por Marcelo Costa
Está na Wikipedia: “As primeiras concepções a respeito da justiça surgiram na Grécia Antiga, onde se utilizava a expressão Dikaiosyne (Δικαιοσύνη) para representar a personificação de uma integridade moral relacionada ao Estado e aos governos”. Conforme crescemos, somos levados a acreditar que a Justiça existe para corrigir alguns desvios da sociedade sem nos atentar que quem analisa esses desvios são seres humanos, pessoas como eu e você, com vícios, dogmas e capacidade tanto para errar quanto acertar. Por isso, a Justiça pode também ser usada como um meio para intimidar, cercear e mesmo matar outra pessoa. Não é porque fulano é um presidente, um militar, um juiz, um policial que ele age com correção… muitas vezes pode ser exatamente o contrário. No Oscar de 2021, três filmes contaram histórias de como a Justiça (nos EUA) foi usada de maneira criminosa e nada justa.
“The United States vs. Billie Holiday”, de Lee Daniels (2021)
Uma das maiores cantoras da história, Billie Holiday foi perseguida pela Justiça praticamente toda sua carreira. O motivo principal era a influência que a artista exercia sobre a comunidade negra, principalmente por insistir em cantar “Strange Fruit” (já leu o livro?), um hino antirracista sobre direitos humanos que fala sobre linchamento de afro-americanos (em 1937, um projeto de lei anti-linchamento não foi aprovado pelo Senado dos Estados Unidos). Baseado no livro “Chasing the Scream: The First and Last Days of the War on Drugs” (2015), de Johann Hari, “The United States vs. Billie Holiday” não só narra a perseguição que Billie Holiday sofreu do FBI e de altos setores da Justiça estadunidense (incluindo “plantar” drogas para incriminar a cantora) como culpa o Estado por sua morte prematura (em 1959 aos 44 anos), defendendo que seus algozes ajudaram a afundar a artista em um cenário de vício em drogas e alcoolismo, utilizando sua dependência química como maneira de pressiona-la a não cantar a canção proibida – chegando a coloca-la na prisão e obrigando-a a cancelar shows (mesmo quando já estava internada bastante debilitada no hospital, Billie seguia acompanhada por um policial em seu quarto). O filme do cineasta Lee Daniels (disponível na Amazon Prime), infelizmente, é enfadonho e pouco inspirado. Poderia ter passado completamente despercebido não fosse a atuação consagradora de Andra Day (como Billie Holiday), indicada ao Oscar de Melhor Atriz, que salva a trágica história da mesmice do roteiro. A atriz compensa a mão pesada da direção, as piadas desnecessárias e a limpeza da fotografia, e merece uma olhadela com atenção nem que seja para louvar uma grande artista que ousou enfrentar o alto escalão da (falsa) Justiça dos Estados Unidos, e pagou caro por isso. Os criminosos, no entanto, eram eles. Veja o filme, leia o livro sobre “Strange Fruit” e ouça Billie Holiday. Sua luta permanece (os criminosos do Estado, seja nos EUA, seja no Brasil, também).
Nota: 6
“Os 7 de Chicago”, de Aaron Sorkin (2021)
Tudo que Aaron Sorkin toca chega ao Oscar (o que, vá lá, quer dizer mais sobre fórmula do que sobre qualidade). São dele os roteiros de “Questão de Honra” (1992), “Jogos de Poder” (2007), “A Rede Social” (2010, que lhe uma estatueta dourada), “Moneyball” (2011), “Steve Jobs” (2015), “A Grande Jogada” (2017) e “Os 7 de Chicago” (2020), sendo que nos dois últimos ele também assume a direção. Ele parece ter apreço por histórias que flagram falhas morais na Matrix, e com “Chicago Seven” (disponível na Netflix) não é diferente: a história é baseada no caso real do julgamento dos sete de Chicago, um grupo de ativistas acusado pelo governo estadunidense de conspiração e incitação a revolta nos protestos durante a Convenção Nacional Democrata de 1968, em Chicago. Os protestos foram severamente reprimidos pela polícia, que desceu o cacete nos manifestantes e abusou do uso de gás lacrimogênio. Dezenas de pessoas foram presas e muitos jornalistas e fotógrafos foram agredidos e tiveram seus equipamentos destruídos. O Estado levou ao tribunal sete ativistas, e o processo foi marcado por dezenas de atos de abuso de poder do Juiz Julius Hoffman (interpretado por Frank Langella, irrepreensível), incluindo amordaçar um Pantera Negra por três dias no tribunal (ele não chegou a ser acorrentado na cadeira, como exagera o filme em um dos vários momentos em que o que se vê na tela não bate com a realidade). O filme mostra os bastidores do julgamento, que incluem policiais infiltrados na manifestação visando causar caos para culpar os líderes do movimento tanto quanto a alta cúpula da Justiça estadunidense criando factoides de maneira criminosa para tentar tirar de cena os ativistas. Sorkin mergulha o espectador na sordidez dos criminosos representantes da Justiça, e ainda que o drama político escorregue demais para a comédia pastelão (ok, a cena dos ativistas vestidos de toga no tribunal é real assim como a farda policial por baixo), “Os 7 de Chicago” é um filme que merece ser visto (ainda que as seis indicações ao Oscar soem exageradas).
Nota: 7
“Judas e o Messias Negro”, de Shaka King (2020)
Se nos dois filmes acima integrantes da Justiça dos Estados Unidos (policiais, juízes, procurador geral do presidente da república, agentes e chefões do FBI, entre outros criminosos da lei) podem ser acusados de plantar provas, perseguir pessoas inocentes, de abuso de poder, racismo, fascismo, conspiração e até homicídio culposo (entre diversos outros crimes), em “Judas and the Black Messiah” esses profissionais do Estado são expostos, entre outros coisas, como responsáveis direto por um assassinato premeditado (no rol de criminosos inclui-se aí um dos mais famosos e tenebrosos chefes do FBI, J. Edgar Hoover, o que não surpreende ninguém que conhece a fama do cara – no filme ele é interpretado por Martin Sheen). A trama real conta a história de William O’Neal (Lakeith Stanfield), um golpista que é descoberto tentando se passar por agente do FBI, e que, após ser pego pela polícia, para não ir pra cadeia topa o acordo de se infiltrar no grupo de Chicago dos Panteras Negras para acompanhar (e relatar detalhadamente) os passos do jovem ascendente ativista Fred Hampton (Daniel Kaluuya, de “Corra!”, que também conta com Lakeith). Judas… Messias… já deu para juntar as peças, certo? Isso, no entanto, não diminui o impacto de uma obra que é exemplar em mostrar a falta de escrúpulos de policiais e integrantes do FBI, dispostos a qualquer coisa para calar um homem. Infiltrado nos Panteras Negras, O’Neal conquista a confiança de Hampton e. pressionado por um agente do FBI, Roy Mitchell (Jesse Plemons, de “Breaking Bad” e “O Irlandês”, entre outros), que exemplifica a perfeição a banalidade do mal, vai até as últimas consequências, e o resultado, trágico, é (um grande filme com seis indicações ao Oscar e) uma ferida constantemente aberta não apenas na alma da sociedade norte-americana (em tempos de #VidasNegrasImportam), mas também na brasileira, que reprisa aqui (com elevados requintes de crueldade) muitos dos crimes cometidos lá. Infelizmente, não é possível acreditar na Justiça (principalmente se você for negro).
Nota: 9
– Marcelo Costa (@screamyell) edita o Scream & Yell desde 2000 e assina a Calmantes com Champagne