por Renan Guerra
“Língua Franca” (2020) nos conta a história de Olivia, uma mulher trans filipina que vive de forma ilegal nos Estados Unidos. Ela trabalha como cuidadora de uma senhora de origem judaico-russa no bairro de Brighton Beach, no Brooklyn, em Nova York. Olivia gasta uma grande parte do salário pagando um homem que será seu futuro marido e que lhe dará o sonhado green card. Quando este homem desiste do casamento arranjado, Olivia começa a se envolver com o problemático neto de sua patroa, que acabou de sair da reabilitação por causa de seu alcoolismo e que não sabe que ela é trans.
O longa escrito, dirigido e protagonizado por Isabel Sandoval, artista de origem filipina radicada nos Estados Unidos, é uma espécie torta de filme de amor na era Trump. Olivia vive constantemente em paranóia com medo da deportação e sofre acompanhando as políticas de imigração propostas pelo atual presidente americano. Em paralelo a isso, ela se envolve em uma trama de amor com Alex (Eamon Farren), uma relação complexa de carinho e medo que abala, de diferentes formas, o cotidiano da protagonista.
Um dos melhores filmes do Panorama Internacional do 28º Festival Mix Brasil, ”Língua Franca” chega por aqui com uma ótima carreira em festivais pelo mundo: ganhou o prêmio de melhor filme no Queer Lisboa; dois prêmios no Young Critics Circle, das Filipinas; além de duas indicações no Festival de Veneza de 2019. Essa boa carreira é a resposta pela excelente construção de Sandoval: seu filme é envolvente, emocionante e tenso em medidas perfeitas, nos deixando completamente emaranhados na história de Olivia, sem ignorar todas as nuances e complexidades de cada personagem.
É interessante como Sandoval delinea as diferenças culturais de cada personagem e como isso constrói esse cenário complexo de “Língua Franca”, onde tudo é incerteza e onde o medo é quase um personagem onipresente. Apesar desse universo quase sufocante, há muito carinho e afeto nas relações desenvolvidas ao longo da história. O romance de Olivia e Alex é construído de forma delicada e nos deixa de coração na mão, pois coloca Olivia, que já vive em uma situação limite, dentro de um arco ainda mais complexo, já que Alex é um alcóolatra irresponsável e imprevisível.
Talvez o maior trunfo de “Língua Franca” seja jamais abandonar a humanidade e o respeito aos seus personagens. Nada é gratuito ou feito de forma frívola, cada passo e cada nova cena tem um senso de verossimilhança muito forte e isso deixa o espectador absorto dentro desse universo. Além disso tudo, a forma como Isabel filma Nova York e como a cidade parece, de certa forma, opressora para Olivia é muito simbólica da nossa realidade. Quais os espaços para as pessoas trans e para os imigrantes? Quais os espaços para essas pessoas que não são consideradas a norma?
Há inúmeros debates possíveis advindos de “Língua Franca”: o amor e os direitos sociais para pessoas trans; a política de imigração dos Estados Unidos; o alcoolismo; o envelhecimento; a solidão e o medo. De todo modo, para além de todas as questões políticas e sociais levantadas por Isabel Sandoval, o mais forte aqui é que temos uma história extremamente bem contada, que sabe conduzir o espectador, que sabe brincar com as tensões, que sabe se utilizar da câmera e da luz para nos envolver. É cinema de alta classe. É cinema que consegue dosar de forma muito boa as técnicas do cinema mainstream com os maneirismos do cinema independente americano.
“Língua Franca” é um filmão que diz até mais do que a gente gostaria sobre o nosso tempo. É uma experiência linda sobre o amor e os sonhos em mundo extremamente hostil.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Também colabora com o Monkeybuzz.