por Renan Guerra
Passaram-se cinco anos desde “Canção e Silêncio” (2015), segundo álbum de Zé Manoel que o projetou para vários cantos do Brasil, até o lançamento de “Do Meu Coração Nu” (2020), e nesse meio tempo muitas coisas mudaram no universo do artista pernambucano. Grandes intérpretes cantaram suas composições no songbook “Delírio de um Romance a Céu Aberto” (2016), Zé participou de discos de nomes grandes como Fafá de Belém e Adriana Calcanhotto e trabalhou um bocado em diferentes frentes. O saldo final é que Zé Manoel mudou e suas canções refletem isso: “Do Meu Coração Nu” é disco forte, pungente e intenso, do jeito que 2020 pede.
Em entrevista aqui no Scream & Yell no primeiro semestre, Zé falava que “não conseguiria fazer um disco agora falando sobre o amor e a flor, porque não faz sentido pra mim falar amenidades nesse momento em que a gente é atacado por todos os lados e a gente precisa sobreviver, e ao mesmo tempo ressignificar a nossa resistência”. É sobre ancestralidade e urgência que se constrói “Do Meu Coração Nu”. Violência policial contra os corpos pretos; a história do povo negro brasileiro e a construção da música brasileira em torno de sonoridades afro: todos esses caminhos são cantados em um disco complexo, que mais uma vez prova a força de Zé Manoel como compositor e cantor.
Lançado no Brasil pelo selo Jóia Moderna, de DJ Zé Pedro, e no Japão pela Core PORT, “Do Meu Coração Nu” tem produção do músico, compositor e produtor musical baiano Luisão Pereira. No disco há participações de Luedji Luna, Bell Puã, Gabriela Riley, Grupo Bongar e Letieres Leite, além de um sample da intelectual e pesquisadora Maria Beatriz do Nascimento, em fala retirada do documentário “Negro, Da Senzala ao Soul”, reportagem de Gabriel Priolli Netto e Armando Figueiredo Neto (1977) para a TV Cultura São Paulo. Vale ressaltar a direção artística de Gil Alves no trabalho, que dá uma nova cara a Zé Manoel, criando uma estética forte e marcante para o disco. Exemplo disso é o lindo clipe de “Adupé Obaluaê”, estrelado pelo próprio Gil.
Esses muitos nomes trazem um dos elos do disco: a coletividade e a troca. Zé Manoel faz questão de trocar com os seus pares geracionais na mesma medida em que celebra e reverencia aqueles que vieram antes. É bonito demais o respeito e o cuidado que Zé tem com a canção, com a música e com sua história. É nesse sentido que é simbolicamente muito forte ele reconstruir essas histórias, tanto que ele diz em “Notre Histoire” (parceria com o francês Stephane San Juan): “precisamos saber nossa história / precisamos contar nossa história”.
Zé Manoel fala sobre a construção dessas nossas noções de Brasil por uma perspectiva negra e é como se ele virasse as lentes para aqueles que sempre foram os figurantes dessa história. “Do Meu Coração Nu” é como uma viagem que se abre dolorosa na magnífica “História Antiga” e que vai crescendo, passando por carinhos como “No Rio das Lembranças”. Depois entramos em ondas românticas, com toda a potencialidade do amor preto nas belas “Não Negue Ternura”, ao lado de Luedji Luna, e “Pra Iluminar o Rolê”. Mais pras bandas do final somos emaranhados em uma gira com “Canto pra Subir”, as falas de Letieres em “Escuta Letieres Leite” e encerramos na suntuosidade de “Adupé Obaluaê”.
Nesse caminho, os encontros são belos. Vale destacar, por exemplo, “Wake My Divine”, ao lado da cantora e compositora norte americana Gabriela Riley, em ode às canções de amor americanas da década de 1970, com belíssima flauta tocada pelo maestro Letieres Leite. Além disso, nos créditos é possível encontrar os nomes de músicos como Kassin, Sérgio Reze, Tedy Santana, Jorge Continentino, Stephane San Juan, Alberto Continentino, isto é, daqueles discos pra se ouvir com o encarte ao lado, pra ir descobrindo cada detalhe.
“Do Meu Coração Nu” é uma viagem divina pela qual nos leva Zé Manoel. Falar desse disco é correr o risco de cair em rasgação de seda desmedida, pois é muito forte o que o músico conseguiu fazer aqui. Eis um disco grandioso por conseguir falar das violências atuais e históricas para com o povo preto, mas é ainda mais potente quando fala de afetos, de carinhos e de cuidados. Não podemos esquecer que Zé é, essencialmente, um cantor desavergonhadamente romântico e essa sua paixão é que cativa, que nos envolve e que deve ser repetidamente celebrada.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Também colabora com o Monkeybuzz.