por Marcelo Costa
Os anos 80 foram uma década repleta de aberturas, em quase todas as frentes, no Brasil. Um período absolutamente único, nascido de uma resposta social (não planejada, praticamente expelida a fórceps) a uma fase nefasta da história nacional, a da ditadura militar. Na área da música, tomando o lugar de uma MPB que, de tanto levar na cabeça nos anos 60/70 por enfrentar o regime, tornara-se (com a perseguição, o exilio e o retorno de alguns de seus principais heróis) acomodada, surgia o rock nacional, disposto a aproveitar as brechas das rachaduras no concreto ditatorial para gritar: somos o futuro da nação.
Se por um lado tínhamos uma juventude disposta a aproveitar toda oportunidade possível de uma sociedade novamente livre, por outro havia uma indústria musical mundial vivendo seu auge, um milésimo de segundos antes do início da decadência – ainda que ninguém vislumbrasse isso (algo que seria assunto para a década seguinte e, principalmente, a posterior). A combinação desses dois fatores (uma juventude disposta a tomar o seu lugar na sociedade e uma indústria cultural pujante) resultou em uma cena musical fervorosa, e com discos vendendo como água no deserto, os limites foram estendidos, e absolutamente tudo poderia ser aposta.
Apenas nesse cenário extremamente particular que um disco como “Papapaparty” (1987), a seminal estreia da banda gaúcha DeFalla em uma multinacional, a estadunidense RCA (Radio Corporation of America), através do selo local Plug, pode ter visto a luz do dia. Não que o debute desta cult band não tenha qualidades (pelo contrário, é praticamente uma obra prima daqueles anos inocentes), mas por sua radicalidade, um álbum que avança em estilos, sonoridades, temas, produção e interpretação como poucos ousaram no período. Não à toa, enquanto discos cânones da Legião Urbana, Titãs e RPM (três bandas que venderam muito na época) ficaram com o som datado, vitimados por uma produção marcadamente e tecnologicamente oitentista, “Papapaparty” soa fresco, atemporal, ainda hoje.
Esse é um dos motivos para que dois professores (não gaúchos) da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) se debruçassem sobre a obra para lançar luz sobre um dos grandes discos da história do rock brasileiro, que não vendeu nem um décimo de “Rádio Pirata Ao Vivo”, “Dois” ou “Cabeça Dinossauro”, mas é tão ou mais brilhante que eles (e muitos outros). “Sem Nenhuma Direção – Defalla, 1987”, do antropólogo catarinense Emerson Giumbelli (Emerson G) e do psicólogo mineiro Frederico Machado (Fred M), lançamento da Badejo Editorial, não só mergulha na produção do álbum como também constrói um painel – social, cultural, político – do período, buscando nos detalhes tudo que fez com que “Papapaparty” soasse como soa.
A pesquisa imperdível trafega pelos projetos vários que antecederam a formação clássica do DeFalla que gravou o álbum, muitos deles desconhecidos fora do Rio Grande do Sul – o que torna o livro ainda mais obrigatório para se entender a incrível cena cultural do bairro do Bom Fim, os lançamentos do período e, claro, o próprio DeFalla. Pesquisando fitas demo, entrevistas da época, resenhas, vídeos de apresentações, gravações em pau de sebo, e muito mais, Emerson e Fred conseguem mostrar como cada uma das principais canções da banda foram se modificando até serem oficializadas no álbum de 1987.
A dupla ainda fez várias entrevistas com os quatro integrantes e, ainda, Paulo Seben (letrista em três músicas), Antônio Meira (empresário da banda) e Carlo Pianta (baixista na formação original da banda, entre 1985 e 86, que retornou ao grupo para gravar “Monstro”, de 2016) – uma pena o genial Carlos Eduardo Miranda não estar entre nós para dar seus depoimentos ao livro. Seguindo o padrão da série “33+1⁄3”, da editora Bloomsbury (editada no Brasil como “O Livro do Disco”, pela Editora Cobogó), “Sem Nenhuma Direção – Defalla, 1987” cumpre com louvor a tarefa árdua de contar a história de uma das pérolas raras do rock brasileiro nos anos 80.
A formação clássica, do disco, conta com Edu K (voz, guitarra, piano, orgão, scratches, human beatbox, extintor e efeitos), Castor Daunt (guitarras, piano, bateria, backing vocals e efeitos), Flávio “Flu” Santos (baixo, Moog, piano e efeitos) e Biba Meira (bateria, Moog, efeitos), assistidos pelo produtor Reinaldo Barriga Brito (que nesse mesmo ano produziu os discos do Violeta de Outono, Engenheiros do Hawaii, Replicantes e Nenhum de Nós – com hits nacionais como “Infinita Highway” e “Camila, Camila”, entre outros, no currículo). Hoje em dia, quase 35 anos depois, com a mudança constante de formações, participação de integrante em reality show, e toda estrada, talvez seja fácil identificar a persona de cada um na banda, mas em 1987 era tudo puro delírio.
Se a segunda metade dos anos 70 foi marcada por um MPB silenciada, os anos 80 foram mais viscerais com bandas bradando “que país é esse?”, mandando oncinhas pintadas se foderem e contando sobre veraneios com assassinos (PMs) armados, mas mesmo eles pareciam comportados demais perto do DeFalla, que tinha uma baterista diminuta que comandava um dos sets mais ensandecidos do período, com viradas constantes, um guitarrista que tocava todo engessado e um vocalista insano, crossdresser e no limite da autodestruição* rasgando-se em canções de antiamor, e em algumas delas dando voz a personagens femininos (*ao ler o texto publicado neste site sobre um show da nova versão do Defalla em 2016, Edu K comentou: “Me mijei de rir quando você captou a minha inadequação em ser menos Iggy e mais Bowie”).
Ainda que o título do livro possa passar a ideia de uma banda que não sabia o que estava fazendo (ou para onde estava indo), “Sem Nenhuma Direção – Defalla, 1987” demonstra como eles foram amadurecendo as canções e a própria estética visual e teatral do grupo, algo que seria levado ao extremo nos álbuns e formações posteriores. A parte musical e textual é bastante destrinchada na narrativa, mas a figura de Reinaldo Barriga Brito merecia maior destaque (incluindo espaço para entrevista), já que ele praticamente não trabalhou como produtor no álbum, mas sim como facilitador, a pessoa que tentava tornar reais as maluquices musicais que o grupo buscava construir nos arranjos dentro de estúdio – há vários exemplos no livro.
Lançado em vinil e fita K7 (raros hoje em dia) em 1987 e editado (incompleto) em CD em 1996 (junto ao segundo álbum do grupo, “It’s Fuckin’ Borin’ to Death”, de 1988, na série “Raridades Plug” – outras faixas do álbum apareceram na coletânea “Hot 20”, de 1999), “Papapaparty” apareceu nos streamings em 2019 (junto com o ótimo – e mais certinho – segundo disco do grupo), facilitando seu acesso. Absolutamente clássico, eis um disco que serviu de inspiração para bandas locais e “estrangeiras” como Planet Hemp, Chico Science & Nação Zumbi e Mundo Livre S/A, entre outras. E agora ganha aprofundamento com um livro excelente, e seu hot site repleto de curiosidades. Que bom que o tempo alcançou, finalmente, uma banda que sempre esteve à frente. Que outras gerações descubram um dos discos mais sensacionais da música brasileira.
– Marcelo Costa (@screamyell) edita o Scream & Yell desde 2000 e assina a Calmantes com Champagne.
Sou um dos autores do livro. Super lisonjeado com a resenha do Marcelo! Mais um ponto na rede para manter ativa a escuta desse disco fenomenal e intempestivo. Salve DeFalla! Quanto ao Barriga, produtor do Papaparty, nós procuramos por ele, mandamos mensagens, insistimos, mas ficamos sem retorno. Realmente, é uma lacuna. Fica a sugestão de se tentar cavar uma entrevista com o cara que foi fundamental para o jeito com que saíram discos antológicos nos 80s.
Faço minhas as palavras do Emerson. Resenha que expande a leitura do livro e a apreensão da importância da Defalla e do Papaparty.