Boteco: Quatro países, oito cervejas

por Marcelo Costa

Abrindo uma nova sequencia de cervejas e países pela pequena vila de Vichte, na região dos Flanders belgas, próxima de Gent, com duas variações da mítica Duchesse De Bourgogne, da Brouwerij Verhaeghe. A primeira é a Duchesse Cherry, lançada em agosto de 2018. Trata-se de uma Flanders Red Ale maturada em barris de carvalho com cerejas inteiras de Limburg – na proporção de 20 quilos para cada 100 litros de cerveja. De coloração âmbar avermelhada com creme esbranquiçado avermelhado de ótima formação e retenção, a Duchesse Cherry exibe o tradicional aroma avinigrado pungente acompanhado de frutas vermelhas, madeira, maçã e marzipã. Na boca, acidez e cereja chegam juntas no primeiro toque, mas a primeira aumenta sua intensidade na sequencia, em meio a notas amadeiradas, de frutas vermelhas e avinagradas. É tudo extremo, mas adorável – e levemente mais suave do que na versão original, com a cereja “amaciando” o conjunto para o bebedor, que ainda assim é bastante intenso. A textura é frisante suave. Dai pra frente, uma cerveja incrível, que soa menos provocante e mais confortável do que a maravilhosa versão original. No final, avinagrado, adstringência leve e cereja, sensações que retornam no retrogosto, maravilhoso.

A segunda cerveja da turma da Brouwerij Verhaeghe, fundada em 1885, é a versão Chocolate Cherry da Duchesse, que mantém a proporção de 20 quilos de cerejas inteiras a cada 100 litros de cerveja e ainda recebe adição de extrato de cacau. De coloração âmbar escura avermelhada com creme esbranquiçado avermelhado de ótima formação e retenção, a Duchesse Chocolate Cherry apresenta um aroma com chocolate chamando a atenção em primeiro plano sobre uma base de calda de cerejas e (aparência de) muita doçura. Na boca, doçura achocolatada bem leve e rápida no primeiro toque seguida de cereja e acidez e, então, um delicioso azedume envolvido em calda de cereja e chocolate, ambos sutis. Há, ainda, percepção sutil de madeira. A textura é frisante suave. Dai pra frente, outra cerveja incrível, que soa ainda melhor do que a versão com cerejas, chegando próximo do brilho da versão original. No final, azedume leve, cereja e chocolate. No retrogosto, azedume suave, balsâmico distante, chocolate e cereja.

Da Bélgica para Londres, na Inglaterra, com uma cerveja feita às margens do Rio Tamisa, a Fuller’s Past Masters 1909 Pale Ale, 10ª receita revisitada dos arquivos históricos da cervejaria inglesa. “Esta receita combinou melaço e açúcar com cevada maltada, lúpulos Goldings e o fermento exclusivo da Fuller”, conta o release no site oficial. De coloração âmbar com creme bege bem clarinho, quase branco, de formação e permanência exemplares, a Fuller’s Past Masters 1909 Pale Ale apresenta um aroma suave, delicadamente maltado com sugestão de mel de laranjeira leve e frutado que remete a pera, pêssego e abacaxi em calda. Na boca, doçura frutada equilibradíssima no primeiro toque (pera em destaque) que se segue com doçura de mel suave, floral, frutado, tosta leve e absolutamente nada dos 8% de álcool. O amargor é baixo para os 40 IBUs, e a textura é suave. Dai pra frente, uma cerveja elegantíssima, um tiquinho menos doce seria perfeita, mas, do jeito que está, ainda é uma baita cerveja (inglesa). No final, doçura, pera, pêssego e álcool quase imperceptível. No retrogosto, elegância e felicidade.

A outra Fuller’s também é da linha Past Masters, mas salta sete décadas para estacionar na cervejaria em 1981, no primeiro dia em que o lendário mestre cervejeiro John Keeling debutava nas panelas – ele se aposentou em 2018. Trata-se de uma Extra Special Bitter (ESB) de coloração âmbar com creme bege claro de formação e permanência exemplares, a Fuller’s Past Masters 1981 ESB apresenta um aroma com notas maltadas deliciosas (caramelo suave) ao lado de sugestões de frutas secas (tâmaras e uva passa). Há, ainda, percepção de tosta e discreta remissão a casca de pão doce. Na boca, doçura frutada incrível no primeiro toque (sugestão de mel de laranjeira em destaque) seguido de leve percepção de tosta, casca de pão doce, floral e amargor bem baixinho, 30 IBUs que parecem 10. A textura é suave e cremosa e, dai pra frente, uma ESB bastante saborosa, com profundidade, álcool comportado (5.5% que nem se percebe) e final tostado. No retrogosto, casca de pão doce, caramelo e leve frutado.

 

Do Brasil para Paso Robles, na Califórnia, com a primeira de duas Firestone Walker, a Sucaba, uma English Barley Wine que descansa durante 12 meses em barricas que antes maturaram Bourbon. De coloração âmbar acobreada turva com creme bege claro de boa formação e retenção, a Firestone Walker Sucaba 2019 apresenta um aroma bastante adocicado, com muita sugestão de mel, caramelo, mapple syrup e toffee numa paleta que ainda acrescenta notas amadeiradas e, claro, Bourbon. Na boca, o primeiro toque é dominado pela doçura melada em barricas e Bourbon, ou seja, caramelo, álcool (11.3% perceptíveis, mas muito bem inseridos) e madeira. Na sequencia, um English Barley Wine confortável e altamente alcoólica, ainda que não se perceba. Não há nada de amargor e a textura entrega álcool e doçura intensa. Dai pra frente, uma Barley Wine incrível, amadeirada, “abourbonzada” e extremamente alcoólica – ainda que, num primeiro momento, o álcool não incomode tanto. Dai pra frente, uma English Barley Wine alcoólica e deliciosa, com muita sugestão de caramelo, toffee e mapple syrup. No final, caramelo, álcool sutil e Bourbon. No retrogosto, álcool sutil, mel e Bourbon suave.

A segunda Firestone Walker é a Parabola, uma impressionante Russian Imperial Stout de 13% de álcool cuja receita utiliza aveia, nove tipos de malte e os lúpulos Hallertau e Zeus, passando depois por 12 meses de maturação em barricas que antes abrigaram Bourbon (a versão 2019, 10ª edição da cerveja, foi maturada em barricas do Bourbon Heaven Hill). De coloração marrom escura, praticamente preta, e creme bege escuro de boa formação e retenção, a Firestone Walker Parabola 2019 exibe um aroma que combina, de maneira marcante, baunilha e Bourbon, em primeiro plano, abrindo espaço, ainda, para sugestões de chocolate amargo intenso, defumado bastante sutil, torra e frutas escuras, com álcool impressionantemente sutil. Na boca, doçura de baunilha no primeiro toque abrindo as portas para um conjunto (de chocolate) amargo, 60 IBUs justíssimos, mas também com presença de torrefação, frutas escuras, melaço e mais baunilha. A textura é sedosa e picante de álcool (13% dançando sobre a língua). Dai pra frente, uma RIS Barrel Aged exemplar, picante, amarga, doce, complexa, profunda. Um show dentro de uma garrafa. No final, uma brincadeira deliciosa de doce e amargo, alternados, com secura. No retrogosto, calor alcoólico, chocolate amargo, baunilha, torrefação, estrelas. Uou!

Da Califórnia para o Rio de Janeiro com duas variáveis (de seis!) da badalada Black Anthrax, Russian Imperial Stout potente da cervejaria Quatro Graus. Abrimos o passeio com a versão base, safra 2019, cuja receita recebe adição de baunilha em favas, café em grãos e chips de carvalho francês durante a maturação, e alcança 15.4% de álcool. De coloração marrom extremamente escura, praticamente preta, com creme bege de baixa formação, quase uma linha fina, e nenhuma retenção. No nariz, chocolate amargo, chocolate ao leite, baunilha e café surgem assim que a garrafa é aberta após retirada da geladeira. Alguns minutos depois, com leve aquecimento, o álcool aparece marcante no nariz, e depois se acomoda entre as demais notas. Madeira não aparece. Na boca, doçura achocolatada no primeiro toque (e nada de álcool) seguida de remissão a chocolate ao leite e baunilha, com café e chocolate amargo bastante sutis. A doçura se sobrepõe ao amargor, e a textura, como é de se esperar, é licorosa, com o álcool picando a língua de maneira média. Dai pra frente, uma baita RIS alcoólica para aquecer dias frios com muita sugestão de chocolate, pouco café e bastante álcool. No final, amarguinho de torra e picância de álcool. No retrogosto, café, licor de chocolate, baunilha e calor.

A segunda Quatro Graus Black Anthrax mantém a mesma base de carvalho e café da anterior, mas recebe ainda mais baunilha em favas do que a versão base. Apresenta a mesma coloração marrom extremamente escura, praticamente preta, com creme bege de baixa formação, quase uma linha fina, e nenhuma retenção, a Quatro Graus Black Anthrax Vanilla 2019 apresenta um aroma com baunilha mais destacada, trazendo algo de licor de chocolate, além da tradicional pegada de café, ainda que mais sutil do que na anterior – assim como nela, a madeira não dá as caras. Há, ainda, sugestão de melaço e leve percepção dos 15.4% de álcool, mais destacado quando a cerveja aquece, sem assustar. Na boca, doçura achocolatada no primeiro toque (e nada de álcool) seguida de remissão a chocolate ao leite e mais baunilha – ainda que, num pensamento rápido, pareça a mesma coisa da anterior –, com café e chocolate amargo bastante sutis. A doçura continua se sobrepondo ao amargor, e a textura, como é de se esperar, é licorosa, com o álcool picando a língua de maneira média. A diferença surge mais na frente, com a baunilha preenchendo a boca com mais intensidade. No final, baunilha e picância de álcool. No retrogosto, licor de chocolate, baunilha e calor.

Duchesse Cherry
– Produto: Flanders Red Ale
– Nacionalidade: Bélgica
– Graduação alcoólica: 6.8%
– Nota: 4.44/5

Duchesse Chocolate Cherry
– Produto: Flanders Red Ale
– Nacionalidade: Bélgica
– Graduação alcoólica: 6.8%
– Nota: 4.48/5

Fuller’s Past Masters 1909 Pale Ale
– Produto: English Pale Ale
– Nacionalidade: Inglaterra
– Graduação alcoólica: 8%
– Nota: 3.75/5

Fuller’s Past Masters 1981 ESB
– Produto: Extra Special Bitter
– Nacionalidade: Inglaterra
– Graduação alcoólica: 5.5%
– Nota: 3.48/5

Firestone Walker Sucaba 2019
– Produto: English Barley Wine Barrel Aged
– Nacionalidade: EUA
– Graduação alcoólica: 11.3%
– Nota: 4.07/5

Firestone Walker Parabola 2019
– Produto: Russian Imperial Stout Barrel Aged
– Nacionalidade: EUA
– Graduação alcoólica: 13%
– Nota: 4.80/5

Quatro Graus Black Anthrax 2019
– Produto: Russian Imperial Stout
– Nacionalidade: Brasil
– Graduação alcoólica: 15.4%
– Nota: 4.40/5

Quatro Graus Black Anthrax Vanilla 2019
– Produto: Russian Imperial Stout
– Nacionalidade: Brasil
– Graduação alcoólica: 15.4%
– Nota: 4.02/5

Leia também
– Top 2001 Cervejas, por Marcelo Costa (aqui)
– Leia sobre outras cervejas (aqui)

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