Entrevista: Piero Sbragia fala sobre o livro “Novas Fronteiras do Documentário – Entre a Factualidade e a Ficcionalidade”

entrevista por João Paulo Barreto

A foto que ilustra essa entrevista para o Scream & Yell, na qual o escritor Piero Sbragia conversa com o documentarista Eduardo Coutinho, foi tirada em outubro de 2013 durante uma tarde de autógrafos de um livro que trazia uma coletânea de seus textos. A foto, clicada pelo amigo de Piero, Pedro Moreira, traz um Eduardo Coutinho um tanto desfocado. No prefácio do livro “Novas Fronteiras do Documentário – Entre a Factualidade e a Ficcionalidade”, que Piero Sbragia lança em 2020, o autor observa que a falta de foco daquele registro é “conotativa e denotativa”, pois revela “o nervosismo dos jovens diante do mestre”. Na conversa com Piero para essa matéria, relembrei uma comparação semelhante com a capa do “Blonde on Blonde”, na qual o escritor falava que a imagem um tanto borrada de Bob Dylan refletia a velocidade na qual ele estava naquele distante 1966. Digo a Piero que enxerguei na imagem borrada de Eduardo Coutinho a mesma velocidade e visão à frente do seu próprio tempo, que o colocava em um patamar diferenciado de entendimento da nossa realidade.

No seu livro, Piero Sbragia analisa diversos aspectos da construção do documentário, focando não somente em alguns desses aspectos atrelados a Coutinho e sua atenção a um cinema documental visando a audição de suas personagens, mas, também, a Cao Guimarães, diretor cujos filmes seguem por um norte de introspecção e observação. Piero observa que “é interessante essa conexão do Cao com o Coutinho porque, efetivamente, eles fazem filmes muito diferentes. O Coutinho, para mim, sempre foi um cara à frente do seu tempo. Ele antecipava tendências. Era um cara da vanguarda, no sentido da origem da palavra, do francês avant-garde. A pessoa que ia na frente para levar bala. Levava o tiro primeiro, mas conseguia chegar primeiro aos lugares. Coutinho é esse cara. O Cao eu vejo mais como alguém atento ao zeitgeist, ao tempo. O Cao é, para mim, o reflexo do momento, da nossa contemporaneidade. E coloco os dois no mesmo patamar”, pontua o escritor, salientando a ideia de observar a velocidade do primeiro, cuja inesperada metáfora que encontramos na foto do seu encontro com o documentarista reverbera nesse texto e em quase sete anos após sua morte brutal.

Em “Novas Fronteiras do Documentário – Entre a Factualidade e a Ficcionalidade”, Sbragia, além de aprofundar o estudo do cinema de documentário, algo que surgiu a partir da construção de sua dissertação de mestrado, traz na visão de 10 documentaristas de diferentes gerações e abordagens de cinema, um maneira de traduzir um olhar da realidade por visões atentas. Assim, através de Amanda Kamanchek, Cristiano Burlan, Eduardo Escorel, Eliza Capai, Geraldo Sarno, Juca Badaró, Maria Augusta Ramos, Orlando Senna, Paula Trabulsi e Susanna Lira, o autor cria um panorama amplo desse cinema que registra para sua audiência nuances profundas do real. Nessa entrevista ao Scream & Yell, Piero Sbragia fala sobre o processo de escrita, bem como o desafio de manter-se focado nesse mesmo processo enquanto confinado durante uma pandemia. Confira o papo!

Coutinho e Piero/ Foto de Pedro Carvalho

O livro “Novas Fronteiras do Documentário: Entre a Factualidade e a Ficcionalidade” traz um foco bem amplo na análise do processo de construção do cinema de documentário através do olhar de várias pessoas que realizam filmes no Brasil, inclusive nomes aqui da Bahia. Você poderia falar um pouco sobre como se deu esse processo de escolha das fontes?
Eu tinha muito claro para mim algumas questões em relação à diversidade dos entrevistados e das entrevistadas. Acho que a diversidade é uma palavra que está na moda, a gente fala muito, mas pouco refletimos sobre ela. Eu tinha uma questão bem evidente que era ter a mesma quantidade de homens e de mulheres. Eu não sabia quantas pessoas eu teria. Como eu tive 10 pessoas, foram cinco homens e cinco mulheres. Se fossem 20, seriam 10 e 10. Eu também queria, de certa maneira, ter um espectro de vivência grande. Eu queria ter pessoas como o Geraldo Sarno, como o Orlando Senna e como o Eduardo Escorel que, juntos, têm 150 anos de cinema. Eu queria ter pessoas como o Juca Badaró (diretor do premiado “As Cores da Serpente“), como a Amanda Kamanchek, que só têm um longa metragem no currículo, mas que conseguiram realizar nesses longas obras que, de certa maneira, foram revolucionárias para mim. E você coloca essa questão da Bahia, de Orlando, de Geraldo, do Juca nessa, porque eu também me preocupava muito com essa análise do cinema brasileiro dentro do eixo Rio-SP. E acho que tenho um lugar fala para abordar isso porque sou paulistano. Morei em Salvador, morei no interior de São Paulo, e, a maior parte da minha vida, morei na cidade de São Paulo. Acho que qualquer análise de cinema que não se proponha a sair do eixo Rio-SP é uma análise fraca. Porque, hoje, você tem o cinema de Pernambuco muito forte; você tem o cinema do Ceará muito forte; você tem aquele núcleo de Contagem, perto de BH, muito forte. Você tem o Cinema da Bahia. Só o Cinema da Bahia já se equipara com o Cinema brasileiro como um todo. Não preciso nem falar de Glauber Rocha, mas de outros talentos que a gente tem no Cinema da Bahia. Claro que não consigo representar o Brasil inteiro no meu livro. E também não era a minha ideia. Mas, por exemplo, eu quis ouvir o Cristiano Burlan, que é uma pessoa que nasceu em Porto Alegre, morou a vida inteira em Uberlândia, e se mudou para São Paulo, indo morar no Capão, na periferia. Apesar dele hoje morar em SP, não o considero dentro do eixo RJ-SP. Eu tenho o Orlando, o Geraldo e o Juca, que são baianos. De certa maneira, tentei fugir um pouco dessa análise limitada de que o Cinema no Brasil parece que só foi feito no Rio ou em São Paulo. Acho muito importante e saudável em qualquer discussão de cinema que a gente tenha, seja em um livro, um debate ou em uma live, pensarmos o cinema como algo produzido no Brasil inteiro. Temos muitos jovens talentos indígenas de Manaus, de Roraima, do Acre, que estão produzindo filmes, curtas, longas. É uma geração que está chegando, que está aí em festivais. A Larissa Ye’padiho Duarte, uma cineasta do povo Tucano que tem feito cinema. É uma profissional que teve acesso, que aprendeu a fazer cinema e está produzindo coisas muito bacanas. Então, acho importante a gente discutir o cinema considerando que o Brasil não se resume apenas a Rio e a SP.

Logo nas primeiras páginas do seu livro, você fala sobre seu encontro com Eduardo Coutinho, em 2013, poucos meses antes do documentarista ser assassinado. Na sua descrição daquele momento, quando você pede ao Coutinho dicas acerca da labuta do documentário, eu percebi o surgir da fagulha, uma gênese daquele seu inicio no campo do documentário. O Coutinho te respondeu dizendo que a melhor dica é não ter nenhuma. Como aquele conselho do Coutinho chegou a você em termos de reflexão?
Gostei dessa sua reflexão considerando aquela como a gênese de algo dentro de mim. Curioso. Eu talvez nunca tenha parado para pensar nesse sentido. Aquele encontro foi muito simbólico. Tem um aspecto em relação aquilo e que não mencionei no livro. Até pensei, mas não mencionei. O Coutinho autografou o livro e escreveu: “Para Piero, de Stephen Rose”. E durante muito tempo fiquei com isso na cabeça. Cheguei a perguntar na época ao Escorel. Perguntei a ele porque o Coutinho escreveu Stephen Rose. O Escorel rachava o bico. Pediu na época para eu tirar uma foto e mandar. Ele publicou a foto do livro com o autografo do Coutinho/Stephen Rose na coluna dele. Depois de muito tempo, lendo o belíssimo livro do Carlos Alberto Mattos, “As Sete Faces de Eduardo Coutinho”, eu descubro que o Coutinho fazia isso com frequência. Achei que havia sido algo exclusivo para mim, mas parece que não foi (risos). Todo autografo que o Coutinho deu em vida, me parece que ele adotou essa alcunha de Stephen Rose. Essa coisa do Stephen Rose aliado com a “dica da não dica”, que conto no livro, ou seja da subversão das dicas, por si só constitui um pilar bem interessante daquilo que precisamos refletir hoje em dia. Primeiro que acho que o fato dele usar o Stephen Rose no lugar do nome dele é justamente aquilo que muito me interessa e aquilo que discuto no livro: a questão da ficção dentro do documentário. A partir do momento que ele, que é o maior documentarista brasileiro, sem discussão, sem dúvida alguma – geralmente, as unanimidades são burras, como diria Nelson Rodrigues, mas acho que, nesse caso, ela não é burra – em um autografo num livro, adota um pseudônimo ficcional, o que isso significa? O que isso representa? A leitura que faço é como se ele estivesse falando para mim: “Olha, não me mitifique. Não crie um mito sobre a minha pessoa”. Glauber Rocha falava muito isso. E acho que quando o Coutinho assina como Stephen Rose, em outras palavras ele está falando assim: “cuidado com os mitos”. E quando falo “cuidado com os mitos”, fazendo essa ponte de 2013 para 2020, é claro que também estou falando de Jair Bolsonaro. É claro que também estou falando de várias pessoas e de vários políticos que se elegem na sombra de um mito que é construído sobre eles. O Brasil me parece muito dependente de heróis. Geraldo Sarno fala muito isso e, inclusive, no meu livro, ele fala isso, também. A gente considera, por exemplo, o Ayrton Senna um herói. A gente considera Bolsonaro um herói. Quando eu digo a gente, obviamente, não me refiro a mim. O Lula um herói. Se você for ver, quantos heróis o Brasil tem? Seria o Brasil uma nação com esse carma? O Brasil só produz heróis? Porque é impressionante a quantidade de heróis que a gente produz. E eu prefiro ir na contramão disso. Porque, por exemplo, o herói, na Fórmula 1, é o Lewis Hamilton, que é um cara ativista em um mundo no qual ser ativista é pior do que ser assassino. As pessoas consideram o ativismo como se fosse algo… (pausa) O ativista parece estar matando alguém! As pessoas dizem que fulano é ativista como se aquilo fosse a pior coisa do mundo. Então, herói, para mim, é o Lewis Hamilton. O Ayrton Senna, para mim, não está nem no chinelo do Hamilton. Mas a gente, aqui no Brasil, mitificou o Senna. Ele virou uma pessoa intocável. O Guga, no tênis, é a mesma coisa. O Pelé, no futebol, a mesma coisa. Acho que isso é uma lição muito importante que o Coutinho trouxe para mim nesse autógrafo em que ele assina como Stephen Rose. Para mim, ali, ele está falando para a gente não mitificá-lo. E não mitificar qualquer pessoa. Para passarmos a entender o ser humano como alguém complexo, como alguém contraditório. Nós somos contraditórios. Eu, você, o Coutinho, o Glauber, o Senna. Todo mundo. E a segunda questão que acho que realmente foi uma faísca que o Coutinho colocou em mim, ou como o Geraldo (Sarno) brinca, “foi uma brasa que o Coutinho espalhou”, foi quando ele disse que não iria oficializar a dica. Que ele não ia transformar o conselho como algo oficial. E lembrando que a gente vive na terra de Augusto Cury, que lança livros sobre “dez maneiras de acabar com a corrupção”; “dez maneiras de trazer seu amor de volta”; “dez maneiras de ganhar dinheiro e ser feliz”. Então, o Brasil me parece, também, gostar de pegar esses atalhos das dicas dos gurus de auto-ajuda. Hoje, temos gurus no mercado financeiro, gurus na Cultura, gurus no Esporte. Em tudo quanto é lugar. Todo mundo tem dicas para tudo, todo mundo sabe o segredo para tudo. E pergunto: porque estamos no fundo do poço? Se todo mundo tem a resposta para tudo? Se o Augusto Cury foi bestseller, livro mais vendido no Brasil, dez dicas para acabar com a corrupção (N.E. “O Médico da Humanidade e A Cura para a Corrupção”), como é que o Brasil continua sendo um país propício aos corruptos? Acho que isso, também, é muito importante. O Coutinho refutava essa ideia de pensador. Ele não gostava de se colocar como pensador de nada no Brasil. Mas acho que ele foi, sim, um dos grandes pensadores contemporâneos brasileiros. Principalmente pelo o que ele não diz. Essas duas questões que tenho com ele nesse breve e único encontro que tivemos, dizem muito sobre esse hiato de 2013 para 2020. De que talvez, hoje, é o momento da gente falar menos e ouvir mais. Isso foi o que ele fez nos filmes dele. O Coutinho é o cara da escuta. O Coutinho é o cara do afeto. Ele não é o cara da garganta. Ele não é o cara do discurso. O Coutinho é o cara que vai ouvir. O Coutinho é um cara que a pessoa vai falar uma coisa para ele, e ele ia falar: “Putaquepariu, é isso mesmo. Que merda, né? Você tem razão”. E ia acender o cigarrinho dele. Acho que isso é importante. Vivemos hoje em uma sociedade que berra. As pessoas berram nas redes. As pessoas gritam nas janelas. As pessoas batem panelas. As pessoas fazem buzinaço. Todo mundo grita e o que de fato está acontecendo? Nada! Que tipo de mudança essa gritaria toda traz para o Brasil? Nenhuma. Então, gritar não é o caminho. Talvez o caminho seja ouvir. Que é o que o Coutinho fez nos filmes dele. O Coutinho sempre foi um bom ouvinte. Sinto essa necessidade da gente ouvir mais nesse Brasil em que as pessoas gritam muito.

No nortear das ideias que você reuniu durante a escrita, durante o planejamento das entrevistas, norteando o tema da construção dos documentários e apresentando-o às fontes com quem você conversou, houve dificuldades no processo de esquematização das ideias? Como você conseguiu criar essa estrutura? Pergunto por conta da grande quantidade de informações que o livro traz, diversas fontes e propostas de análises norteando (olha a palavras aí de novo) o estudo do documentário.
Só fazer um pequeno introito aqui na resposta, eu gosto do “norteado”, também. No caso específico do Brasil, o Norte e o Nordeste são esquecidos. Há um, digamos, projeto de esquecimento, de apagamento do Norte e do Nordeste. Adoro usar esse termo, também. No nosso caso, aqui, acho que a ideia é essa. Temos que virar as costas para o Sul, para o Sudeste, e começar a olhar mais para os lados do Brasil que tentam esconder da gente. Então, feito esse pequeno introito sobre o norteado, cara, eu não sei te dizer assim como eu consegui. Eu sabia como eu ia começar o livro. Sempre soube. O livro parte da minha dissertação de mestrado. E eu nunca soube como eu ia terminar. O fato de eu ter terminado o livro já durante a pandemia revela que o livro, na verdade, para mim, está em aberto. Algumas pessoas até falaram que eu precisava lançar o volume dois. Falei que não. A última entrevista que fiz foi com o Cristiano Burlan, uma semana antes da quarentena ser oficializada na cidade de São Paulo. Fiz a entrevista com ele já em março. Escrevi boa parte da introdução em abril, e escrevi as considerações finais em maio. Meu livro foi finalizado já em quarentena, já em distanciamento social comigo dentro de casa literalmente olhando pela janela. E da minha janela, aqui em São Paulo, eu só vejo cinza. Eu só vejo prédio. Eu moro perto do aeroporto de Congonhas, vejo muito avião. Eu não vejo pessoas da minha janela. É curioso isso. As pessoas da minha janela são muito pequenas. Porque moro no 17º andar, então elas têm os mesmo tamanho dos carros. Para minha visão da minha janela, é uma coisa muito distante. E isso me impactava muito quando eu tentava buscar uma inspiração, quando eu travava em algum momento do texto. Porque eu quis fazer com que o livro fosse uma conversa de boteco. Eu quis fazer com o texto do livro algo próximo de quem estivesse lendo. E, porra, como é que eu vou estar próximo das pessoas se eu, fisicamente, estou distante nesse momento? Acho que essa contradição, enquanto eu finalizava a escrita do livro, foi muito importante para encontrar esse caminho que você falou. Porque não pensei assim. Isso não foi uma coisa que eu, na época, pensei. Até porque eu não sabia onde livro ia acabar. O que, alias, eu acho que deve ser o terror de qualquer escritor. De não saber como o livro vai acabar.

Aquela coisa do escritor não terminar, mas, sim, abandonar o livro.
Exato. Eu acho que essa coisa do distanciamento naquela época mexeu muito comigo. Eu vivi boa parte da quarentena no 17º andar de um prédio em São Paulo e, cara, isso é cruel. Eu queria passar a quarentena em Lençóis, na Chapada Diamantina. Lá em Itapoan, lá perto do farol, em Salvador. Eu queria passar a quarentena em um lugar bonito. Mas, não. Eu estava aqui vendo só cinza da minha janela, poluição. E tendo que finalizar um livro. Acho que isso mexeu muito comigo no sentido de que passei a enxergar essa coisa das relações humanas como algo muito importante. E aí o Coutinho e o Cao (Guimarães), também, são muito valorosos nesse sentido. “O Homem das Multidões” é sobre isso: sobre o isolamento. E olha que o filme é de 2013. E o texto original de 200 anos atrás, do Edgar Allan Poe. “O Homem das Multidões” fala do distanciamento social em uma época que não havia quarentena, não havia pandemia do novo corona vírus. Quem é o homem das multidões? É uma pessoa que não se identifica com o outro. Que não consegue uma conexão humana com as pessoas. E acho que isso traz uma reflexão crucial que é a seguinte: a gente está se distanciando das pessoas. Eu estou me distanciando de amigos, de parentes. Imagino que você também. Imagino que o seu colega de trabalho, também. Imagino que o seu vizinho, também. Que o meu vizinho, também. Nós todos estamos nos distanciando das pessoas. E acho que agora, talvez, seja o momento de nos aproximarmos das pessoas. E claro que aproximação pressupõe o afeto. E aí volto de novo naquela dica do Coutinho. Da mesma maneira que ele não vai oficializar a dica, eu também não vou oficializar a hipocrisia de dizer que a gente tem que ter empatia com todo mundo, que a gente tem que pensar positivo na vida, que a gente tem que orar e pedir a Deus. Não temos que fazer nada disso. Temos que fazer com que as nossas relações humanas se pautem pelo afeto. Então, não sofro mais por quem me distanciei. Mas comemoro pelas pessoas de quem me aproximei nesse ano. Acho que a gente tem que valorizar isso. Tenho afeto por quem? Quem me faz bem? Isso é positivo. É o sentido real da empatia. E isso para um documentário é fundamental. Porque eu estou contando a história de alguém. E o Coutinho fazia isso muito bem. O Coutinho falava: “eu não estou ali para julgar as pessoas. Eu não estou ali para questionar se ela está falando a verdade, se ela está falando a mentira. Se ela é de direita ou de esquerda. Se ela é rica ou pobre”. O Coutinho não estava preocupado com isso. Ele estava preocupado em estabelecer uma relação intima. Havia uma metáfora que ele fazia de uma relação sexual. Não no sentido de que ele assediava as pessoas. Pelo contrário. Mas ele comparava a entrevista como se fosse uma relação sexual entre duas pessoas. Porque você tem ali uma atração. Tem ali um desnudamento, no sentido de que aquela pessoa precisa estar despida o máximo possível de máscaras que ela tem, para você conseguir extrair dela alguma coisa. E o Coutinho fazia isso muito bem. Então, acho que essa coisa do Coutinho saber se conectar com as pessoas faz muita falta para o Brasil, hoje, em 2020. Acho que a gente tinha que começar a se conectar com as pessoas. A gente se desconectou de muita gente. E acho válida a desconexão de pessoas tóxicas, de pessoas que professam uma ignorância ativa. Faço questão, por exemplo, de me desconectar de um terraplanista. Não quero ter o menor vínculo afetivo, emocional, nenhum, com um terraplanista. Nem perco tempo debatendo. Mas quero, sim, ter conexões com pessoas. Eu quero voltar a ter afeto com os brasileiros e brasileiras. Acho que isso é importante. Esse é o momento. Eu vejo agora esse fim de 2020 como esse momento de reconexão. E o Coutinho, para mim, era uma pessoa que fazia isso muito bem.

Seu livro traz uma conexão importante entre dois cineastas de épocas distintas, de abordagens diferentes dentro do cinema do documentário: o Eduardo Coutinho e o Cao Guimarães, este com um foco de destaque na obra. Como foi encontrar esse paralelo entre ambos?
É interessante essa conexão do Cao com o Coutinho porque, efetivamente, eles fazem filmes muito diferentes. Acho que o Coutinho, para mim, sempre foi um cara à frente do seu tempo. O Coutinho antecipava tendências. Era um cara da vanguarda, no sentido da origem da palavra, do francês avant-garde. A pessoa que ia na frente para levar bala. Levava o tipo primeiro, mas conseguia chegar primeiro aos lugares. Coutinho é esse cara. O Cao eu vejo mais como alguém atento ao zeitdgeist, ao tempo. O Cao é, para mim, o reflexo do momento, da nossa contemporaneidade. E eu coloco os dois no mesmo patamar. Cao está entre os maiores documentaristas brasileiros, e ainda que ele faça filmes bem diferentes do que o Coutinho fazia, eu sinto que há neles uma sensibilidade muito grande de tentar entender o que está acontecendo na nossa frente. O Cao tem um documentário bem interessante, um curta chamado “Da Janela do Meu Quarto”. Ele gravou da janela da casa dele, em BH. Nele, ele mostra duas jovens, duas crianças brigando na rua. E eu acho que esse filme fala muito do Cao como artista. Porque ele é alguém que está preocupado com aquilo que está da janela para fora. E não com aquilo que está da janela para dentro. Tanto o Cao quanto o Coutinho não estão preocupados com o próprio umbigo. Não é de se estranhar, por exemplo, se você entrar no Instagram do Cao Guimarães, você não vai encontrar nenhuma selfie dele. Nenhuma. O Coutinho não era um cada de redes sociais, mas, se fosse, imagino que também não encontraríamos uma selfie do Coutinho. Enquanto que eu vejo, às vezes, alguns colegas de profissão, alguns jornalistas, você entra no perfil da rede social do cara, e só tem selfie. Tem jornalista que faz selfie em velório. O velório do Gugu aqui, em São Paulo, teve um monte de jornalista fazendo selfie ao lado do caixão do Gugu. Isso, para mim, revela, para não dizer outra coisa, a podridão da alma humana. O que o Cao traz de mais belo nos filmes dele? É justamente esse olhar para fora da janela. E olhar para fora da janela não é algo só literal. Não é olhar para fora da janela apenas. É olhar para (enfático) fora da janela. Da minha janela. Essa coisa de que o documentarista contemporâneo precisa ter uma sensibilidade diferenciada é muito importante. Porque, se não, ele não vai captar o zeitgeist. Ele não vai captar o momento que a gente está vivendo. Então, quando a gente pega, por exemplo, o “Democracia em Vertigem”, que é o filme da Petra Costa que foi indicado ao Oscar de Melhor Documentário. Um monte de gente criticou. Eu tenho minhas ressalvas a esse filme. Eu acho que o “Elena” é muito melhor que o “Democracia em Vertigem”. Mas, pô, a Petra fala no início do filme quem ela é, de onde ela veio, o que ela pensa. E aí teve gente que veio falar: “Ah, mas ela é petista”. Mas ela falou que era de esquerda! Falou que se identificou com o PT durante muito tempo. Ela teve uma honestidade no filme dela que poucos cineastas têm. E ela nem era obrigada a isso. Ninguém é obrigado a explicar: “Olha, antes de começar o meu filme, eu preciso dizer quem eu sou, de onde eu vim, onde eu morei, em quem eu votei”. Mas ela fez isso no “Democracia em Vertigem”. Você pode não gostar do filme dela. Mas você não pode dizer que ela foi desleal com você. Por que? Porque ela diz no começo do filme. Ela diz de onde vem, o que pensa, o que não pensa, quem é a família dela, e tudo mais. Essa coisa da sensibilidade é muito importante. Nós estamos nesse momento de filmes cada vez mais subjetivos.

A subjetividade é algo que tem se destacado de maneira importante nos documentários recentes.
Sim. Tem um filme no (Festival) É Tudo Verdade que ganhou menção honrosa, chamado “Fico te Devendo uma Carta Sobre o Brasil”. É um filme que é uma experiência pessoal da diretora, a Carol Benjamin, com o pai dela. O filme é sobre o pai dela, o César Benjamin, que é uma pessoa que ficou presa pela ditadura entre os 15 e os 18 anos. Imagine um adolescente de 15 anos sendo preso pela ditadura militar, sendo torturado, dos 15 aos 18 anos. Ele passou o fim da adolescência dele, basicamente, sendo torturado nos porões da ditadura no Brasil. E ela resolve fazer um filme sobre a vida dela. Porque o pai, quando sai da cadeia, evidentemente não é mais a mesma pessoa. Ele não fala muito com ela sobre isso. O relacionamento do pai com a própria mãe, avó da Carol, mudou. E aí é interessante porque ela está falando dela. Ela narra o filme na primeira pessoa. Mas sua subjetividade faz com que nós enxerguemos no filme dela uma grande metáfora do Brasil. Ali, não é só a Carol falando do César, pai dela. Ali sou eu falando dos meus amigos e dos meus parentes que dizem “que preferiam viver na ditadura militar”. “Que na época não tinha criminalidade”. “Que na época da ditadura a vida era melhor”. Então, quando eu vejo o filme da Carol, que é um filme dela contando a história dela com o pai, e do pai com a avó, e do pai com a ditadura, na verdade a Carol está fazendo um filme sobre esse Brasil bolsonarista de 2020, em que as pessoas negam a realidade. Em que as pessoas têm uma certa “nostalgia” de algo que não existiu. Porque a vida não era boa durante a ditadura. Do ponto de vista econômico, o Brasil entrou numa das piores recessões da história. Acho que só foi pior na época do Brasil Colônia, na época em que Portugal mandava em tudo aqui. E, claro, você não tinha notícia de crime por tinha censura nos jornais. Uma pessoa falou pra mim: “Ah, mas eu não lia nos jornais notícias de crime”. Claro! Você lia notícia de receita de bolo, porque tinha censura. Não é porque o crime não existia. É porque o crime não era noticiado. Então, essa questão da subjetividade é muito importante para a gente entender como nos relacionamos com o mundo. Considerando que as vacinas vão chegar, considerando que a pandemia vai acabar, e considerando que vamos ter que sair do distanciamento social, eu acho que não vamos mais poder continuar vivendo nesse mundinho de condomínio fechado, de bolha. “Ah, estou vivendo na minha bolha”. Desculpa, mas se a gente continuar vivendo em uma bolha, vamos voltar para a cavernas. Porque o ser humano é um ser coletivo. Ele tem que viver em sociedade. Queira você ou não. Mas aí você pergunta para mim: “É legal viver em sociedade?” Não, não é, cara. Eu acho que tem muitas questões delicadas, hoje. Mas a gente precisa. Temos que nos relacionar. Não tem como a gente fugir disso. A não ser que você queira ir para a caverna. Aí o Cao tem um filme magnífico. Um documentário chamado a “A Alma do Osso”, que mostra um ermitão que vivia em uma caverna em Minas Gerais. Então, se a galera quiser continuar vivendo na sua própria bolha, vivendo nos condomínios fechados da vida, eu sugiro que assista esse documentário do Cao Guimarães. Quem sabe essas pessoas não se inspiram, saiam dos condomínios fechados e vão para as cavernas? Eu não quero isso para meu futuro, e acho que o Brasil não pode seguir por esse caminho.

No seu livro, você aborda a ideia dos elementos de ficção dentro do documentário. Poderia falar um pouco acerca desse tipo inserção dentro de uma proposta de abordagem da realidade?
No livro, eu defendo a ideia de que qualquer elemento de ficção (e a dramatização é um dos elementos) deve fazer parte do documentário. A Maria Augusta Ramos faz isso em “Juízo”, quando ela chama meninos das comunidades do Rio para representar os menores infratores, que, pela lei, pelo estatuto da criança e do adolescente, não podem aparecer em frente às câmeras. Então, ela contrata aqueles atores “não profissionais”, porque eles não viviam como atores. O “Juízo”, por isso, é menos documentário? Não acho que seja. Acho que há muitos documentários que trabalham em cima da reencenação. A Agnès Varda era uma pessoa que fazia muito esses documentários performáticos. “As Praias de Agnès”, um belíssimo documentário em que ela conta a própria história, é estruturado, montado a partir de performances. Há, claro, duas discussões éticas por trás da performance no documentário. A primeira é que você precisa deixar claro no filme de que aquilo é uma performance. De alguma maneira. Por exemplo, no caso do “Jogo de Cena”, do Coutinho, ele deixa isso claro. Não didaticamente, pois se você não prestar atenção direito, você vai passar batido. Tem gente que não percebe as atrizes no filme. Mas, enfim, você tem que deixar claro para o espectador que aquilo é uma performance. E você tem que considerar eticamente se aquela sua provocação em cima da realidade é eticamente aceitável. Um exemplo que o Caco Barcelos me deu quando fui estagiário na Globo. Ele chegou para mim e falou: “Olha, por favor, se um dia você estiver saindo aqui da Globo, avistar uma velhinha, e ver um ônibus se aproximando dela, não pegue uma câmera e ligue, esperando o ônibus atropelá-la e você ter aquele registro. Não faça isso, por favor. Por favor, grite. Vá correndo. Tente salvar aquela velhinha do atropelamento”. Essa é uma reflexão ética importante que o Caco Barcelos trouxe para mim e que até hoje eu a guardo. Porque, assim, a performance que vou criar, a provocação que vou fazer, eu vou alterar a realidade pelo menos naquele momento em que estivermos gravando. Isso é eticamente aceitável? Eu vou deixar uma velhinha ser atropelada por um ônibus para fazer um filme? Não, não vou. Então, acho que precisamos fazer essa reflexão. Acho que a performance é bem vinda. Ela é muito bem vinda. Tem histórias, tem narrativas que vamos contar, que você não tem material de arquivo. Você não tem depoimentos da época. Mas você precisa contar aquela história. O que você faz? Ou você faz uma animação, igual aquele “Valsa com Bashir”, um documentário feito a partir de animação, ou você faz uma performance. Não devemos ter preconceito com a performance em relação ao fato dela, supostamente, diminuir o documentário. Mas acho que precisamos ter essas duas reflexões éticas antes de adotar uma performance.

Entrevistando diversos nomes de gerações distintas para o seu livro, você teve dificuldades no desenvolvimento das conversas, no adentrar na personalidade de cada fonte?
Não considero dificuldade. A entrevista é um momento tenso para o jornalista. Eu, talvez, sempre fico mais tenso do que as pessoas que estou entrevistando. Mas acho que cada entrevista no livro teve sua particularidade. No caso, por exemplo, do Geraldo Sarno, eu mesmo brinco ali que ele é um cara indomável. Independente do que eu for perguntar, ele vai responder o que ele quiser. E isso é uma coisa interessante, porque só quem faz isso é político. Entrevistei o Maluf algumas vezes aqui, numa época em que ele tinha um certo status político em São Paulo. Eu fazia a primeira pergunta e ele vinha me abraçar, perguntava como estava minha mãe, meu pai, me servia um café. Uma vez ele me deu uma bala. Ele fazia o que ele queria, respondia o que queria. E o Geraldo é meio um cara indomável nesse sentido. Mas em momento nenhum eu quis colocar o Geraldo Sarno numa rédea. Eu tinha um roteiro de perguntas pré escrito para todos os entrevistados e entrevistadas. Mas o caso do Geraldo fugiu um pouco do roteiro. E não vejo nisso um problema. É igual a curva de um rio caudaloso. Ele vai para direita, para a esquerda, sobe, desce, tem uma queda d’água, um riachinho, depois volta a ter volume. Faz parte da vida. No caso da Maria Augusta Ramos, ela já estava na Holanda. Ela mora entre a Holanda e o Rio. Eu a entrevistei via skype, em uma época que eu nem conhecia o que era Zoom. Se fosse hoje, seria pelo Zoom, ou pelo google meets, que tem uma qualidade melhor. Mas a entrevista que eu fiz com ela deu quase três horas. Muito longa e bem interessante. Mas para colocar no livro foi difícil porque eu não quis cortar as entrevistas. Eu quis colocá-las na integra. Fiz poucos ajustes gramaticais. E no caso dela, ela pediu para ver a versão transcrita e deu uma sintetizada. Achei até válido, porque a entrevista tinha ficado muito maior que as outras. As outras tiveram, em média, 40, 50 minutos. A dela teve duas horas e meia. Foi bom ela ter dado essa sintetizada porque, senão, ficaria realmente muito grande. Mas acho que todas as entrevistas têm seus desafios. O Cristiano Burlan, por exemplo, estava com um pouco de pressa, pois estava trabalhando na finalização do seu último filme, que ele gravou com a Marcélia Cartaxo, chamado “A Mãe”. Então, ele parou a montagem para me encontrar em um café ali na Paulista, em São Paulo. E ele é aquele jeitão, dando sempre respostas curtas. O Burlan é o extremo oposto do Geraldo Sarno. O que o Geraldo fala em 20 minutos, o Cristiano fala em 20 segundos. Mas ele é assim. Então, eu tinha que ter essa sensibilidade de perceber que cada pessoa reage de uma maneira. A Paula Trabulsi deu uma entrevista junto com a produtora dela. A produtora, Sueli, gente boníssima, em alguns momentos colocava uma ou outra questão ali para complementar. Cada entrevista teve a sua característica. Na entrevista do (Eduardo) Escorel, ele estava de costas para a janela. Até menciono isso. E era uma manhã de sábado ensolarado no Rio. O sol estava bem na minha cara. Aquela luz do sol estava meio que me incomodando. E encarei aquilo até como uma metáfora. Eu estava diante de Eduardo Escorel. Então, acho que aquela luz me deixou meio que incomodado em relação a isso. Acho que cada entrevista tem a sua característica e acho que isso que é o gostoso. Se um dia eu for fazer uma entrevista e não sentir um friozinho na barriga, me aposento (risos). Toda entrevista tem que ter essas questões, essas particularidades. Se não, você esquece a importância daquele contato com aquela pessoa naquele momento.

– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.

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