por Renan Guerra
“Vil, Má” (2020) é um documentário que conta a trajetória de duas mulheres em uma: Wilma Azevedo, 74 anos, escritora, dominatrix e conhecida como a Rainha do Sadomasoquismo nos anos 70 e 80; e Edivina Ribeiro, jornalista, religiosa e mãe de três filhos. Sentada em uma poltrona que se assemelha a um trono, Wilma/Edivina irá contar suas histórias durante quase uma hora e meia para o diretor Gustavo Vinagre, em um documentário que funciona como um jogo de dominação entre diretor e personagem.
A narrativa é praticamente monocórdica: Wilma fica sentada em sua poltrona, o diretor segue fora de plano, com raras inserções de sua voz. Ao fundo de Wilma, a atriz Juliane Elting (“O Ornitólogo”) faz leituras e declamações dos textos da era de ouro de Wilma. Elting não tem o português como a língua materna e isso dá certo tom distinto as suas leituras. O jogo está formado nessa construção: Vinagre e Elting estão ali apenas para o misancene proposto pela própria Wilma, que como uma boa dominatrix, define as cartas de cada cena. E é interessante ver como Vinagre joga com isso e se deixa adentrar nessa brincadeira.
Nesse sentido, nem sempre sabemos o que é real e o que é ficção dentro de “Vil, Má”, pois contos se misturam à realidade, falas ensaiadas se mesclam a inserções de coloquial linguagem e nisso o espectador também se sente imerso nesse joguete. Esse dispositivo não é novo no cinema do diretor e pode ser visto também no excelente “A Rosa Azul de Novalis” (2019), em que realidade e ficção se misturam de forma difusa. Gustava Vinagre, aliás, é um dos mais interessantes nomes do nosso cinema atualmente, uma vez que seus filmes parecem sempre à margem, em investigações muito próprias, que criam um universo particular ao falar de sexualidade, arte e liberdade em nosso tempo.
Dentro disso, “Vil, Má” é como um filme-irmão de “Filme Para Poeta-Cego” (2012), curta-metragem de estreia de Gustavo, que apresenta a história do poeta Glauco Mattoso, um artista cego, fetichista e sadomasoquista. Foi numa sessão do curta-metragem, durante uma das edições do Festival MixBrasil, que Wilma Azevedo encontrou Gustavo e disse que ele deveria conhecer a história dela. Esse encontro foi gravado em 2014 e finalizado esse ano. “Vil, Má” estreou no Festival de Berlim e tem sua primeira exibição no Brasil esse ano, de forma on-line, no 28º MixBrasil, como um ciclo de encontros a se fechar.
Wilma é uma figura curiosa: de esposa e mãe de família ela passa a dominatrix respeitada no submundo do sadomasoquismo para depois abidcar de tudo em nome da religião. É uma história que em outras mãos poderia se tornar moralista ou mesmo sensacionalista, tipo matéria de dominical da Record. Nas mãos de Gustavo Vinagre o que temos é um documentário complexo, que se aprofunda nas questões da sexualidade e das múltiplas formas de prazer e que, nesse sentido, até deixa partes importantes da história de Wilma de fora.
Não entendemos muito sobre a sua volta a ser Edivina e também ficam faltando peças sobre sua relação com a igreja, por exemplo, mas tudo isso parece um jogo da própria Wilma. Ela conduz o filme tanto quanto Vinagre e é nesse exercício que o filme soa mais interessante. Até que ponto vai a verdade dentro de um documentário? Quais as relações estão construídas entre diretor e personagem? Essa dubiedade é muito interessante. Além disso, claro, são maravilhosas as frestas que se abrem para um universo de fetiches e sexo nos anos 1970 e 1980. Quanta história não está escondida em quartos e baús por aí?
“Vil, Má” é como um registro pequeno de um universo de histórias que se escondem entre a banalidade do cotidiano e o mistério que há em roupas de couro, chicotes, quartos esfumaçados e fetiches não-ditos.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Também colabora com o Monkeybuzz.
Caro Renan Guerra:
Eu sou Edi Wilma Azevedo Ribeiro, a própria. É verdade: quem assiste o filme Vil, Má, fica atrapalhado como se faltasse algo para completar a obra… Sim. Faltaram maiores explicações explicitas, sobre quem é quem. Em meu livro “Farândola”, (escrito desde os meus 14 anos, já no prelo) autobiográfico e autêntico, esclareço e desmistifico essa confusão. O leitor vai acompanhar toda Verdadeira História, onde a realidade ultrapassa a ficção e fantasia da escritora. Colocano-o de frente para uma realidade controversista e contundente, porém elucidando muito bem: QUEM SOU EU.