Texto por João Paulo Barreto
“Não deixe esse momento passar despercebido”, diz Prisca (Vicky Krieps) para seu filho de seis anos quando este reclama da demora de sua permanência na van do aeroporto, no trajeto ao resort de luxo no qual se hospedará com sua família. A mãe orienta o garotinho de seis anos a observar pela janela e ver a exuberância daquele lugar paradisíaco, mas, logo, ela mesma deixa para trás aqueles tenros minutos no qual ouviu sua tímida filha de onze anos cantar desinibida, para só parar ao notar que a mãe a escutava com atenção. Prisca volta seu foco para algo relacionado ao trabalho aprisionador, que não somente a ela, mas a todos priva de observar o mundo e a vida se descortinar. Quando percebemos aquele tempo perdido, claro, já será tarde demais.
“Tempo” (nome mais sutil que o seco “Old”, no original inglês), novo filme de M. Night Shyamalan, tem seu roteiro baseado no quadrinho “Sandcastle”, de Pierre-Oscar Lévy e Frederick Peeters. O título da obra literária, aliás, condiz bem com a proposta trazida pelo diretor. Na praia onde todos envelhecem rapidamente, a fugacidade da vida é a mesma de um frágil castelo de areia sendo levado pela maré alta. Diante de uma premissa simples, no entanto, o roteirista aproveita-se de belas oportunidades para inserir mais do que apenas a ameaça constante daquele paradisíaco lugar. As metáforas visuais e temáticas estão presentes em momentos que passam rápidos pela tela, mas capturam a atenção. Sejam nos mais óbvios como a fala que abre esse texto, ou nos planos que Trent, a criança em questão, faz de permanecer eternamente amigo do garotinho nativo que conhece no hotel, é na proposta de avaliar o tempo como sendo esses grãos de areia que se perdem entre dedos das mãos que reside a premissa que Shyamalan quer nos trazer aqui.
Naquela praia, o tempo acelerado é representado não somente pelas rápidas (e, às vezes, propositalmente grotescas) mudanças físicas em seus personagens. A passagem da infância surge de modo a fazer o público notar como a fugacidade da vida existe, também, no transcorrer normal dos segundos, minutos, horas, dias e anos. A dupla de irmãos correndo na praia enquanto brincam, quando a câmera os acompanha em um vai-e-vem incomum a desenhar exatamente essa impressão; os medos e ansiedade advindos de tais jogos pueris (aqui, representado de maneira grotesca com uma criança sendo apresentada ao conceito da morte); os já citados planos ingênuos para o futuro; as descobertas hormonais que guiam seres instintivamente e as promessas de eternas amizades que não se concretizaram. Vários são os elementos que o diretor do clássico “O Sexto Sentido” (1999, e também “A Vila“, “Sinais“, “Corpo Fechado” e “Fragmentado“, entre outros) traz em sua narrativa para nos fazer perceber como “Tempo” é não somente uma alegoria brutal àquela contagem regressiva para a inevitável morte, mas uma reflexão sobre essa passagem.
Claro que, tratando-se de um cinema de gênero, lá estarão os elementos fantásticos para ilustrar aquela assustadora narrativa. O efeito do ambiente causando a seus personagens o envelhecimento precoce é o mesmo que os mantêm fisicamente invulneráveis aos ferimentos superficiais que venham a sofrer, com a cura para estes acontecendo instantaneamente (mas com as feridas abertas em suas mentes). Assim, a correnteza que leva aquelas pessoas a gradativamente irem perdendo suas sanidades seja pelo acelerar físico do tempo em seus corpos ou pelo modo como suas consciências tentam sem sucesso compreender o que está acontecendo, serve como cenário para Shyamalan exercitar sua veia de um cinema horripilante, como aquela na qual vemos uma personagem precisar sofrer uma intervenção cirúrgica de emergência ou como quando uma outra, que sofre de problemas ósseos, demonstra que a cura instantânea para suas fraturas podem significar monstruosas, irreversíveis e fatais deformações.
Do mesmo modo que a vida se choca contra a realidade quando qualquer ideia de fantasia desacelera-se em nossas fugas mentais, “Tempo” também possui tal quebra de expectativa em seu desfecho, trazendo para um patamar científico sua premissa fantasiosa e levando a discussões mais abrangentes dentro de um conceito da ética. Acaba por demonstrar-se um filme cujo apelo abraça propostas palpáveis e reais dentro do território do fantástico. No entanto, até chegarmos àquele desfecho, quando o choque do pragmático nos atinge, o fantástico já nos guiou por reflexões duramente reais sobre como aquele acelerar do tempo em tal praia fantasiosa é o mesmo cuja velocidade nos guia inadvertidamente do lado de cá da tela (e das pequenas telas que nos levam no dia-a-dia), fazendo-nos perder capacidades de ouvir, relacionar-nos e de compreender e valorizar essa existência.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.
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