28º Festival MixBrasil: “Saint-Narcisse”, de Bruce LaBruce, um conto amoral sobre família, sexo e religiosidade

por Renan Guerra

O protagonista de “Saint-Narcisse” (2020) é um jovem apaixonado pela própria imagem, de forma sexualmente narcísica, isto é, ele se masturba frente ao espelho e se excita tirando polaróides. Já parece bastante coisa, não é? Porém sua jornada começa quando ele descobre sobre uma mãe que ele desconhecia e um irmão gêmeo idêntico que vive em um mosteiro! É a partir daí que o diretor canadense Bruce LaBruce nos leva por um emaranhado de cenas que passam por situações como sexo entre freis, masturbação ao som de cantos gregorianos e uma paixão quase sexual por São Sebastião.

Tudo que foi citado acima pode parecer chocante ou polêmico, mas dentro do universo de LaBruce esse é até um filme leve. Vamos voltar no tempo: LaBruce estreou no cinema com “No Skin Off My Ass” (1991), sobre a relação de amor entre um punk e um skinhead, em filme que se tornou clássico cult depois que Kurt Cobain o citou como um de seus favoritos. De lá pra cá, Bruce se tornou célebre ao misturar altas doses de sexo explícito com mensagens políticas radicias. A melhor representação disso está em “The Raspberry Reich” (2004), filme que conta a saga de uma gangue à la Baader-Meinhof que busca criar uma revolução gay, no que eles chamam de “A Intifada Homossexual” – o filme é uma comédia debochadíssima, mas parece que previu a fake news da “ditadura gayzista” que tanto aterroriza a direita brasileira.

No entanto, desde que lançou o belo “Gerontophilia” (2013), Bruce parece ter dado uma guinada mais mainstream em seus filmes, suavizando as cenas de sexo e conseguindo aportes financeiros maiores e lançamentos comerciais de seus projetos – paralelamente, LaBruce dirige filmes pornôs para produtoras gays famosas, que ainda se comunicam com o lado punk de seus filmes mais antigos. “Saint-Narcisse” é um bom amálgama entre esse lado mainstream do diretor e sua verve punk: há muitas questões polêmicas e complexas debatidas dentro do longa, desde incesto até abuso sexual, mas tudo é visto por uma ótica um tanto quanto anárquica, meio Almodóvar dos anos 1980, e isso sustenta o estranho humor do longa.

“Saint-Narcisse” fez carreira internacional em festivais importantes de cinema, como o de Toronto e o de Veneza, já aqui no Brasil o filme ganhou sua estreia oficial de forma online através do 28º Festival MixBrasil de Cultura da Diversidade, o principal evento de cultura LGBT do Brasil, que mistura cinema, teatro, literatura e música – e que este ano acontece quase que integralmente online e gratuito. LaBruce é nome importante na história do Festival, tanto que já esteve presente em diferentes edições e viu muitos de seus longas estrearam aqui dentro da mostra.

Passado nos anos 1970, “Saint-Narcisse” investe em diálogos fortes com a iconografia da Igreja Católica para discutir dogmas, preconceitos e liberdade. O mártir São Sebastião é quase como um personagem do filme a vigiar todos – pra quem não lembra, São Sebastião é, de forma não-canônica, o padroeiro dos gays e é considerado por muitos o primeiro ícone gay da história.. Além disso, um dos personagens principais é classificado como uma “reencarnação de Sebastião”, no que gera uma relação complexa de abuso sexual e de poder dentro do mosteiro.

De todo modo, essa iconografia não é novidade para o diretor, que já havia tensionado essas questões na série de fotos “Obscenity”, em que ele fotografou artista espanhóis, como Rossy de Palma e Alaska, ao lado de itens sacros, como cruzes, rosários e hóstias, adicionando, claro, uma pitada de sangue, sexo e sêmen. “Obscenity” foi exposta na Espanha e provocou a fúria dos religiosos do país, tanto que Bruce sofreu ameaças de morte e tentaram até jogar bombas dentro da galeria responsável pela mostra.

No final das contas, “Saint-Narcisse” mistura freis desnudos, mães lésbicas, auto-flagelação e incesto em uma trama bem mirabolante, mas que funciona de forma bastante divertida por quem se deixa levar pelo universo de LaBruce. Há um tom, quase kitsch, assumido pelo diretor que torna seu filme uma espécie de conto amoral, de fábula desmoralizante e isso é o mais interessante.

É no absurdo que “Saint-Narcisse” se mostra um filme excelente para a caretice dos nossos tempos.

– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Também colabora com o Monkeybuzz.

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