entrevista por João Paulo Barreto
A importância e impacto existentes no lançamento de “Marighella” (2020), longa metragem dirigido por Wagner Moura, justamente na semana do Dia da Consciência Negra traz um peso e ainda maior relevância histórica para o trabalho. E o lançamento aconteceu em Salvador, a cidade mais negra da América Latina, terra natal do próprio deputado e escritor Carlos Marighella. A capital baiana recebeu a primeira sessão em circuito comercial de um filme cuja urgência se faz necessária pelo tenebroso momento de negacionismo proposital e manipulador da ditadura e do golpe militar de 1964, bem como diante de uma tentativa oportunista e canalha de se reescrever os fatos históricos, banalizando todos os crimes e monstruosidades cometidas pelos militares no período.
Moura, em sua estreia como diretor de longas metragens, adapta a densa biografia escrita por Mário Magalhães em uma obra que coloca sua audiência quase que fisicamente dentro do mesmo turbilhão que os últimos anos de vida de Marighella representaram. Junto ao seu diretor de Fotografia, Adrian Teijido, no processo de dramatização fílmica da história do autor de “Minimanual do Guerrilheiro Urbano”, de “Chamamento ao Povo Brasileiro” (organizado após seu assassinato) e fundador da Ação Libertadora Nacional, grupo revolucionário que lutou contra a homicida ditadura no Brasil, Wagner Moura equilibra cenas frenéticas em planos sequência que nos colocam dentro da ação com momentos tenros, em uma simbólica ideia de calmaria que precede a tempestade na vida de seu protagonista. Na calmaria, vemos Marighella (Seu Jorge, em um peso expressivo para o papel) brincar com seu filho no mar do Rio de Janeiro, e equilibrá-lo na suavidade da superfície da água. Lá fora, tanques de guerra esmagam tanto asfalto quanto a liberdade. Moura tem plena consciência do que monta naqueles paralelos e o que pretende nos fazer refletir com eles.
“Hoje há gente discutindo se a ditadura foi mesmo ruim, se a tortura é aceitável e se a terra é mesmo redonda. Isso era impensável há cinco ou seis anos. Aprendi que não se pode menosprezar a capacidade de piadas e absurdos se alastrarem até ganharem status de verdades. Mentira e desinformação precisam ser levadas a sério e combatidas pedagogicamente, não se pode mais rir de sandices como a mamadeira de piroca”, alerta Wagner em relação ao estado de mentiras, negacionismo e manipulação midiática que vivemos em 2020, algo que tem ecos desde o golpe parlamentar de 2016 e a eleição de 2018. “É preciso levar a sério e reagir imediatamente. O manejo escroto das redes sociais polarizou o mundo e relativizou a verdade. E, claro, a aversão de tipos como Trump e Bolsonaro à cultura, à ciência, ao pensamento crítico, à regulação das redes e à liberdade de imprensa favorecem um projeto de dominação que se beneficia da ignorância”, complementa.
Sobre a dificuldade de se adaptar uma obra tão densa quanto o livro de Mário Magalhães, Moura explica que, para ele, o roteiro é a parte mais difícil do cinema. “Nós estávamos lidando com a história de vida de muitas pessoas e com um período conturbado do país. Eu e Felipe (Braga, co-roteirista) trabalhamos juntos em ‘Marighella’ desde 2013. Para nós, desde o começo era claro que tínhamos que ter um recorte muito específico”, salienta o cineasta. Inserindo elipses exatas no avançar da luta e do tempo que resta a Marighella, tempo este conscientemente contado pelo revolucionário naquele recorte dos anos de chumbo e sangue, o roteiro, juntamente com a montagem de Lucas Gonzaga, demonstra seu foco como o de um filme que, apesar dos seus intensos 155 minutos, tem uma urgência explosiva no transmitir daquela trajetória para o público. “Não gosto de ver filmes biográficos que em apenas duas horas tentam dar conta da vida inteira de alguém. Melhor ler um livro ou ver um documentário. Nós optamos pelos cinco últimos anos da vida de Marighella. E muitas vezes pensei se não deveria ter feito um filme só sobre o último dia de sua vida”, relembra Wagner.
De um assalto a um trem para o roubo de armamento militar que abre seus minutos iniciais, com o plano sequência citado a nos pegar e colocar dentro daquela mesma tensão encontrada pelo protagonista e seus camaradas, ao momento de anos antes, quando o corte para o mar da baía de Guanabara denota exatamente a fugaz calmaria antes do caos e da perda, a estrutura proposta por Wagner Moura em sua câmera na mão, muitas vezes trêmula, transmite de maneira precisa esse esgotamento físico e temporal. A queda pode até ser inevitável diante do poder do inimigo, mas também será sentida pelo carrasco. “Não. VOCÊS perderam”, replica Branco, personagem de Luiz Carlos Vasconcelos, pendurado em um pau-de-arara, enquanto um assassino militar o tortura. A simbologia desse momento é exata.
Na truculência esbanjada e regada a mortes e sangue, a representação governamental militar encontra em Lúcio (delegado vivido por Bruno Gagliasso em uma atuação corajosa e sem vaidades) suas mais profundas camadas de desonestidade e virulência. Desde a deturpação de fatos, passando pela manipulação de cenas de crime, até a aspereza e fel engolidos a seco quando tem que se curvar diante de agentes estadunidenses que vêm ao Brasil no rastro do seu suporte ao golpe militar, Lúcio é a representação do quão vil é o estado brasileiro dentro daquela política de violência, censura e terror. O mesmo terror que utiliza como pretexto para acusar de “terroristas” aqueles que se opõem à sua corrupção, algo que vemos se repetir em tentativas de um ministro da Justiça corrupto de um governo alçado em uma plataforma de mentiras.
Sendo sua primeira experiência na direção de um longa metragem, Wagner Moura explica que o seu processo por trás da câmera tem similaridades com sua experiência na atuação. “Eu acho que dirijo como atuo. Tento estar muito presente e contagiar o ambiente com energia criativa. Mas dirigir é muito mais fácil que atuar. Quando eu dirijo, sinto muita empatia pelos atores, porque eu sei o quanto aquilo pode ser doloroso”, evidencia o ator e diretor. Ainda sobre esse processo, “Marighella” referencia um tipo de direção bastante próxima aos seus atores, com uma câmera a captar seus movimentos constantes, algo que remete ao cinema feito pelos irmãos Dardenne, diretores preferidos de Wagner. “Os Dardenne são meus cineastas favoritos. Seus filmes são muito políticos, mas extremamente humanos, geralmente sobre jovens de classe social baixa. Eu acho que a crueza com que eles filmam encontra eco na nossa tradição de cinema político, do Cinema Novo até ‘Tropa de Elite’. E todos bebem no neo-realismo italiano, que é meu cinema favorito”, declara o diretor.
Da influência de um cinema que historicamente surgiu como uma luta contra o fascismo, “Marighella” e seu diretor se estabelecem como símbolos dessa mesma luta. Nesta entrevista concedida por e-mail ao Scream & Yell, Wagner aprofunda mais essa experiência na direção de “Marighella”, bem como sobre esse estranho Brasil de 2020. Confira !
Marighella chega à tela da sala 1 do Cine Glauber Rocha, aqui na Praça Castro Alves, em Salvador, justamente na Semana da Consciência Negra. Isso após ter tido seu lançamento adiado pela pandemia, bem como ter sofrido um leviano boicote de agentes do governo. Como você avalia a simbologia dessa resistência ao ver a vida de Carlos Marighella ser levada ao público da cidade com maior percentual de cidadãos afro-descendentes na América Latina justamente nessa data?
Marighella era um homem negro. Seus avós maternos eram sudaneses escravizados e esse fato é relevante na construção de sua personalidade. Os ataques que nosso filme sofreu pelo fato de Seu Jorge ter a cor de pele mais escura do que a de Marighella, só reforçam que aqueles que não querem ver a história de Marighella contada também se esforçam para que se conservem as estruturas tradicionais que tendem a embranquecer personagens históricos. Antes da censura que sofremos no ano passado, a data escolhida para nossa estreia havia sido justamente o 20 de Novembro, dia da Consciência Negra. Salvador tem a maior população negra do Brasil e o cine Glauber Rocha não está distante da Baixa do Sapateiro, onde Marighella cresceu.
No mesma semana, vemos acender um pouco da esperança de dias melhores quando aconteceu a eleição de nomes como Maria Marighella na câmara dos vereadores aqui em Salvador, além de um projeto de governo mais humano com Guilherme Boulos em SP chegando ao segundo turno, bem como um aumento do número de negros e negras eleitas em diversos estados. É possível enxergar nisso um vislumbre de que o Brasil consegue sair do pesadelo de mentiras e escândalos tidos como “normais” no qual se afoga na atual necropolítica advinda da extrema-direita?
Sim, Bolsonaro e seu cortejo de horrores são uma resposta ultra conservadora aos anos de políticas progressistas que tivemos no Brasil. Mas o acirramento das lutas identitárias, raciais, por justiça social e proteção ao meio-ambiente também são uma resposta à distopia trazida por seu governo e agudizada por seu comportamento genocida durante a pandemia. A história é feita de avanços e retrocessos. Veja: as eleições com votações expressivas de mulheres trans como Érica Hilton em São Paulo e Duda Salabert em Minas talvez não tivessem acontecido com tanta força se não tivéssemos agora no poder um sujeito que encarna todo o ódio histórico dirigido aos LGBTQ. A Elaine, do Quilombo Periférico de São Paulo, assim como muitos candidatos e candidatas que trazem a pauta do combate ao genocídio de afro-descendentes, chegam ao parlamento como uma resposta clara ao racismo estrutural histórico, potencializado pela eleição de 2016. E claro, Maria Marighella eleita vereadora! Ela concretiza a profecia de Jorge Amado, retira da maldição e do silêncio e devolve seu sobrenome à política institucional. Lutar para Boulos governar a maior cidade do Brasil deve ser um compromisso de todos nós, não só dos paulistas. Pode-se criar em São Paulo um laboratório de antítese dessa necropolítica à qual você se refere. São Paulo pode ser uma referência para o país que queremos em 2022. Há, sim, esperança.
Volto a citar o boicote do atual governo perante o filme, algo que aconteceu, também, com a campanha de “Bacurau” e de “Democracia em Vertigem”. Como jornalista e alguém assumidamente de esquerda, vejo essas tentativas de repressão à Cultura em geral (e especificamente ao Cinema Brasileiro) como algo angustiante. E isso justamente quando estávamos começando a criar uma indústria cultural cinematográfica rentável. Você acredita em uma perspectiva futura diferente dentro do nosso audiovisual? Algo como o que vimos na Coréia do Sul, no qual os investimentos governamentais de longa data na indústria do audiovisual e nas salas de cinema permitiram um avanço e um ápice como o de, por exemplo, Bong Joon Ho e o seu “Parasita”.
Vai demorar muito até que o cinema se recupere do estrago. A Ancine já não está funcional e tem seus dias contados. O cinema independente brasileiro acabou. Nosso audiovisual sobrevive graças às plataformas estrangeiras de streaming. A área da Cultura foi das mais afetadas por esse projeto de destruição de país. Mas a campanha de convencimento da população de que artistas são vagabundos é anterior a Bolsonaro, e, infelizmente, se provou muito eficaz. O artista brasileiro virou “O Inimigo do Povo”, lá da peça de Ibsen. Atacando a reputação dos artistas e o valor da nossa produção, eles tiveram o caminho aberto para acabar com o fomento a cultura, sem que ninguém reclamasse ou achasse que o país estava perdendo algo importante.
O seu processo de se adequar à função de diretor, tendo toda sua carreira centrada na atuação, foi difícil? Como foi esse processo de criação de uma linguagem cinematográfica como diretor? Houve travas?
Eu acho que dirijo como atuo. Tento estar muito presente e contagiar o ambiente com energia criativa. Mas dirigir é muito mais fácil que atuar. Quando eu dirijo, sinto muita empatia pelos atores, porque eu sei o quanto aquilo pode ser doloroso.
Li acerca da influência dos irmãos Dardenne na sua câmera como diretor. Você poderia aprofundar em como essa influência se deu?
Os Dardenne são meus cineastas favoritos. Seus filmes são muito políticos, mas extremamente humanos, geralmente sobre jovens de classe social baixa. Eu acho que a crueza com que eles filmam encontra eco na nossa tradição de cinema político, do Cinema Novo até “Tropa de Elite”. E todos bebem no neo-realismo italiano, que é meu cinema favorito.
Felipe Braga e você assinam o roteiro baseado no denso livro de Mário Magalhães. O processo de adaptação foi difícil? Como foi essa construção de uma estrutura cinematográfica para um livro tão completo dentro da vida de uma pessoa da importância de Carlos Marighella? Houve algum conflito pessoal seu no sentido de precisar deixar de fora algum trecho no corte final de 155 minutos de duração?
Muito difícil. O roteiro, para mim, é a parte mais difícil do cinema. E nós estávamos lidando com a história de vida de muitas pessoas e com um período conturbado do país. Eu e Felipe trabalhamos juntos em “Marighella” desde 2013. Para nós, desde o começo era claro que tínhamos que ter um recorte muito específico. Não gosto de ver filmes biográficos que em apenas duas horas tentam dar conta da vida inteira de alguém. Melhor ler um livro ou ver um documentário. Nós optamos pelos cinco últimos anos da vida de Marighella. E muitas vezes pensei se não deveria ter feito um filme só sobre o último dia de sua vida.
A urgência de se contar a história de Marighella em um período no qual a apologia à tortura, tal qual a banalização e negação criminosa da ditadura militar angariam votos e vencem eleições, é palpável. Como você avalia a possibilidade de levar essa reflexão histórica às pessoas? Tanto aquelas que, da citada forma criminosa, negam e fazem apologia à tortura, bem como as que foram manipuladas a acreditar nesse discurso e elegeu quem os proferiu e profere.
Hoje há gente discutindo se a ditadura foi mesmo ruim, se a tortura é aceitável e se a terra é mesmo redonda. Isso era impensável há cinco ou seis anos. Aprendi que não se pode menosprezar a capacidade de piadas e absurdos se alastrarem até ganharem status de verdades. Mentira e desinformação precisam ser levadas a sério e combatidas pedagogicamente, não se pode mais rir de sandices como a mamadeira de piroca. É preciso levar a sério e reagir imediatamente. O manejo escroto das redes sociais polarizou o mundo e relativizou a verdade. E, claro, a aversão de tipos como Trump e Bolsonaro à cultura, à ciência, ao pensamento crítico, à regulação das redes e à liberdade de imprensa favorecem um projeto de dominação que se beneficia da ignorância.
Ainda neste aspecto da denúncia das torturas no período tenebroso da ditadura militar no Brasil que temos acesso através da obra de Mário Magalhães e através do filme que você dirigiu, a audiência pode perceber a urgência dessa discussão acerca das monstruosidades cometidas. Longas como “Torre das Donzelas”, “A Noite Escura da Alma”, “Sem Descanso” ou o curta metragem “Torre”, para citar apenas algumas obras, bem como outras recentes que abordam a questão em um período de negações irresponsáveis e oportunistas de tais monstruosidades, cumprem o papel de não nos deixar esquecer e/ou banalizar tais atos. Tendo em mente essa conscientização e reflexão oferecidas pelo Cinema, quero lhe perguntar sobre sua opinião acerca dessa função social e política do audiovisual, sobretudo o brasileiro, no intuito de conscientização de um povo altamente manipulável por mentiras e bravatas políticas.
Sim, um país que não encara seu passado de frente, não pode se desenvolver plenamente. A Lei da Anistia, quando poupa o Estado de ser julgado por crimes de tortura e assassinato, presta um desserviço enorme ao país, na medida em que interdita o direito de um povo à lidar com sua memória. E a preservação da memória é uma das atribuições da produção cultural. Não é à toa que essa produção tem sido vítima de censura.
Amarildo, Michael Brown, Geovane, Agatha, João Pedro, Breonna Taylor, George Floyd. A lista de pessoas torturadas e/ou mortas pelas forças do Estado tanto aqui no Brasil quanto em outros lugares, como os Estados Unidos, cresce de maneira assustadora. E esses são “apenas” alguns dos nomes que chegam à mídia. Diversos estudos comprovam que a brutalidade policial não tem qualquer ligação com a efetividade dessa força do Estado perante a sociedade. Na sua opinião, a brutalidade policial é um reflexo justamente dessa política que se alimenta de uma sociedade mesquinha e violenta? Como essa consciência pode ser criada e focada em uma mudança? Você é otimista nesse sentido?
A polícia é a face mais evidente de Estados enraizados em estruturas historicamente racistas. Em áreas pobres, de maioria negra, a polícia muitas vezes é a única face visível desse Estado. Tanto no Brasil quanto nos EUA. A polícia brasileira é a que mais mata e também a que mais morre no mundo. Há algo tragicamente errado nisso, só não vê quem não quer. O discurso de que se resolve o problema da segurança publica endurecendo a brutalidade e letalidade da polícia já não se sustenta, apesar de ter sido vitorioso em 2016. Eu sou otimista. O Black Lives Matter é um dos movimentos mais poderosos da história dos EUA e um dos fatores decisivos para a derrota de Donald Trump. No começo dessa entrevista falamos do espaço histórico que o movimento negro, feminista e LGBTQ ocupou nessa eleição. Não tenha dúvidas de que a reforma das polícias e enfrentamento ao genocídio de afro descendentes será uma pauta forte no legislativo de agora em diante.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual. A foto que abre o texto é de Fábio Bouzas (Divulgação)
Em um trecho da entrevista a ELA do dia 24/11/2021 Wagner Moura diz que O presidente Jair Bolsonaro não serviria nem para síndico de condomínio, porque?a comparação? Será que o Sr. Wagner Moura conhece a totalidade dos síndicos do Brasil e que sabe do mundi Iara fazer este tipo de comparação.