44ª Mostra SP: Documentário austero emerge das lembranças de Sobradinho

por Adolfo Gomes

Ponto de partida: confrontar as imagens. Mas não como quem engendra uma revisão ou pretende desfazer mitos. Impressiona a austeridade com a qual emerge das águas memorialistas das micros histórias individuais e do imaginário de uma época o documentário “Sobradinho” (2020), de Cláudio Marques e Marília Hughes.

Primeira estação: a existência prévia dos filmes institucionais, dos poéticos cinejornais do realizador baiano Leão Rosemberg, da oportunista novela de tevê (peça publicitária das instâncias de poder envolvidas na construção da barragem) e das fotografias pessoais e jornalísticas daqueles que submergiram – entre o idealismo e o cinismo – às disputas e discursos oficiais.

Narrativas: a voz em off onisciente e espirituosa que procura legitimar o volumoso processo de negociação das utopias e crenças alheias – evocando da arca de Noé à exumação dos mortos pré-diluvianos. Diante dessas evidências, o único gesto possível (honesto) é realçar as vozes fragmentárias, dialéticas e lúdicas dos remanescentes do projeto de construção da hidrelétrica. Contraposição afetuosa e sóbria.

Viagem: as assistentes sociais envolvidas no convencimento e deslocamentos das comunidades originárias das áreas a serem inundadas, são dispostas numa van como no caminhão de cinema itinerante de Wenders em “No decorrer do Tempo”. Elas conversam sobre juventude e desilusão, vínculos e conscientização. As imagens com as quais se deparam são do seu próprio passado. Tudo reenquadrado por Marques e Hughes com a verticalidade de uma incisão histórica – o horizonte pertence ao Rio São Francisco.

Ruínas: paisagem morta, mas habitada pelos espectros e filtros da fotografia do filme. Os tons ocres tão comumente utilizados para delimitar a densidade populacional e mapas demográficos prevalecem aqui para realçar as ruínas, a desocupação, a ausência. Contraplano dos frames kubrickianos (“2001”) que abrem o filme a anunciar uma odisseia, o que não deixa de ser uma promessa a se cumprir e cumprida pelos realizadores soteropolitanos.

Canto: é em torno da voz, sobre a voz que “Sobradinho” é edificado. A imagem é só o início da jornada. Dona Pequenita, por exemplo. Moradora da região, resistente e tautológica, ela reconhece a si e aos seus na tela de um laptop, que já não projeta , nem tem a amplitude das telas ao vento de outrora, experiências mambembes como “Bye Bye Brasil” e “Cabra Marcado para Morrer”. Egressa da grande enchente do sertão, nem uma monumental encosta de cimento é capaz de represar sua verve nobiliárquica e encantatória. Resta então, a Marques e Hughes filmá-la cantando, expressão privilegiada do entendimento das coisas. Fim da viagem.

De 22 de outubro a 4 de novembro de 2020, acontece a tradicional Mostra Internacional de Cinema em São Paulo —em 2020, em versão majoritariamente on-line e disponível para todo Brasil. Durante duas semanas, serão exibidos 198 títulos de 71 países em três plataformas (a Mostra Play, o Sesc Digital e a Spcine Play) e em dois cinemas ao ar livre: o Belas Artes Drive-In e o CineSesc Drive-in. O valor para cada sessão na plataforma será de R$ 6 e a maior parte das produções, porém, tem um limite de público de até 2.000 espectadores. Depois que essa quantidade de ingressos é vendida, o filme não fica mais disponível. 

– Adolfo Gomes é cineclubista e crítico filiado à Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine)

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