Texto por João Paulo Barreto
Patrono da abolição da escravidão no Brasil, o advogado Luiz Gama não viveu para ver a tal Lei Áurea ser promulgada. Morreu aos 52 anos, em 1882, seis anos antes que uma princesa branca assinasse a carta que confirmaria o Brasil como sendo um dos últimos países a tornar ilegal o tráfico de pessoas negras. Gama, porém, percebeu desde muito cedo o engodo que aquilo pareceria quando, finalmente, chegasse o tal momento no qual os escravos se confirmariam como excluídos social e economicamente mesmo após não mais possuírem donos.
Autodidata no estudo das leis, o baiano Luiz Gonzaga Pinto da Gama foi vendido aos 10 anos pelo pai, um fidalgo português, no intuito de sanar dívidas que possuía. Sua mãe, Luiza Mahin (Isabél Zuaa), uma escrava liberta, perdera, assim, seu filho. Levado da Bahia para São Paulo, Gama foi alfabetizado aos 17 anos. Depois, se tornou assistente de Furtado Mendonça, que atuava como chefe de polícia e professor da Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Estudioso, Gama viria a se destacar como o bacharel responsável pela libertação, nos tribunais, de mais de 500 escravizados.
“Doutor Gama” (2021), filme de Jeferson De (diretor do marcante “Bróder”, de 2010), conta essa história a partir das três fases da vida do advogado: sua traumática infância (vivida pelo ator mirim Pedro Guilherme) com a separação precoce do afeto da mãe e traição do pai; a adolescência descobridora e definidora de uma trajetória de vida (na qual é vivido por Angelo Fernandes); e a fase adulta (com a interpretação de César Mello), já legislando em prol da libertação de pessoas escravizadas. É com o foco nessa fase que o filme mais se destaca, trazendo um drama de tribunal no qual Gama defende José (Sidney Santiago), um escravo acusado de matar seu senhor. O branco em questão torturava e estuprava a esposa do réu. Priorizando a vida da mulher, José vinga-se do homem por tais monstruosidades cometidas.
Na sua estrutura dividida em três fases, cada uma focada em um período da vida de Luiz Gama, o filme de Jeferson De encontra ecos em uma obra favorita na cinefilia do diretor e que, também, traz reflexões precisas no que se refere à identidade de cada pessoa e em como sua trajetória de vida pesará em sua existência. “Lembro que a gente estava discutindo essa questão de divisão do roteiro e Cris (Arenas, produtora) veio com um argumento para mim que era quase um golpe baixo”, brinca Jeferson entre sorrisos. “Ela lembrou do ‘Moonlight’, que é o filme da minha vida. Um filme que, também, é dividido em três trechos. Virou uma grande referência”, explica o diretor que, também, é responsável pela montagem do trabalho.
Outro símbolo marcante presente em “Doutor Gama” está na citada questão da criança sendo vendida como mercadoria pelo próprio pai, ponto que surge de modo a traumatizar o personagem, e gera, no já advogado Luiz Gama, uma especial relação afetiva com o seu próprio filho. A perda brusca de sua infância; o crescimento como escravo; a alfabetização e o gosto pleno pela leitura e estudo das leis; o momento em que prova ter nascido livre e, ao deixar a casa onde serviu a brancos, recebe um par de sapatos.
A sucessão de acontecimentos dentro da vida de Gama serve como uma construção de sua estatura. O simbolismo presente no ato de receber aquele par de sapatos no momento em que percebe-se livre reverbera. Jeferson De contextualiza de forma exata: “A criança negra vendida pelo próprio pai. Isso era algo que precisava estar no filme e que era algo que marcaria a vida dele inteira. É o que faz dele esse advogado que o César (Mello) nos trouxe brilhantemente. Essa conquista da liberdade toda potencializada no sapato. O sapato para o homem negro lá atrás e o sapato para o homem negro hoje em dia. Não é à toa que a juventude negra ama tênis. Isso tem raízes profundas na nossa história”, pontua o cineasta.
Jeferson De relembra que teve acesso à primeira versão do roteiro, escrito por Luiz Antonio, há sete anos. “Foi em 2014 que o li. À medida que fui lendo, logo me chamou a atenção a trajetória desse homem. Eu pensei comigo: ‘essa é a história que eu gostaria de contar.’ Era a trajetória de um homem com uma história muito parecida com a de um herói. Logo veio na minha cabeça essa questão: ‘ninguém no cinema brasileiro tinha feito um filme sobre ele?’ Tantos filmes sobre Tiradentes, até filmes sobre Independência ou Morte. E sobre Luiz Gama ninguém tinha se debruçado”, pontua Jeferson.
“Doutor Gama” chega aos cinemas brasileiros justamente quando a figura do advogado abolicionista está mais em evidência, após a USP conceder-lhe o título de Doutor Honoris Causa. A exemplo do que frisou o cineasta Jeferson De acerca da ausência de um maior destaque dado pela sétima arte à história de Luiz Gama, essa reflexão sobre o apagamento da sua trajetória também alcança níveis profundos de análise na sociedade brasileira como um todo.
Quando queimar estátuas gigantes de assassinos, estupradores e traficantes de escravos como Borba Gato gera toda uma comoção em elitistas e hipócritas, é inevitável não refletir sobre como a figura humanista de Gama, que possui um único busto em São Paulo, e nomeia uma rua no bairro da Capelinha, em Salvador, é desvalorizada e desconhecida por boa parte dos brasileiros. Nesse novo destaque midiático que o jurista recebe, já é notória a falta de caráter de políticos de uma direita cínica na tentativa de cooptar sua trajetória dentro de um falso viés da meritocracia, vendendo a imagem de Gama como a de um liberal, quando a História comprova sua atuação como defensor dos direitos humanos e contra o racismo estrutural. Fica o alerta para que a mensagem humanista de luta contra o racismo estrutural se multiplique nesse pessimista Brasil de um distópico século XXI.
Texto publicado originalmente no jornal A Tarde, de Salvador (BA)
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.
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