Entrevista: Carla Villa-Lobos e “MC Jess” no Festival de Cinema LGBTI

entrevista por João Paulo Barreto

Formada em Audiovisual pela UFRJ, Carla Villa-Lobos tem sete anos de experiência como assistente de direção em séries de TV, longas e curtas-metragens. Dirigiu dois curtas-metragens que perpassam as temáticas “ser mulher e LGBT+ na sociedade”. O primeiro, “Mercadoria” (2017), foi selecionado para mais de 50 mostras e festivais brasileiros e internacionais. O segundo curta-metragem é “MC Jess” (2018), selecionado para a 5ª edição do Festival Internacional de Cinema LGBTI (www.votelgbt.org/flix), que começa na sexta-feira (28) e vai até domingo (30).

Desta vez, o Festival Internacional de Cinema LGBTI será inteiramente online e gratuito pela plataforma LGBTFLIX, que já reúne 250 filmes de temática LGBT+. Neste ano, 14 filmes de diversos países compõe a mostra passando por temas diversos, como intersexualidade, transição de gênero, cultura drag, velhice entre os LGBTs, vidas na periferia e visibilidade lésbica. A curadoria da Mostra trouxe um leque de obras importantes do Brasil e de outros países. Curtas e longas metragens que abordam questões densas, mas também não deixam de trazer leveza e esperança.

Carla Villa-Lobos traz para seus dois curtas metragens uma eficiente mescla entre documentário e ficção que permite ao espectador adentrar em narrativas que buscam discutir importantes questões sociais relacionadas a mulheres em situação de risco, além de refletir acerca de conflitos enfrentados por pessoas LGBTI perseguidas por sua orientação sexual. No primeiro, “Mercadoria” (que você pode assistir no final do texto), o foco está na realidade áspera da prostituição. No segundo, “MC Jess”, que será exibido no festival, essa aspereza oriunda do real cede espaço para um pouco de poesia, versos proferidos com a segurança de quem sabe o que viveu e quais são as cicatrizes que teimam em permanecer entreabertas.

No sentido de reflexão de uma sociedade menos opressora e calcada em uma hipocrisia religiosa, familiar e moralista, um dos mais impactantes e esperançosos trabalhos selecionados pela curadoria do é justamente “MC Jess’’. Para Carla Villa-Lobos, essa questão da família “é uma coisa muito intrínseca à vivência LGBT. A fase inicial da aceitação é um ponto muito marcante, e que vai dizer muito que individuo essa pessoa irá se tornar. Se ela estiver bem com a família, ela vai viver a sexualidade dela de uma forma. Se a família já não lida bem com isso, vai ser outra experiência. Eu quis trazer ao filme esse lugar da família também para pensarmos sobre isso. Sobre essa menina que saiu de casa porque o pai não conseguia lidar”, explica a diretora e roteirista.

Na figura de uma poetisa e performer vivida pela rapper Carol Dall Farra, que sobrevive como vendedora ambulante em trens do Rio de Janeiro, mas se realiza na leitura de suas inspiradas rimas e cadências poéticas, “MC Jess’’ traz essa reflexão citada dentro uma possibilidade de otimismo para a realidade de quem, além de sofrer preconceito familiar por ser lésbica, precisa ultrapassar as barreiras sociais e econômicas de sua existência como pessoa negra e vinda da periferia.

“Enquanto realizadora LGBT, o que eu tenho percebido muito nas mostras é justamente a gente estar falando também não só das personagens LGBTs, mas, também, das outras intersecções que essas pessoas têm”, explica Carla acerca da importância do Festival Internacional de Cinema LGBT. Sobre o processo de construção de “MC Jess”, Carla conversou com o Scream & Yell. Confira o papo abaixo.

É palpável uma naturalidade de Carol Dall Farra, rapper e poetisa, dentro do personagem da protagonista de “MC Jess”. À época, esse era o primeiro trabalho dela como atriz. Como se deu essa aproximação sua com ela e o convite para atuar, mesmo não sendo atriz profissional?
Em 2017, que foi quando comecei a pensar sobre o filme e construí-lo, era um ano que estava tendo um boom muito grande das apresentações de Slam, que são essas poesias que geralmente acontecem em espaços públicos. Ou quando não são espaços públicos, são locais fechados, mas os eventos são abertos para todos que quiserem declamar as suas poesias autorais. Nesse ano, eu estava frequentando esses eventos por um interesse mais pessoal. Eu gostava muito de acompanhar a cena cultural que estava rolando no Rio de Janeiro. Fui percebendo que a presença feminina, principalmente de mulheres negras, eram muito forte nesses eventos. Eram espaços em que elas estavam se sentindo muito confortáveis em contar experiências próprias. E aquilo foi me tocando muito. Fui querendo fazer alguma coisa que não só documentasse, mas que também, de alguma forma, colocasse outras experiências que me atravessam junto nesse filme. Eu sempre quis trazer um pouco aos filmes que faço questões relacionadas à sexualidade das mulheres. E eu percebia, também, que existiam poucos filmes onde a protagonista era lésbica. Lésbica e negra, então, eu não via nos festivais de cinema. Fui pesquisando esses eventos, acompanhando algumas poetas, e a Carol foi uma dessas que descobri. Foi através de uma amiga que me recomendou um vídeo da Carol. Ela tinha declamado esse vídeo no “Slam das Minas”, que é um coletivo do Rio de Janeiro, mas que tem em outros lugares do Brasil, também. Assisti ao vídeo dela, e, logo de cara, achei muito impactante e falei: “Caramba, tenho que conhecer essa menina”. Eu já tinha a ideia do filme na cabeça, mas não tinha estruturado um roteiro, só que eu já sabia que eu queria essa protagonista jovem, negra, lésbica, e queria que o filme se passasse no território da Favela da Maré, que, durante a minha adolescência, frequentei muito porque meus amigos moravam lá, e eu morava ali perto. Então, tinha essa relação pessoal para mim, também, do território da periferia do Rio de Janeiro. Aí fui conhecer a Carol, a gente conversou, e ela me contou várias coisas da vida dela que se relacionavam com um pouco do que eu queria contar no filme. Eu também queria trazer um pouco da sexualidade em relação com a religião, porque foi uma percepção durante a minha juventude, de ter vários amigos que frequentavam grupos jovens de igreja e que foram afastados quando se entenderam enquanto dissidentes nas orientações sexuais. Então, muitas coisas que já estavam no meu imaginário e que eu queria trazer no filme batiam com a vivência da Carol Dall Farra. Então, a convidei. Ela nunca tinha atuado, mas como ela é poetisa e performer, tinha um interesse artístico de experimentação. Ela topou, e a gente começou a construir juntas. Levei um primeiro roteiro e ela adicionou coisas delas. Por exemplo, a poesia final foi ela quem ajudou na construção. Outras situações que eu perguntava como a gente poderia traçar e tal. Teve esse processo de ensaios que foi muito rico para as cenas. Mas o filme, eu o descrevo como ficção. Porque, ali, não é a Carol. É realmente a Jess, que tem muitas intersecções e muitos cruzamentos com a vida da Carol. Mas não é baseado na vida dela. Mas foi uma escolha, realmente, trazer uma atriz que tivesse passado por coisas semelhantes. Que fosse poetisa, que tivesse vindo de periferia. Eu queria trazer essa confusão de linguagem. O que é ficção, o que é documental, eu queria causar um pouco isso. E eu achava que a atriz poderia me ajudar com isso. A atriz tendo uma experiência e essas vivências, quanto, também, na linguagem da câmera, da arte, e na escolha de colocar depoimentos que aí são partes documentais, mesmo. Depoimentos de meninas que também estão na cena do Slam. E trazem na poesia questões pessoas, questões de sexualidade, questões de raça e de classe social.

O desenvolvimento dessa proposta hibrida na inserção de depoimentos reais junto com a ficção na vida da protagonista se apresentou como na escrita do roteiro?
Quando escrevi o roteiro, queria já trazer essa mistura de documentário e ficção justamente para tentar atingir uma linguagem meio hibrida. No meu filme anterior (“Mercadoria”, de 2017) tento brincar um pouco com isso, também. Misturar umas entrevistas e uma parte ficcional. Só que, lá, as entrevistas não eram documentais. Eram ficcionais. Forjando algo real. Gosto muito de fazer isso do próprio cinema. A própria ficção tem coisa de realidade ali e o próprio documental tem coisas de ficção. A parte das entrevistas, eu quis fazer como pesquisa para o roteiro, para me ajudar a chegar a uma veracidade da realidade da Jess. Eu tinha pensado em inserir aquelas entrevistas nos créditos, relacionando à vivência da Jess, e falando que existem muitas Jess por aí. As entrevistas viriam assim no final. Mas, no processo de montagem, eu fui sentindo uma necessidade de experimentar mais do que colocar à parte. Eu fiquei sentindo que poderia ser interessante realmente quebrar com uma linearidade que estava da história, e trazer esses momentos. Até trazer um certo estranhamento ao público, deles ficarem se perguntando: “Então, espera, tudo é documentário? Ou não?” Eu achei que, trazendo as entrevistas para o meio do filme, conseguiria causar esse deslocamento do que é ficção ainda mais, sabe?

Há uma química muito boa entre Carol Dal Farra e os atores com quem ela contracena no filme, principalmente os outros vendedores no trem. Como foi esse trabalho de seleção e oficinas?
Eles são atores da Maré, que foi onde a gente filmou a casa da Jess, ela andando pela rua. O plano de fundo da história é o Complexo da Maré, que é um complexo de favelas aqui do Rio de Janeiro. Os atores são de cursos de teatro que acontecem lá, onde fiz as seleções. Esses dois atores, o Christian Santos e o Vinicius Alves, eram de cursos diferentes da Maré. Fizemos alguns ensaios lá no museu da Maré com a Carol e o Christian. O processo foi não de fazer a cena que estava ali no roteiro, mas eu vinha com algumas situações ilustrativas. Por exemplo, eu dizia para eles: “Vocês estão esperando o trem chegar, e aí precisam correr porque está tendo batida de fiscal”. Aí eles tinha que simular, fazer uma simulação de toda essa situação. Foram algumas coisas que não estavam no roteiro, mas que era um processo que eu achava mais interessante. Para a fala não ficar muito marcada, eu queria que eles tentassem experimentar coisas que poderiam acontecer naquele ambiente de trabalho deles. Assim, eles teriam uma relação mais próxima. Por serem todos jovens, teve uma identificação forte entre eles. Essa química rolou muito por isso. Claro que os ensaios ajudaram bastante, mas acho que foi muito também da disponibilidade deles com o filme. Estavam todos querendo participar e construir. Eu acho que veio disso.

Claro que a Carol, por ser poetisa, por ter essas experiências em público no Slam, já possui uma desenvoltura. Mas houve alguma trava nas cenas gravadas dentro do trem?
Não tínhamos ensaiado dentro do trem. Fomos direto para gravar. Porque, não sei nem se posso dizer isso (risos), mas a gente não tinha autorização para gravar nos vagões. Então, a gente teve que fazer no dia. Fomos gravar no trem e fizemos. Mas acho que, justamente por ter toda essa presença de palco, ela já tinha uma naturalidade. Ela ganhou um Slam, então, foram várias etapas que ela participou se apresentando. E fazia shows, também. Ela também é rapper. Então, tem uma coisa de dominar os espaços, sabe? Eu não tive muita dificuldade de direção com ela ali. A minha questão no trem era mais com outras coisas que podiam surgir. Ter que lidar com outras pessoas que estavam lá, e não eram da equipe, e não eram do filme. Mas, com ela, correu tudo tranquilamente. Ela resolvia as coisas muito no primeiro ou no segundo take. Foi muito prazeroso para mim trabalhar com ela, porque eu sentia que não era ela ali. Eu via que ela soube se diferenciar da Jess. Mas, ao mesmo tempo, tinha muito dela ali. Porque toda a experiência dela foi importante para construir a personagem.

Os atores que interpretaram a família dela também são da Maré?
A ideia era que todos os atores fossem de lá. Mas, infelizmente, a gente não conseguiu, nos testes, ter nenhuma participação de pessoas mais velhas, com mais de vinte anos de idade. Acho que a pessoa mais velha que apareceu no teste tinha vinte anos. Então, tivemos que procurar por fora. Como eu ia já ia ter um trabalho de preparação de elenco com uma atriz não profissional, que era a protagonista do filme, eu queria me cercar de atores ou de pessoas que estudassem teatro. Mesmo que ainda não se considerassem profissionais, mas que, pelo menos, tivessem esse interesse para os outros papéis. Como eu não conseguia pessoas mais velhas na Maré que estivessem fazendo teatro, tive que optar por indicação de amigos e de pessoas que tinham participado de outros trabalhos comigo. Foi o caso do ator que interpretou o pai, o Altair Rodrigues. Eu já tinha feito um trabalho com ele em uma websérie. E a atriz que faz a mãe, a Fernanda Dias, tinha participado de um curta de um amigo, o “Pele Suja Minha Carne”, que é um curta LGBT, também. E eu tinha esses dois atores e a criança, a Anna Vieira, que é da Maré. Eu a encontrei em um curso de teatro da Maré. Assisti a uma peça de um grupo chamado ‘Entre Lugares’, de lá, que tem atores incríveis. Eu a vi e a achei perfeita para o papel. Ela estava na idade que a gente precisava, e era uma ótima atriz. Foi uma experiência ótima. Ela conheceu a família, que se reuniu duas vezes para um almoço. Fizemos coisas que não fossem muito ensaiadas, mas que já tivessem essa vivência de núcleo familiar, e foi ótimo. Deu tudo certo.

Nesse desenvolvimento daquele núcleo familiar, a gente observa muito do falso moralismo religioso em relação a questões de sexualidade e dogmas proibitivos. O personagem do pai, com aquela atitude de isolar a filha que é lésbica, enquanto prega uma ideia religiosa de moralidade, traz essa pertinente reflexão ao filme.
Sim. É uma coisa muito intrínseca a vivência LGBT à questão da família. A fase inicial da aceitação é um ponto muito marcante, e que vai dizer muito o que individuo, o que essa pessoa vai se tornar. Se ela estiver bem com a família, ela vai viver a sexualidade dela de uma forma. Se a família não lida muito bem com isso, vai ser outra experiência. Então, eu quis trazer esse lugar da família, também, para a gente pensar sobre isso. Sobre essa menina que saiu de casa porque o pai não conseguia lidar. Não está totalmente dito, mas você entende que a mãe está nesse lugar de proteção da filha, enquanto o pai não está. Você já entende que tem alguma cisão naquela relação. Eu acho que a igreja, enfim, é totalmente relacionada com essa hipocrisia do que é uma família. Algo que vem sendo fundamentado por esse catolicismo, ou melhor, por esse cristianismo (o catolicismo já perdeu a força no Brasil) que vem dizendo todos os moldes do que é uma família, como a sociedade tem que viver, fazendo com que as pessoas vivam a partir da culpa em tudo. Não só a questão da sexualidade, mas a culpa está em todas as nossas ações. Tudo o que a gente faz é pautado nesses moldes tradicionais e cristãos. A religião está, infelizmente, tão dentro da sociedade que a gente não consegue não perceber. E quando os indivíduos desviam das normas que são estabelecidas, que, enfim, são impostas sobre a gente, quando os indivíduos tentam sair um pouco disso, tem esse rompimento com essa ideia de família tradicional. Aí surgem coisas como o “kit gay”, que fortalece uma onda conservadora que avançou muito no Brasil nos últimos anos. Acredito que sejam coisas que surjam justamente em “resposta” a uma presença maior na mídia e na sociedade de pessoas que desviam dessa “norma” colocada

O Festival Internacional de Cinema LGBT traz uma curadoria que, dentro da temática, aborda aspectos bastante variados. A seleção de “MC Jess” dentro de uma gama vasta de temas foi uma escolha bem feliz.
Achei super interessante essa curadoria que traz os filmes brasileiros e de outros lugares e não os separam em sessões com filmes nacionais e outras com os internacionais. É interessante ter esse contraste entre os filmes. Outra coisa: enquanto realizadora LGBT, o que tenho percebido muito nas mostras é justamente a gente estar falando não só dos personagens LGBTs, mas, também, das outras intersecções que essas pessoas têm. Não dá mais só para a gente falar de uma personagem LGBT e não trazer para debate, também, questões de raça, de classe, de padrões, de heteronormatividade. Porque são outras experiências para as pessoas LGBTs negras, para as pessoas LGBTs em situação de vulnerabilidade social, existe uma grande pluralidade de experiências. Enfim, para também a gente debater vivências que fogem um pouco das experiências só dos autores. E, claro, é importante que cada vez mais as pessoas LGBTs produzam seus filmes. Acho muito importante que essa exibição do Festival Internacional LGBTI esteja sendo através de uma plataforma online, e os filmes sejam disponibilizados gratuitamente online. Isso dá mais acesso para outras pessoas assistirem, se inspirarem e, também, produzirem seus próprios filmes, seus próprios produtos audiovisuais. É interessante, ainda, ter essa oportunidade de assistir a filmes que não estavam chegando aqui. Porque alguns filmes LGBTs internacionais chegam nos festivais, mas o público do festival presencial é um público geralmente restrito. Geralmente são pessoas que trabalham com cultura, com cinema e tem o hábito de ir a festivais de cinema. E com o festival trazendo essa possibilidade de assistir aos filmes online, o alcance é maior e a gente consegue conhecer mais das experiências das pessoas LGBTs que moram em outros lugares.

– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.

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