20 anos: “All That You Can’t Leave Behind”, U2

Texto base de um especial publicado na revista Rock Press de novembro de 2000.
Publicado também na terceira edição da revista online Viés Unisinos, dezembro de 2000.

Nota do editor: “All That You Can’t Leave Behind”, décimo álbum do U2 e um dos primeiros grandes discos vazados antes do lançamento na era Napster (junto a Madonna e Radiohead), completa 20 anos em outubro de 2020, e ganha uma reedição caprichada em 11 vinis ou 5 CDs incluindo o álbum remasterizado, b-sides, o registro em áudio do show em Boston (junho de 2001) e um último disco de remixes. O texto abaixo foi escrito no calor do lançamento do álbum, e nunca havia sido publicado no Scream & Yell. Confirmando a expectativa, “All That You Can’t Leave Behind” teve quatro singles e vendeu 12 milhões de  cópias no mundo, tornando-se mais um grande sucesso do U2.

por Marcelo Costa

Bono caminha lentamente, olha o palco, o telão, o estádio do Morumbi, e comenta: “Isso é excitante”. Segundos depois completa: “mas cansativo”. A “PopMart Tour” (1997/1998) era uma versão ampliada e melhorada da “Zoo TV Tour” (1992/1993), as duas turnês tecnológicas que os irlandeses levaram ao mundo nos anos 90 fazendo megashows em estádios ao redor do mundo e explorando com cinismo e consciência o status de rock star. Bono tinha razão de estar cansado. E, em meio ao cansaço, a promessa de que o próximo trabalho seria uma volta às origens, ao rock básico do início da carreira da banda.

Três anos se passaram desde o último trabalho oficial de estúdio, “Pop” (1997), e dois desde o último show da PopMart Tour, que aconteceu em março de 1998 em Johannesburgo, na África do Sul. E, enfim, o U2 está de volta. “All That You Can’t Leave Behind”, o novo álbum, que começou a ser trabalhado ainda em 1998, é a promessa do primeiro paragrafo concretizada. O décimo álbum de estúdio do quarteto irlandês é, sem dúvida, uma volta às origens da banda, sem firulas eletrônicas, sem programações sequenciadas, sem explorações tecnológicas. Apenas um trio básico de instrumentistas (baixo + guitarra + bateria) aliados a um vocalista carismático.

Se não houvesse a obsessão pelo detalhe talvez pudéssemos resumir o retorno de The Edge aos harmônicos (por vontade própria e da banda, ele havia sido aconselhado a evitar usar sua marca registrada na década de 90… por soar U2 demais, e tudo que o U2 90 mais queria era se distanciar do U2 80) como apenas um algo a mais em meio a tantos algo a mais que a indústria da cultura nos prega a toda hora, mas, felizmente, há o detalhe.

“All That You Can’t Leave Behind” tem tudo para ser um Greatest Hits. Todas as faixas tem potencial de single. Todas as faixas são mais U2 que qualquer coisa feita pela banda na década de 90. E todas as faixas estão carregadas daquele messianismo grandiloquente que fez multidões (cerca de 25 milhões de pessoas) levarem “The Joshua Tree” para casa, em 1987, e peregrinarem aos shows da banda desde então. São 13 anos e, pergunta básica ou obsessão pelo detalhe, como queiram, o que significa esse retorno do U2 as origens em um momento que o rock procura caminhos para o futuro?

A primeira coisa a ser dita é que “All That You Can’t Leave Behind” soa uma sequencia direta de “The Joshua Tree”. Parece que a banda ignorou toda a década de 90 (e álbuns maravilhosos como “Acthung Baby” e “Zooropa”) e fez um álbum para o público, e para si mesma. A primeira palavra que marca esse “back to basics” poderia ser “paixão”, pois Bono parece realmente apaixonado pela palavra e sempre a relaciona com o novo álbum. Inevitavelmente, é ela que melhor exemplifica o U2 na década de 80. Bono argumenta que depois do espetáculo que foram as últimas duas turnês, não havia outro lugar para ir a não ser voltar ao início, voltar à canção.

Como segunda palavra é possível sugerir, quem sabe, revolução. Sim, esse retorno é, também, uma volta aos ideais, aos sonhos e, principalmente, aos hinos. Aqui a banda traça sua ligação com o presente, com o real. O U2 já esteve na fronteira do futuro, procurando caminhos. Ficou um bom tempo afundado em experimentos eletrônicos e tirou dessa experiência tudo o que podia. O momento atual, para a banda, é de chamar a atenção do mundo para si próprio. Existe melhor modo de fazer isso do que lançar um álbum recheado de prováveis singles em potencial?

O primeiro single, “Beautiful Day”, abre “All That You Can’t Leave Behind”. A batida de bateria remete a “Acthung Baby” no começo, talvez uma das poucas lembranças desse álbum qye você ouvirá nos 49 minutos e 41 segundos do CD. Neste primeiro single, o U2 compila tudo aquilo que o faz ser uma das grandes bandas do planeta. Um vocal apaixonado, refrão pesado e aquela letra carola típica de Bono. O resultado foram 20 mil pessoas comprando o single… no primeiro dia. Top 1 no Reino Unido (onde a parada e a venda de singles é coisa séria). Bono diz não se preocupar com isso, mas festejou a entrada do single no primeiro lugar da parada britânica dizendo que era um belo dia…

O single “Beautiful Day” chegou às lojas dividido em três partes (dois CDs e um vinil de 12 polegadas) que demonstram o quanto o U2 anos 2000 quer fazer barulho. A primeira parte traz, de cara, duas faixas inéditas que não fariam feio em nenhum grande álbum da banda. “Summer Rain”, uma delas (a outra é “Always”), une violão pesado e uma guitarra cheia de efeitos. Bono canta excelentemente bem no refrão: “I lost myself in the summer rain”. A letra resume o espirito do álbum dizendo que quem fica parado, admirando a beleza, envelhece. Ou seja, é tempo de empunhar armas, novamente.

Em entrevistas, Bono tem reclamado da falta de politização das pessoas, dizendo que o ideal “paz e amor” tem pouco a ver com ele. Ele reforça dizendo que está faltando foco, direção, às pessoas. Seria megalomaníaco demais dizer que é este foco e esta direção que a banda traz no novo álbum?

Não, nem um pouco. Tanto que questionado sobre a demora do novo álbum, Bono respondeu que as canções já estavam prontas antes da banda entrar em estúdio. Era só entrar e gravar, mas eles estavam ocupados tentando salvar o mundo. É fato. Nos últimos três anos, o nome da banda tem sido, frequentemente, associado ao nome do Papa, da Anistia Internacional, de questões sobre a divida externa de países do terceiro mundo, e de outras atividades de cunho social e político. O guitarrista The Edge tem a definição correta para a postura do quarteto quando diz que, enquanto banda, o U2 é tão apaixonado por política quanto por rock and roll.

Mas não pense, caro leitor, que “All That You Can’t Leave Behind” é um álbum de canções políticas, no sentido tradicional do termo. O U2 fala de política mandando mensagens de “não desista”, “não deixe de sonhar”, “não deixe de amar”. A faixa dois, “Elevation” (terceiro single do disco), tem guitarra saturada, levada matadora de baixo e Bono querendo soar realmente como Bono só para dizer ao mundo que o amor nos faz flutuar, baby. Rock contagiante dos bons, essa é a política do U2.

“All That You Can’t Leave Behind” é composto por 11 faixas, das 20 que foram gravadas sendo que quatro delas, “Always”, “Summer Rain”, “Big Girls Are Best” e a cover de Johnny Cash, “Don’t Take Your Guns To Town”, foram liberadas como lados b de singles, e outras duas, “The Ground Beneath Her Feet”, com o U2 colocando melodia na letra presente no livro de Salman Rushdie, e “Stateless” saíram na trilha sonora do filme “O Hotel de um Milhão de Dólares”, de Wim Wenders, que traz Bono como roteirista (nota do editor: a essas se juntarão na reedição de 2020 “Levitate”, “Love You Like Mad” e “Flower Child”, lançadas anteriormente no box digital “The Complete U2“, que saiu em 2004).

Brian Eno e Daniel Lanois assina a produção com Steve Lilliwhite auxiliando em algumas canções. As melodias espelham o quanto o álbum foi bem produzido, procurando, ao extremo, evitar o exagero. Junto ao trio básico de instrumentistas (mais Bono, que toca guitarra e teclado – o segundo em “Stuck in a Moment You Can’t Get Out Of”), Brian Eno colabora com sintetizadores, programação, vocal de apoio e arranjo de cordas enquanto Daniel Lanois coloca uma guitarra adicional aqui e ali (há ainda metais de Paul Barret em “Stuck in a Moment You Can’t Get Out Of”). E só.

As linhas de guitarras de The Edge soam, ainda, extremamente inventivas, roqueiras. É impossível imaginar canções como “Elevation”, “Walk On” e “Kite” sem o toque do guitarrista. Mesmo nas canções em que, normalmente, a guitarra faria um papel coadjuvante, caso de “Stuck in a Moment You Can’t Get Out Of” e “When I Look at The World”, o guitarrista esbanja criatividade e estilo. Adam Clayton e Larry Mullen completam o instrumental com excelente execução – o contrabaixo chega, certas vezes, a ter posição de destaque no arranjo da canção, como em “In a Little While” e na faixa que encerra o álbum, “Grace”.

Bono, por sua vez, está cantando magnificamente. Chega a exagerar em alguns momentos (e não seria Bono se não exagerasse), como em “Wild Honey”, mas sempre parece estar cantando com o coração. Nas letras, ele investe em amor, milagres, paixão. “Quero dizer coisas que as pessoas estão pensando e não dizendo”, explica. Em “Peace of Earth”, ele diz, carolamente, numa citação de São Lucas, que Jesus escreveu na canção as palavras que estavam atravessadas em sua garganta: “paz na terra”. Em “Walk On”, faixa que traz o título do álbum, resume que você pode caminhar muito, mas o amor (ou a cicatriz do que um dia foi amor) é a única bagagem que você poderá levar.

Como um todo, esse é um disco que soa U2 a maior parte do tempo. Fogem do padrão o delicioso altcountry “Wild Honey” (“Nossa música mais alegre no disco”, opina Adam), as raízes negras norte-americanas presentes em “In a Little While” (um território que a banda visitou em “Rattle and Hum”, de 1988) e a gospel “Stuck in a Moment You Can’t Get Out Of”, sendo que a última (segundo single do disco) teve papai Mick Jagger e sua filha Elizabeth encorpando o coro da canção em estúdio, registro que ficou fora da mixagem final – mas cogita-se que pai e filha recebam um single de presente, especial, com a participação. “Stuck in a Moment You Can’t Get Out Of” (uma conversa fictícia em que Bono tenta demover Michael Hutchence do suicídio) traz uma curiosidade particular: Brian Eno apostou 100 libras que essa será reconhecida como a melhor música que o U2 escreveu. Ouvindo, podemos dizer que Eno perdeu a aposta, o que de maneira alguma quer dizer que a canção seja ruim.

Em meio a toda movimentação de um álbum inédito, é quase impossível fazer Bono falar do disco novo. Tudo que sai são meros rascunhos de opiniões e muitas brincadeiras. Numa delas, Bono disse que por pouco, muito pouco, o álbum não chegou às lojas com o título de “Actually Pop”, mas um trecho de “Walk On” foi a escolha final, não sem alguma resistência: “Todo mundo achou o título muito longo e nem um pouco memorável”, recorda Bono. “A reação de Larry foi: ‘Isso nunca vai caber em uma camiseta’”, sarreia o vocalista.

Retirar mais do que isso do vocalista é tarefa árdua. Sobram elogios aos shows do Radiohead e a voz de Thom Yorke, e reclamação contra o fato de ser uma celebridade. O mais sensato e sério que você ouve do vocalista, a respeito das letras, é que não é tempo de ser poético, é hora de levar realidade ao público. The Edge palpita sobre o novo disco dizendo esperar que ele os leve de volta, de alguma maneira, à realidade. E prefere pensar na banda, e não no mundo.

A “Elevation Tour” começa em março de 2001, em Miami, e a volta ao Brasil está marcada, inicialmente, para novembro de 2001 (nota do editor: a vinda acabou não se concretizando). Naquela caminhada sobre o palco do Morumbi, Bono dizia que sonhava em voltar a tocar em pequenos ginásios. Com certeza, esse desejo permanecerá um sonho. As canções do novo disco soam como hinos, são canções perfeitas para serem tocadas ao vivo, e cantadas por multidões. Então Bono terá que se contentar: não há jeito da banda abandonar os estádios. O quarteto pode deixar de lado toda produção tecnológica que caracterizou as duas últimas grandes turnês, mas não pode abrir mão de tocar para multidões. Não pode deixar tudo isso para trás. 

“All That You Can’t Leave Behind” faixa a faixa, por Marcelo Costa

– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina o blog Calmantes com Champagne

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