entrevista por Bruno Lisboa
Para aficionados pelo rock brasileiro, safra anos 90, o nome de Fernanda Takai é facilmente associado à banda Pato Fu que, de lá para cá, segue na ativa e relevante. Isto em muito se deve ao fato de que a banda mineira não se rende a fórmulas pré-concebidas e, ao se arriscar, acaba por entregar projetos audaciosos como os dois volumes da série “Música de Brinquedo”, que acabaram por conquistar toda uma nova geração de fãs. Mas muito se engana quem acha que a trajetória da cantautora se resume ao grupo. Desde 2007, Fernanda Takai tem se dedicado a uma carreira solo paralela ao Pato Fu.
Desde a sua estreia solo, com “Onde Brilhem os Olhos Seus” (2007), em que Takai revisitava o repertório de Nara Leão, a artista tem buscado seguir caminhos que diferem da proposta musical do Pato Fu. Seja como intérprete ou realizando parcerias inéditas, Fernanda Takai sempre busca explorar novas texturas e timbres sonoros, fugindo do que lhe é tido como comum. Seu mais novo disco, “Será Que Você Vai Acreditar?” (2020), foi produzido (em casa) por (novamente) John Ulhoa (seu marido, pai da filha Nina e parceiro de Pato Fu e de carreira solo) e resulta num trabalho agridoce, reflexivo para nossos tempos, apostando tanto na melancolia quanto na esperança.
Seguindo o modus operandi aplicado com sucesso em “Na Medida do Impossível” (2014), seu segundo disco solo de estúdio, “Será Que Você Vai Acreditar?” reúne regravações (de vão de uma canção do gaúcho Nico Nicolaiewsky, do Tangos & Tragédias, a Amy Winehouse, entre outras) e canções inéditas (como o single “Terra Plana”, que traz a frase que batiza o álbum, numa letra bastante sentimental de John Ulhoa), além de contar com participações especiais como a de Maki Nomiya (do Pizzicato Five, com quem Fernanda já havia colaborado no EP “Maki-Takai No Jetlag”, de 2009) na faixa “Love Song” e Virginie Boutaud (Metrô) em “Amor em Tempos de Cólera”.
Na entrevista abaixo, Fernanda Takai fala sobre o processo de criação e gravação do novo disco, a escolha do repertório, o exercício da maternidade, a presença feminina cada vez maior no cenário musical, a importância de se posicionar em tempos de obscurantismo, o trabalho do artista plástico Renato Larini (que traduziu visualmente a capa dos singles e do novo disco), a indústria fonográfica de ontem e de hoje, e muito mais.
Primeiramente, como vocês tem enfrentado este período de confinamento?
Até agora temos respeitado à risca a regra de ficar em casa. Estamos nós três: eu, John e Nina. Ter trabalhado no disco por três meses foi uma maneira de nos sentirmos produtivos, mantendo uma rotina de gravações e mixagens junto à manutenção da casa – cozinha, limpeza, lavanderia, cuidado com nossos quatro bichinhos de estimação e jardim. É difícil ficar sem encontrar nosso público e as pessoas mais queridas, mas temos que aguardar o momento adequado pra isso. Confiar mesmo na ciência.
Em “Será Que Você Vai Acreditar?”, você promove uma ode reflexiva estes nossos tempos caóticos. Como foi o processo de composição e gravação do álbum?
Apenas duas canções nasceram depois de começada a pandemia: “Corações Vazios” e “O Que Ninguém Diz”. Todas as outras já estavam escolhidas e compostas há mais tempo. Mas por uma incrível coincidência, o mood do álbum se sintonizou com o que estamos vivendo. Talvez porque nosso país esteja sem rumo há mais tempo, sofrendo com mentiras e dando espaço pra gente incompetente. Quando nos vimos limitados em casa, fizemos o melhor pra criar um disco que fosse esteticamente interessante e rico em termos de referências. Começamos a gravar logo depois do Carnaval, alternando com os shows do Pato Fu e minhas atividades solo, mas logo toda a agenda caiu.
O repertório deste trabalho oscila com canções suas e do John, parcerias e releituras. Nesse sentido, o que é mais desafiador (e, por que não dizer, prazeroso) neste processo de compor em várias frentes?
Acho que é uma estrutura de se fazer um disco que gostei de usar com o “Na Medida do Impossível”, quando compus com novos parceiros, chamei músicos incríveis da minha geração e trouxe canções que costumava ouvir há mais tempo. Gosto de trazer pra perto de mim pessoas que admiro e contar aos outros um pouco de minha história como ouvinte.
Acredito que a escolha pela releitura de “Não Esqueça”, de Nico Nicolaiewsky, traz em si um pouco da sua relação com a sua filha (a Nina), nascida em 2003. O quão transformador é para você o exercício da maternidade? E ainda: quais são as dificuldades deste exercício no mundo atual?
Quando a gente é responsável por cuidar e formar uma pessoa, há sempre uma mistura de amor, zelo, ansiedade… mas o que a gente acaba aprendendo é que não dá pra colocar a vida numa redoma. Viver é perigoso e o amor nem sempre consegue se expressar direito. Acho que ensinar e aprender sempre é a chave. Falar, mas também saber ouvir. Difícil é estar num mundo tão conectado e saber ainda o quanto muitas pessoas estão completamente desprotegidas. Os degraus estão cada vez maiores.
Na ala das participações, você renovou votos com Maki Nomiya (Pizzicato Five) e promoveu a inédita parceria com Virginie Boutaud (Metrô). Como se deu a aproximação com ambas? Quais as contribuições elas trouxeram para o resultado final?
Eu já tinha me encontrado com a Maki há alguns anos, cantamos juntas aqui no Brasil e no Japão, até lançamos um EP juntas em 2009, lançado por um selo de lá. Eu e John somos muito fãs dela e mantemos contato sempre desde então. Virginie é uma pessoa muito doce, uma voz que ouvi e cantei nos meus tempos de banda de escola e as redes sociais nos aproximaram. Houve uma total sintonia na composição e na vontade de cantarmos juntas. Fica agora a promessa de um encontro ao vivo, pois foi tudo virtual até agora. Ter essas duas vozes no álbum são um presente pra mim e para quem vai escutar as canções.
Sua trajetória vem desde os anos 90, época em que a presença feminina no cenário era restrita. Hoje o que vemos é uma maior participação das mulheres em toda a cadeia produtiva da música. Como você vê esta mudança?
É muito bom perceber que há mais mulheres competentes em todos os lugares. Na minha turnê “Na Medida do Impossível” éramos meio a meio ali na equipe e no palco, é gostoso ter esse equilíbrio. Vamos aprendendo a fazer escolhas também com esse foco, não depende só de outras pessoas.
Voltando a falar do novo disco, o single “Terra Plana” é um bela crítica ao obscurantismo, de tempos onde cientificismo tem dado lugar a teorias vazias / falsas. Qual a importância de se posicionar em tempos como os nossos?
Não podemos ficar parados, dando espaço à ignorância. Mas também não podemos ser como “eles”, usando de violência e falta de educação pra impor um ponto de vista. Fazer uma canção como “Terra Plana”, que já causa uma reação pelo título, mas que traz questões tão comuns a todos ali no meio, é um convite à reflexão, com suavidade. É tentar um diálogo pela arte somada à ciência e aos sentimentos humanos mais genuínos.
Nas capas dos singles e do álbum você tem usado o trabalho do artista plástico Renato Larini. De que maneira os trabalhos dialogam entre si?
Gosto demais das linguagens que o Renato desenvolve através da sua arte. Há algum tempo penso em chamá-lo pra traduzir visualmente um trabalho meu e percebi que o conjunto das músicas ali no disco poderiam ganhar muito com a intervenção dele. Renato mescla de uma forma bem original essa tensão entre o humor e o desespero que nos habita em tempos assim. Fiquei muito feliz quando ele aceitou traduzir visualmente o disco. Começamos com os singles, mas na versão física que virá assim que as fábricas retomarem a produção de CD e vinil, tem muita coisa legal ainda. Quem faz o projeto gráfico é a Hardy Design, cuidando da inserção das letras, títulos e informações técnicas junto às obras do Renato.
Várias canções deste disco falam sobre solidão, descrença e o temor do futuro, temas que nos circundam com certa veemência atualmente. Afinal: como sairemos desta pandemia? Sãos (risos)?
Mesmo com todos esses sentimentos melancólicos, acho que as canções trazem uma beleza, uma forma de descompressão apesar do momento. É possível a gente passar por isso com um comportamento mais solidário e mais cuidadoso em relação ao mundo. Eu sou uma pessoa otimista, espero continuar assim.
Para quem viveu o apogeu da indústria fonográfica, como você vê o universo da música hoje?
De alguma forma há uma sensação de que a música ficou mais democrática, mais acessível, só que é um desafio pra quem vive de música conseguir pagar suas contas, ter uma equipe bacana, percorrer presencialmente o nosso país. Ainda existe um abismo entre os artistas que tem visibilidade e bons acordos comerciais e aqueles que estão tentando respirar em meio à incerteza.
E, por fim, uma pergunta que faço tradicionalmente diz respeito ao futuro da música. A pandemia fez com que tivemos que abdicar dos shows que, geralmente, são a principal fonte de renda da classe artística. Sei que vocês têm feito algumas “lives”, mas acredito que esta não seja a solução definitiva, pois não abrange toda a cadeia produtiva das apresentações entre tantos outros poréns. Qual seria a melhor alternativa para esse período?
Realmente as lives aglomerativas não estão em nossa mira. Fizemos algo bem simples aqui em casa: vozes e violões, transmissão por celular sem microfones e a receita dela foi dividida entre os outros músicos e nossa equipe, mesmo estando só eu e John. Talvez a gente tenha que criar campanhas colaborativas cada vez mais, enquanto não há horizonte para a retomada presencial. E é necessário que cada artista saiba dividir esses valores de uma maneira mais equilibrada possível, socializar os ganhos de verdade.
– Bruno Lisboa é redator/colunista do O Poder do Resumão. Escreve no Scream & Yell desde 2014.