Entrevista: Alice Bag, uma punk safra 77

entrevista por Bruno Lisboa

Quando se fala das origens do movimento punk é comum pensar em bandas como os Ramones, os Sex Pistols ou o The Clash. Mas para além destas bandas icônicas, muitas pessoas, bandas e artistas também tiveram um papel importante na construção deste movimento, ainda que não tenham tido a mesma exposição e/ou reconhecimento. Uma dessas pessoas é Alice Bag.

Natural de Los Angeles, Califórnia, Alicia Armendariz (seu nome de batismo) acumula funções ligadas ao ativismo social, ao feminismo, a carreira de professora, e cantora. Sua trajetória no meio musical foi iniciada em 1977 quando fez parte da Bags, uma das primeiras bandas punks a emergir em LA, que, inclusive, aparece no icônico documentário “The Decline of Western Civilization” (1981), de Penelope Sheeris, sob o nome de Alice Bag Band. devido a problemas judiciais com sua ex-companheira de banda Patricia Morrison.

Enquanto esteve na ativa, entre 1977 e 1981, a Bags lançou apenas um compacto, o clássico 7 polegadas “Survive” / “Babylonian Gorgon”, além de figurar na compilação “Yes L.A.” (1979) com a faixa “We Don’t Need the English” e com “Gluttony” na trilha de “The Decline of Western Civilization” (1980). Em 2007, o selo Artifix Records colocou nas ruas “All Bagged Up … The Collected Works 1977-1980”, uma coletânea de material inédito da Bags com 19 faixas incluindo as quatro faixas lançadas oficialmente na época.

Após o término do grupo em 1981, Alice de dedicou a outros projetos musicais, mas decidiu se afastar do mercado musical durante os anos 90 para se dedicar a maternidade e a carreira de professora. Apesar disso, ela não abandonou universo da música e do ativismo por completo. Prova disso é a criação da comunidade feminina “Stay At Home Bomb”, no qual aborda restrições sociais impostas as mulheres tanto doméstica quanto musicalmente.

Em 2011, Alice retornou ao mercado cultural com seu primeiro livro, a autobiografia “Violence Girl – East L.A. Rage to Hollywood Stage: a Chicana Punk Story”, onde rememora sua infância difícil, sua entrada no movimento punk e a luta feminista. Já em 2015, a autora lançou sua segunda autobiografia “Pipe Bomb for the Soul”, onde fala sobre sua experiência enquanto ativista na Nicarágua nos anos 80.

Seu retorno a cena musical se deu em 2016 com um álbum solo autointitulado. De lá para cá, lançou “Blueprint” em 2018 e o mais recente, “Sister Dynamite”, em 2020. Nestes trabalhos ela segue transformando canções raivosas em manifestos em prol de uma sociedade mais justa.

Nesta inspiradora entrevista, a ativista fala sobre a pandemia, o movimento punk de ontem e de hoje, a influência do educador brasileiro Paulo Freire, seu processo de composição, a arte e o seu poder transformador de realidades, o movimento “Black Lives Matter”, o seu lado escritora, feminismo e o meio musical, eleições americanas e muito mais.

Em primeiro lugar, como você está neste momento de pandemia?
Estou bem. Os últimos dias foram um pouco loucos. Tivemos uma queda de energia de três dias e há incêndios ao nosso redor em Los Angeles. Há muita fumaça e cinzas no ar, mas minha família e eu estamos todos saudáveis, então não posso reclamar.

Você pode acompanhar o movimento punk em sua gênese quando fazia parte da banda Bags em 1977. Desde então, a cena passou por diversas transformações socioculturais, inclusive sendo protagonista em muitas delas. Então, qual é o lugar que o punk ocupa hoje na sociedade?
O punk é menos popular do que era nos anos 70 e 80, mas para aqueles que foram transformados pela cultura punk, os efeitos são duradouros. Acho que o punk pode ser uma experiência transformadora para as pessoas que dele participam. Definitivamente isso mudou a maneira como eu via meu lugar no mundo. Isso me ajudou a me ver como alguém que tem o poder de mudar meu ambiente. O punk me mostrou que eu fazia parte de uma comunidade, que estava ligada a uma ideologia de autossuficiência e autodeterminação. O tipo de punk com que cresci desafiava a autoridade e clamava pela verdade em oposição ao poder. Depois de aprender a questionar a autoridade, a falar, gritar ou cantar sua verdade, a unir forças e a agir em solidariedade com as pessoas que compartilham seus valores, você simplesmente não desaprende isso.

Sou professor e como você tenho a pedagogia do oprimido, de Paulo Freire, como algo essencial para o universo da educação e seu poder transformador. Por mais que conheçamos e defendamos seus ideais, há quem o critique, especialmente aqueles que defendem as ideias liberais pró capitalistas. Como você teve acesso à obra de Paulo Freire e como isso influenciou na sua vida?
Comecei a dar aulas no ensino fundamental em meados dos anos 80. Naquela época, eu fazia pós-graduação em uma universidade local, e um dos meus professores me apresentou o livro “Pedagogia do Oprimido” (1974). Logo depois, Paulo Freire falou em nosso campus. Havia outra professora da minha escola que também foi ouvi-lo falar e depois nos conectamos e discutimos o impacto da visita de Freire. Ela me contou que Freire havia sido consultado pelos sandinistas para ajudar a desenvolver seu programa de alfabetização. Eu estava ensinando crianças a ler e muitas delas eram da América Central, então decidi ir para a Nicarágua e ser voluntária em seu trabalho de alfabetização. Foi uma experiência reveladora que narrei em meu livro “Pipe Bomb for the Soul.”

Seu último álbum, “Syster Dynamite” (2020), reúne canções que são furiosas, mas que direcionam essa energia para algo positivo, como a autoafirmação. Então, como é o processo de criação para você? Qual a importância de ser capaz de transformar algo negativo em positivo?
Aprender a redirecionar minha raiva e frustração foi um processo muito longo. Quando eu era mais jovem, esses sentimentos costumavam se manifestar com comportamentos destrutivos, como brigar e usar drogas ou álcool. Descobri que escrever e fazer música poderia me ajudar a canalizar minhas emoções e me conectar com outras pessoas que compartilharam meus sentimentos, mas só muito recentemente comecei a trabalhar para mudar conscientemente minha perspectiva lírica de negativa para positiva. Por exemplo, no “Sister Dynamite” tenho uma música chamada “Gate Crasher”, que é uma música inspirada por imigrantes e quebradores de regras que movem a sociedade para a frente. Meses antes de escrever “Gate Crasher”, eu estava escrevendo uma música sobre os DREAMers: estudantes sem documentos aqui nos Estados Unidos que frequentam a escola desde a infância. O atual governo estava ameaçando seu status legal, ameaçando-os com deportação. Fiquei muito irritada, especialmente porque eu costumava ensinar crianças imigrantes, e sabia das lutas e determinação que essas crianças e suas famílias precisam para ter acesso a uma educação que possa ajudá-los a realizar seus sonhos. Comecei a escrever uma música sobre estes DREAMers, mas quando coloquei meu coração nela, o que estava fluindo de mim foi uma melodia lenta e melancólica e, embora tivesse uma melodia bonita, a mensagem melancólica não era o que eu queria transmitir. Deixei a música de lado e uma ou duas semanas depois escrevi “Gate Crasher”, uma música mais desafiadora e comemorativa. “Gate Crasher” é, parcialmente, sobre imigrantes sem documentos, mas também sobre mulheres, queers ou qualquer outra pessoa cujas ações ou existência desafiem o status quo. O sentimento da música é sobre ser imparável e acho que a positividade a torna muito mais forte do que minha música original sobre os DREAmers.

Hoje o mundo está sendo governado por ideais excludentes de extrema direita que ignoram as minorias. Como ativista, você acredita que o grande poder de mudança reside nas artes em geral?
O poder está ao nosso redor e dentro de nós – tudo o que temos que fazer é controlá-lo. Temos poder sobre nossas próprias ações. Temos o poder de iniciar discussões com amigos, familiares e colegas de trabalho. Temos o poder de iniciar o diálogo com pessoas que discordam de nós. Artistas, músicos, dançarinos e pessoas que se comunicam de maneiras que não são estritamente verbais podem frequentemente atingir as pessoas e abordar assuntos que são difíceis de se comunicar com palavras. Posso apreciar, sentir e compreender o trabalho de alguém que pode não falar a mesma língua que eu ou ter a mesma formação. Se houver alguma verdade e humanidade naquilo, ao experimentá-lo isso nos conectará. As palavras também podem nos conectar, mas em alguns casos elas nos separam porque a maneira como falamos pode ser codificada com suposições sobre raça, gênero, classe, etnia, etc. Música e arte visual podem ressoar no corpo de uma pessoa e por isso acho que processamos a arte de uma forma mais imediata e pessoal. A arte também pode acessar diretamente nossas emoções e são as emoções que impulsionam nossas ações. Então, sinto que a arte é um grande acelerador se você quiser deixar as pessoas entusiasmadas e motivá-las a agir.

Em “White Justice”, canção de sua autoria presente em “Blueprint” (2018), você fala sobre a supremacia branca na sociedade. Sei que essa canção foi inspirada nos movimentos civis dos anos 70, mas, infelizmente, o preconceito contra o povo negro continua. Como você vê as manifestações de “Black Lives Matter” nos EUA? Você acredita que eles podem construir uma nova realidade racial?
Sim! Eu definitivamente acho que o movimento “Black Lives Matter” está na vanguarda da criação de mudanças tão necessárias. Acredito que quando alguém está lutando por uma mudança social, é importante permanecer focado na mudança ao longo do tempo, porque temos que mudar a mente das pessoas, não apenas ter como objetivo restringir suas ações. Temos que pensar sobre o pacto que temos uns com os outros como sociedade e nos perguntar o que devemos uns aos outros e o que esperamos uns dos outros. O que temos não são apenas algumas pessoas racistas, mas um sistema quebrado que precisa ser completamente reimaginado. É uma tarefa enorme, mas acredito que a mudança já começou.

Para muitos, revisitar o passado pode ser um exercício assombroso, para outros uma dádiva. Nesse sentido, como foi o processo de composição de sua autobiografia “Violence Girl”?
Escrever minhas memórias foi uma jornada introspectiva que me ajudou a me entender melhor, me forçou a vivenciar e lidar com o trauma do meu passado que eu havia tentado suprimir. Houve momentos em que eu estava me lembrando de algo e ria alto, mas também havia momentos em que uma lembrança me fazia chorar e me sentir fisicamente doente. Houve eventos na minha infância que não processei totalmente e que me impactaram negativamente mais tarde na vida. Eu realmente não entendia minhas ações até que as escrevi e pude olhar para minha infância a partir da distância segura da idade adulta. Recomendo escrever, especialmente para quem está se envolvendo em um comportamento destrutivo que não entende.

Há alguns anos li a biografia de Kim Gordon (“Girl in a Band“) e no livro ela fala, entre outros assuntos, sobre a opressão vivida pelas mulheres, em um mundo onde o patriarcado está erroneamente presente. Para você, que está há muito tempo no cenário musical, tem visto uma evolução em relação à presença feminina no universo das artes?
Eu vejo uma evolução. Há muito mais mulheres ocupando espaço e marcando presença. Do meu ponto de vista, vejo o punk como um fator importante nisso. O punk é uma afirmação do poder do espírito humano, é a libertação das expectativas da sociedade e, como tal, é um convite aberto a todos aqueles que carecem do privilégio de antecedentes, de formação, de acesso a dinheiro ou recursos. A cena punk foi feita para e por mulheres.

A cena punk brasileira é rica em exemplos de bandas femininas de ontem e de hoje. Esse movimento segue crescendo e é perceptível cada vez mais a presença feminina neste universo. O que você tem ouvido? E ainda: como veterana, qual é a mensagem que você tem para quem está começando na cena?
Posso pensar em tantas bandas femininas mais do que posso nomear aqui. E a maioria das bandas punk que escuto tem mulheres. Alguns das minhas favoritas agora são Fea, Amyl e The Sniffers, Special Interest, Fatty Cakes e The Puff Pastries, Bacchae e Squid Ink. Acho que faz parte do DNA do punk procurar por algo que está quebrando o molde, algo que é novo e excitante e não apenas seguindo a fórmula de uma boy band fofa. Mas para não dizer que não posso apreciar isso, gosto de assistir a um vídeo da Shinee (banda de kpop) de vez em quando, mas o que realmente me inspira é a energia crua de mulheres, queers e pessoas de cor, envolvendo um público com ideias provocantes e perspicazes que balançam meu corpo e minha mente.

Sei que em tempos de coronavírus é difícil pensar em planos futuros, mas esse período tem sido de grande reflexão em várias esferas da sociedade. Como você viu esse momento? E ainda: você acredita que a onda de protestos nos EUA pode interferir na reeleição de Donald Trump?
Vou ser honesta com você, estou com medo. Tenho medo de não termos eleições justas. É preciso cada grama de foco e determinação para permanecer positivo, mas estou tentando. Precisaremos de uma vitória esmagadora nas urnas, qualquer coisa marginal vai ficar enviesada em favor do atual governo. Nós (e com isso quero dizer a humanidade, não apenas os estadunidenses) precisamos de líderes que estejam comprometidos em salvar nosso planeta do caminho devastador em que está atualmente. Trump não é essa pessoa.

– Bruno Lisboa  é redator/colunista do O Poder do Resumão. Escreve no Scream & Yell desde 2014.

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