Literatura: O futebol canhoto muito além das quatro linhas

Texto por Daniel Abreu

Quantas vezes já não escutamos que “esporte e política não devem se misturar?” Nos últimos tempos, principalmente, isso parece ser recorrente, e casos recentes são exemplos desse tipo de pensamento. Em 2018, o apresentador global Tiago Leifert escreveu um artigo para o site da revista QG afirmando que “quando política e esporte se misturam dá ruim”, por conta da manifestação política do jogador da NFL Colin Kaepernick, que se ajoelhou durante a execução do hino nacional norte americano como forma de protesto ao modo racista com que a polícia dos Estados Unidos historicamente trata os afrodescendentes por lá.

Já nesse ano, outro caso envolveu mais um global e amigo de Leifert. O ex-jogador de futebol e hoje comentarista Caio Ribeiro fez duras críticas ao (também ex-jogador) Raí, hoje dirigente do São Paulo Futebol Clube, por conta das suas opiniões ao modo como Jair Bolsonaro, o atual presidente da República, estava se comportado no combate ao novo coronavírus. “Eu não gostei do discurso do Raí porque ele falou muito pouco de esporte e falou muito sobre política (…) Eu acho que ele tem que falar de esporte,” disse Caio.

Os dois episódios mostram que o esporte, por um lado, está muito longe de ser apenas um meio de entretenimento e uma válvula de escape para que a população não reflita a respeito dos problemas sociais que afligem suas comunidades. No livro do espanhol Quique Peinado, “Futebol á Esquerda”, o jornalista narra histórias deliciosas de jogadores de esquerda que foram também importantes fora das quatro linhas.

Lançado em 2013, Quique fala de um tipo de futebol diferente. Um futebol cheio de paixão e carregado de críticas sociais e políticas. Histórias de craques que não se importavam apenas em proporcionar belos gols, mas que batalharam fora dos gramados contra o sistema vigente, por melhores condições para a profissão e suas comunidades.

Já de cara, na capa, temos a figura de um dos personagens do livro, o Doutor Sócrates. Uma parte do livro é dedicada aos brasileiros, como o atacante Reinaldo, do Atlético Mineiro, que comemorava seus gols com o braço levantado e o punho fechado, e Afonsinho, que se tornou o primeiro jogador de futebol a ter posse do próprio passe, muito antes da implementação da Lei Pelé (assista ao documentário “Passe Livre” no final do texto).

Quando o autor escreve sobre o Magrão e a Democracia Corintiana, não poupa palavras para explicar a importância do movimento no país e no futebol brasileiro durante o fim do regime militar. “Com os jogadores assumindo amplas parcelas do poder e os ideais democráticos como bandeira, a Democracia Corintiana (…) transformou o clube em um partido político itinerante. Seu funcionamento interno era tão simples quanto revolucionário: tudo era decidido em assembleias nas quais votavam desde a estrela da equipe até o último roupeiro, e todos os votos tinham exatamente o mesmo valor (…). O lema era ‘liberdade com responsabilidade’. E todos a exerciam, cada um à sua maneira.”

Porém, talvez a história mais carregada de sentimento seja a do atacante italiano Cristiano Lucarelli. Assumidamente comunista e apaixonado pelo Livorno, o cara foi um dos fundadores da torcida organizada Brigadas Autônomas Livornesas. Em 1997, após fazer um gol pela seleção sub-21 da Itália no Armando Picchi (estádio do Livorno), Lucarelli comemorou mostrando a camiseta que tinha por debaixo da azul italiana, uma branca com a foto de Che Guevara e os dizeres: “O Livorno é uma fé e os ultras seus profetas”. Mas sua maior prova de amor ainda estava por se concretizar.

Emprestado pelo Torino ao seu clube de coração na temporada 2003-04, o atacante conseguiu cumprir a missão de levar o time da série B para a elite do futebol italiano. “Lucarelli (…) marca o gol definitivo, tira a camisa, coloca-a no chão e faz amor com ela. Quando a equipe volta a Livorno, às quatro da manhã, 10 mil torcedores os aguardam no campo (…). Sua alegria não é como a dos demais: para ele é um grande triunfo esportivo, mas, no final das contas, ele já jogou na Série A. Simplesmente acabava de conseguir algo muito maior: levar o time de seus sonhos à Primeira Divisão, coisa que em sua história de torcedor sofredor jamais havia visto.”

O livro também fala sobre as recentes ditaduras militares na América do Sul. Em 1978, no auge do regime argentino, comandado pelo general Jorge Rafael Videla Redondo, o país foi sede da Copa do Mundo da FIFA. Dezesseis países participaram, porém, enquanto o mundial rolava, diversos opositores do regime desapareciam. Estima-se que 30 mil pessoas tenham sido mortas durante esse período. A seleção da casa, liderada pelo cabeludo atacante Mario Kempes, se sagrou campeã, batendo a Holanda por 3×1. Apesar do título, desde então os jogadores sempre foram questionados se realmente sabiam o que estava acontecendo no país.

Em uma das passagens do livro, Quique narra o encontro de um ex-jogador daquela seleção, Ricardo Ricky Villa, e Tati Almeida, mãe de um jovem desaparecido. Segundo Villa, “hoje renego aqueles tempos, gostaria que pudéssemos ter tido essa conversa naquele momento e que tivéssemos tido personalidade para denunciar o que acontecia”. Ele segue dizendo que “com o tempo, percebi que aquela foi uma fase da minha vida que vivi enganado. Eu era apenas um jogador de futebol que queria ser campeão do mundo”. Durante a conversa entre os dois, um dos questionamentos de Tati para Ricky talvez seja o mais interessante e sintetize com muita precisão que esporte e política devem se misturar: “os seus filhos não perguntavam o que você fazia naquela época?”

Além disso, temos histórias sobre Paolo Sollier, o jogador que não dava autógrafos, Iker Sarriegi, que ficou conhecido como o “jogador do ETA”, sobre o time sueco IFK Gotemburgo, que praticou durante os anos oitenta “um autêntico futebol de esquerda”, entre diversas outras.

Em mais de 300 páginas, “Futebol à Esquerda” não trata apenas de indivíduos assumidamente de esquerda, mas de esportistas que quebraram o paradigma de que jogador de futebol tem que apenas jogar bola e nada mais. Assim como Lucarelli, que preferia comprar a camisa do Livorno a uma Ferrari ou iate, eles mostraram que o jogador de futebol não precisa ser uma figura vazia, sem opiniões próprias e posicionamento político, eles podem e devem entender de forma crítica o entorno que o cercam e o tipo de mundo capitalista no qual estão inseridos. Em tempos tão confusos que atravessamos, seria ótimo que aqueles que possuem mais espaço nos holofotes se posicionassem em prol dos menos favorecidos.

– Daniel Abreu é jornalista responsável pelo Geleia Mecânica e colaborador do Whiplash.

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