por Adolfo Gomes
Sherazade mitológica, a protagonista de “O Barco” (2018), de Petrus Cariry, instiga a imaginação de seus ouvintes com uma narrativa permeada de lubricidade e violência. Um filme sem tempo definido, incrustado entre monumentais falésias e um mar viscoso. “Tentamos inventar um novo tempo e um novo mundo a partir do conto homônimo do grande escritor Carlos Emílio Corrêa Lima”, explica o diretor em entrevista ao Scream & Yell.
Mas para além da beleza plástica da obra e da sua atmosfera de encantamento, o realizador cearense desafia aqui inúmeros sortilégios: desde o lançamento da obra nos cinemas brasileiros em plena crise sanitária (e salas com ocupação restringida), até a renúncia ao regime tradicional de representação naturalista. Cariry filma o desejo de fuga, a utopia dessa embarcação náufraga – que é o Brasil – e sua re(des)construção ainda sem um horizonte definido, mas, especialmente, a placidez da fabulação.
Exibido na 43ª Mostra SP, em 2019, e com um percurso internacional bastante exitoso, “O Barco” chega enfim ao circuito de cinemas brasileiro num momento delicado de retorno ainda tímido às salas de exibição: “Não tenho expectativas e nem grandes apreensões, mas tenho uma intuição que se as pessoas forem ao cinema ver o ‘O Barco’, terão uma surpresa positiva diante de um cinema extremamente sensorial”, aposta Petrus. Confira a entrevista na integra.
A que atribui o seu cinema ser tão autônomo em relação às imposições contemporâneas de representação? Quero dizer que há algo quase corsário, para evocar a imagem do barco, na sua proposta de construção narrativa, que evita que o filme se torne circunscrito a um momento histórico e, já de nascença, confere ao trabalho, ao meu ver, mais longevidade… De onde vem essa pulsão arquetípica?
Não existe ninguém que possa viver sem conexões com o seu povo, com suas heranças do passado, com as suas projeções do futuro, arquetípicas ou não. Mas gosto de trabalhar o cinema na chave do “fantástico”. No caso de “O Barco”, tentamos inventar um novo tempo e um novo mundo a partir do conto homônimo do grande escritor Carlos Emílio Corrêa Lima. Dito isso, não me sinto preso a nenhuma imposição contemporânea, estou sempre aberto ao diálogo com o mundo e tenho procurado realizar um cinema livre de regras. Às vezes os caminhos são difíceis e tortuosos, mas que precisam ser trilhados de qualquer forma. Algumas pessoas me veem como um lobo solitário, mas não é assim, dialogo constantemente com outros artistas e técnicos que trabalham comigo. Aqui destaco, como exemplo, a parceria constante com Firmino Holanda e Rosemberg Cariry, no roteiro.
A alegoria se tornou uma espécie de tabu no cinema brasileiro depois da redemocratização do País. Parece que é urgente abordar os temas de frente, sem mediações. O resultado disso é a hegemonia do naturalismo. “O Barco”, pela sua natureza e atmosfera lírica, é alegórico. Essa opção ou transgressão é mais um gesto político, estético ou poético-libertário?
O homem é um animal simbólico e alegórico quando estabelece a linguagem. Há sempre que ter uma porta aberta para o sonho, para o inconsciente, para os significados simbólicos. Em “O Barco”, trabalhamos com a matéria do sonho, do inconsciente, da metáfora, do símbolo. O próprio barco já representa uma alegoria poderosa da possibilidade de romper com as prisões daquele mundo fechado, representa a liberdade do mundo além-mar. Da mesma forma que o livro enterrado representa o perigo, a subversão que vem através das palavras. Acredito que a alegoria fantástica foi a melhor saída para a narrativa do filme.
A exuberância da paisagem e do mar reforça o caráter atemporal da trama – a força da natureza aqui é uma âncora da ancestralidade. De que maneira as locações determinaram o tom e os caminhos de “O Barco”?
Eu sabia desde o início do projeto que a paisagem do filme “O Barco” teria que ter uma força quase sobrenatural na tela do cinema. Uma imagem que usasse de forma onírica a construção de um espaço através do tempo. Buscamos um lugar que fosse atemporal em todos os sentidos, e chegamos na belíssima Praia das Fontes, no Ceará, com suas formações rochosas quase lunares, falésias imensas e areia branca. Mais uma vez eu fiz a direção de fotografia do filme, não porque não reconheça o admirável trabalho de muitos colegas, reconheço e admiro, mas tão somente porque eu queria ter o maior controle dos enquadramentos, das luzes naturais e noturnas (revisando Rembrandt e La Tour), ou seja, da concepção visual que é fundamental na narrativa do filme. Tinha a ver com a minha obsessão pela luz de candeeiros e de velas, daí minha opção para que as sequências noturnas do filme fossem feitas apenas com luz natural. Os planos diurnos foram feitos basicamente no alvorecer e no crepúsculo – tínhamos paletas de cores fantásticas. Tínhamos poucas horas úteis por dia (o sol nasce e morre rápido), mas sinceramente valeu a pena, pois conseguimos um resultado visual que me deixou contente, como diretor e fotógrafo. Bárbara Cariry, a produtora executiva, possibilitou-me essas condições.
Há um desejo de fuga no filme, de atingir o alto-mar através da imagem e da palavra. As histórias da personagem central, que reconfiguram o cotidiano daquela vila de pescadores, são a um só tempo pessoais e fabulares. Me parece uma síntese do trabalho de realização artística. Considera que o cinema pode nos ajudar a atravessar esse período da cena sócio comportamental do País de tanto desalinho e falta de esperança? O que o motivou a optar pela linguagem audiovisual nessa travessia?
Hoje nós vivemos no Brasil um clima sufocante e já não enxergamos com facilidade uma saída possível. Vivemos um clima de instabilidade e medo. Acho que no filme, naquela pequena aldeia de pescadores, nem o cego vidente (Everaldo Pontes) consegue mais “enxergar” o futuro, apenas um jovem chamado letra “A” (Rômulo Braga), fustigado pelo desejo de mudança e pelo amor que lhe desperta Ana – a mulher misteriosa (Samya de Lavor), acredita que há algo mais na vida e rompe com aquela estrutura sufocante. A chegada do barco e de Ana tem um papel fundamental em mexer com o imaginário da comunidade, mas é no jovem que é despertada a liberdade.
“O Barco” fez um percurso internacional bastante exitoso. Agora chega aos cinemas brasileiros num momento delicado de retorno ainda tímido às salas de exibição. Para um filme que demanda, para sua melhor fruição e encantamento, o espaço tradicional da grande tela, qual a expectativa e maiores apreensões?
Sinceramente, para um filme mais alternativo e com uma linguagem peculiar, é difícil entrar no circuito comercial e se manter em cartaz por várias semanas. Seria necessária uma bela campanha de marketing, com uma escala maior. No atual momento, por conta da pandemia de Covid-19, temos consciência que essa missão se torna ainda mais complicada, mas por razões contratuais temos que lançar. Não tenho expectativas e nem grandes apreensões, mas tenho uma intuição que se as pessoas forem ao cinema ver o “O Barco”, terão uma surpresa positiva diante de um cinema extremamente sensorial (som e imagem) e acho mesmo que, nesse tempo difícil, o filme poderá ter uma leitura renovada. “O Barco” foi filmado no formato de tela scope e com som em 7.1, um trabalho precioso do Érico Paiva, responsável pelo desenho sonoro e pela mixagem, totalmente pensado para os cinemas.
– Adolfo Gomes é cineclubista e crítico filiado à Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine)