por Renan Guerra
É tempo de seca e de baixa umidade no interior de Goiás. Sandro (Leandro Faria Lelo) vive seus dias entre seu trabalho em uma empresa de grãos, os mergulhos no clube da cidade e o sexo casual. A chegada à cidade de Maicon (Rafael Teóphilo) irá balançar alguma coisa ainda não explicada em Sandro. Entre sonhos fetichistas e a banalidade de um cotidiano árido, acompanhamos uma jornada bastante estilizada pelo universo afetivo e homoerótico de Sandro.
Esse é o terceiro longa de Daniel Nolasco e chega na sequência de “Mr Leather” (2019), documentário lançado na 27ª edição do Festival Mix Brasil e que acompanhava o concurso fetichista que dá título ao filme. “Vento Seco” (2020) coabita esse mesmo universo entre calças de couro, harness, rebites e outros itens fetichistas. São eles que passam a perseguir a mente de Sandro em sonhos que expõem as mais variadas possibilidades sexuais. É aí que se encontra uma das muitas ousadias do longa de Nolasco: o despudor.
Homens nus, closes profundos, pênis eretos e sexo explícito são imagens que se repetem pelo desenrolar do filme, sem floreios ou suavizações. É como se adentrássemos na mente de Sandro, onde cuspe e saliva são itens sexuais tanto quanto sêmen e urina. Dito isso, está claro que o filme não é para os pudicos. Mas para além disso, o sexo e a sexualidade em “Vento Seco” são rodeados por muito afeto: amizades são filmadas com suntuosa delicadeza e romances nascem em detalhes, em miudezas que deslumbram.
A suntuosidade se dá também na construção desse Goiás sertanejo de Nolasco. Tudo em “Vento Seco” é milimetricamente bem definido e estilizado, numa artificialização da realidade. Luzes neon dão o tom do filme, casando-se perfeitamente com uma fotografia simétrica, que usa e abusa de enquadramentos de tirar o fôlego. De certo modo, o longa se aproxima do que chamamos “neon-realismo”, uma curiosa vertente do cinema nacional nos anos 1980 que pintava a realidade cotidiana com boas doses de neon – vide filmes como “A Dama do Cine Shangai” (1988), de Guilherme Almeida Prado, e “Anjos da Noite” (1987), de Wilson Barros.
No universo de Daniel Nolasco, se pinçam referências clássicas do cinema gay, como Kenneth Anger ou mesmo o seminal “Un Chant d’Amour” (1972), de Jean Genet, porém a referência mais gritante vem do universo de Tom of Finland. Os desenhos hipersexualizados do artista finlandês aparecem como cenário do filme e, em alguns momentos, são quase que reencenados, com personagens uniformizados tal qual os profissionais de Tom. De todo modo, é interessantíssimo como Nolasco consegue abrasileirar essa salada de referências, como no uso dos itens country ou na belíssima sequência passada em uma feira agropecuária, com direito a repetidas divulgações de um show de Jorge e Mateus.
A música, aliás, é peça da espinha dorsal do longa. Sertanejos e modas de viola aparecem ao lado de Bethânia, costurando uma colcha de retalhes sobre o amor e as relações. Além disso, há o uso repetido das músicas de Thiago Pethit dando um tom ao filme. As canções de Pethit são todas do disco “Mal dos Trópicos (Queda e Ascensão de Orfeu da Consolação)” (2019), um disco que imageticamente já era muito forte, com uma estética muito bem definida; nisso é interessante como Nolasco as insere em outro universo imagético e, com isso, as canções parecem feitas para o filme.
Esse mundo de “Vento Seco”, com sua estilística e toda a sua sexualdiade à flor da pele, só ganha força por causa do trio de atores protagonistas: Leandro Faria Lelo, Rafael Teóphilo e Allan Jacinto Santana possuem uma química explosiva e eles sabem utilizar tudo isso de forma intensa, quase jogando com o espectador. Além disso, destacam-se a presença de Mel Gonçalves (ex-Banda Uó) e Renata Carvalho (da peça “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”), duas atrizes trans que aqui aparecem em papéis nos quais elas serem mulheres cis ou trans não é um mote de suas histórias. Renata Carvalho, por exemplo, está divina no papel de melhor amiga de Sandro; as cenas dos dois a fumar e conversar são momentos maravilhosos do filme.
“Vento Seco” foi apresentado no Festival de Berlim desse ano e agora participa da mostra competitiva do 28º Festival Mix Brasil. Em um dia de exibição, seus ingressos digitais se esgotaram, prova de que o falatório em torno do filme já está rendendo. Uma pena que 2020 não nos possibilite ainda ver esse longa numa tela grande, como sua exagerada fotografia pede. Enfim, como falado no início, esse é um filme de muitas ousadias, tanto em sua história quanto em sua direção, e é de se louvar que Daniel Nolasco consiga entregar uma trama tão bem amarrada, tão bem estruturada, que não se perde em sua complexidade.
No todo, “Vento Seco” é um filme interessante, pulsante, filmado em uma região que não é um polo de cinema brasileiro e que nos traz outros olhares sobre o amor, a liberdade e o sexo.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Também colabora com o Monkeybuzz.