida e os indivíduos se tornaram notívagos por conta do calor insuportável durante o dia. Neste ambiente rico de possibilidades para uma trama noir, “Caminhos da Memória” se desenvolve cumprindo de modo satisfatório várias das regras que abrem esse texto.
“Reminiscência” (título original e bem mais adequado à proposta de sua trama) traz Hugh Jackman como Nick Bannister, um veterano de guerra que ganha a vida como investigador mental particular (sim, creia, essa é a sua profissão), cuja aparelhagem tecnológica operada por ele e por sua assistente vivida por Thandiwe Newton concede a seus clientes a possibilidade de revisitar lembranças de maneira quase física, ao permitir que eles adentrem em suas próprias memórias e as revivam de modo real.
Em um futuro de desesperança, o filme traz uma reflexão bem adequada acerca da nostalgia ser um modo de buscar conforto em uma época de aflição e pessimismo, algo que reflete de modo pungente o que se passa no momento com muitas pessoas. É a partir da narração em voz over de Bannister (cujo grave poder vocal de Hugh Jackman torna ainda mais convincente no que se refere a proposta de filme noir trazida por Lisa Joy), que adentramos naquele ambiente de desesperança cuja aridez suplanta a umidade salina daquele futuro tenebroso.
Na trama noir de “Caminhos da Memória”, Mae (Rebecca Ferguson) , a bela por quem Nick se apaixona, é uma das suas cliente que o procura sob o simples pretexto de localizar em suas memórias recentes um molho de chaves (e que, claro, se demonstrará bem mais do que isso no quesito desconfiança – vide a lista que abre esse texto). Neste ponto, um destaque para a forma como a diretora Lisa Joy, junto ao montador Mark Yoshikawa (conhecido por seu trabalho com o cineasta Terrence Malick), utilizam de maneira engenhosa o fluxo das lembranças de seus personagens de modo a mesclá-las à própria estrutura narrativa do seu filme.
Deste modo, somos apresentados gradativamente à trama em seu desenvolvimento natural, sendo que uma quebra nos levará a um patamar inicial dentro dessa mesma estrutura. Assim, a história que evolui a partir de flashbacks, cresce em um encontro entre o tempo narrativo real e o já vivido no passado pelos habitantes daquele mundo, algo que torna a visão das memórias transformadas em imagens pela tecnologia de Bannister um artifício quase metalinguístico em “Caminhos da Memória”. Quando um dos personagens adentra fisicamente no cenário de uma das lembranças plantadas propositalmente por outro, tal momento é algo que o espectador atento àquelas possibilidades observa com regozijo justamente por perceber o poder daquele jogo proposto por Lisa Joy.
Nada mal para um trabalho de estreia.
Texto publicado originalmente no jornal A Tarde, de Salvador (BA)
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.
quero assistir.
pena que foi total fracasso nos eua, no final de semana de estreia levou pouquissimo público, a warner fez quase nada de divulgação e parece que os que estão arriscando ir ao cinema estão dando prioridade a filmes leves (free guy, velozes e furiosos, jungle cruise) e que não estão imediatamente em streaming.
Também está na minha lista pessoal, Shadai
Mac
Ruim com força. Até agora sem entender como um filme desse veio parar em um site como o scream & yell