Faixa a faixa: Luana Carvalho celebra sambas da mãe Beth Carvalho em EP

introdução por Renan Guerra
faixa a faixa por Luana Carvalho

A cantora e compositora Luana Carvalho estreou na música em 2017 com dois álbuns complementares: “Branco” e “Sul”. Os dois trabalhos eram focados na composição de Luana e na sua busca por uma identidade própria. Em “Baile de Máscara”, EP lançado em junho de 2020, Luana se aventura no caminho de intérprete e se volta para sua família, isto é, sua mãe, a sambista Beth Carvalho, falecida em abril de 2019.

“Baile de Máscara” pinça canções de carnaval do vasto repertório de Beth Carvalho e remonta elas em nosso tempo, através de uma produção moderna e cool de Kassin com colaboração de VovôBebê. O EP é de canções sobre carnaval, mas com uma melancolia que parece combinar com o nosso pós-carnaval de quarentena. “O que seria pra muitos a quaresma após a quarta-feira de cinzas, é, entretanto, uma quarentena de cinzas”, explica Luana. “A transição da mais intensa reunião de corpos nas ruas ao isolamento total dentro das casas. Outras máscaras, outros toques, outro ritmo, outras solidões”.

Para além de todas as complexidades, esse é um disco de amor e homenagem, de celebração familiar e artística: o canto de Beth revisto e ressignificado em outros espaços por sua filha. Luana Carvalho não busca o tom da mãe, nem repete construções sonoras: o seu baile é muito pessoal, é uma celebração íntima e sincera que intensificam as conexões de Beth Carvalho com o agora. Para explicar a escolha e a importância de cada canção e como elas foram produzidas, Luana escreveu esse faixa a faixa especial para o Scream & Yell. Confira:

“Baile de Máscaras”, por Luana Carvalho

01) “Meu Escudo” (Décio Carvalho/Noca da Portela)
Primeira música escolhida pro disco antes mesmo de ser um disco. Essa música fala muito de mim, de como conduzo meu corpo na avenida, minha maneira de estar na vida diante da quarentena, do governo atual. Nesse momento em que o ódio e o desprezo parecem reger a maioria dos corações no poder, minha vontade era mesmo emprestar o meu a quem parece não ter um; todo o amor que tenho pra dar. E quanto mais massacre mais amor ofereço, porque é assim que acredito ser possível curar a dor do avesso humano. Quando o Kassin me falou de usarmos uma harpa nessa faixa, tive a certeza de que todo mundo estava se entendendo muito bem, a ideia perfeita pra trazer o lirismo que eu queria nessa canção. E eu sabia que a Cristina [Braga], que conheci gravando outro disco de samba, teria a exata medida de suingue, ginga e erudição. O contraste da harpa com o violão rasgado (que me lembra o som do Nelson Cavaquinho) do VovôBebê é a exata reprodução da pulsação das minhas artérias.

02) “Carnaval” (Carlos Elias/Nelson Lins de Barros)
É a música mais poética do disco. Também o arranjo. Uma alusão aos romances nos bailes, nas quadras, na avenida, nos blocos. A beleza desses instantes de apaixonamento que só um carnaval proporciona, com as fantasias, a ilusão. Gosto da urgência que uma festa pode trazer. Daquilo que, porque pode acabar a qualquer momento, é especialmente fortuito e intenso. Pedi que o Kassin reproduzisse o tipo de naipe de sopros que era muito comum nos anos 60, nos bailes de salão, especialmente, mas que também tem uma onda jazzística. Têm uma elegância especial, inclusive no som, uma especialidade dele, que chamou o Jorge Continentino e sua timbragem cirúrgica. Queria mesmo essa viagem no tempo; uma certa nostalgia, essa ideia de alegria e melancolia, que é também uma das sensações que tenho tido constantemente na quarentena, e que tenho sempre nos carnavais. Gosto do momento em que brinco com uns sons bucais no especial musical, com um reverb que me lembra os dos banheiros, as pausas que fazemos, a solidão de um espelho de pia em pleno baile.

03) “Falso Reinado” (Adilson Bispo/J. Roberto)
É das minhas faixas preferidas. Eu amo essa música. Não há muito engajamento aqui, é mais a saudade do carnaval em si. Essa letra, esse lugar da pessoa quando consegue dizer pra outra ‘vai lá, curte tudo, também vou curtir, mas quando tudo acabar estou te esperando pra voltarmos juntos pra casa’, acho muito bonito. Ao mesmo tempo tem uma farpa, uma necessidade carismática de dizer ‘se quer encontrar um novo amor problema é seu’, essa manha, esse dengo ácido, inerente a vários casais. Eu queria fazer dessa música um samba-canção, começamos assim na gravação de base, eu e VovôBebê, mas tudo que aconteceu foi maior; a levada do Dedê, as melodias belíssimas e comentários irônicos de sopro do Marlon, o baixo suingadado do Kassin foram soberanos e levaram pra outro lugar. Virou bolero. Afinal o violão do Vovobebê voltou numa outra onda e é o meu violão xodó do álbum, além do solo do Kassin no fim, que ele chamou carinhosamente de Hamilton (de Holanda) cagado, era o humor que faltava, tudo ornou, eu realmente adoro essa faixa! Destaque para os teclados do Rodrigo Tavares.

04) “Visual” (Neném/Pintado)
Essa música não fazia parte do álbum. Até que no último minuto, disco já na mixagem, o Kassin, que sabia o quanto gosto dela, lançou a pilha de gravarmos. Eu não acreditei, porque vinha conversando muito com o VovôBebê sobre as ‘chamadas’ e ‘comentários’ que são uma marca registrada da minha mãe. Essa coisa dela sempre chamar o couro, ou comentar os versos – nessa música ela extrapola e faz talvez a maior de todas as manifestações dessa ordem no ‘o que que acontece com ele?’. Foi um presente do Kassin se dispor naquela altura a começarmos mais uma do zero, e justamente essa. Aí numa madrugada, horário em que costumo efervescer de ideias, eu disse: e se a gente sampleasse só as chamadas da minha mãe e colocasse nessa faixa? Só que o Kassin foi muito além e fez isso num grau de excelência que tinha que virar um dueto. Não daria pra não aproveitar melhor todo aquele trabalho tão bem feito tampouco desperdiçar a ideia de ter eu e minha mãe juntas em épocas diferentes na mesma época. Quando minha filha, Mia, nos ouviu cantando, ficou falando “saudade, vovó”, “te amo, vovó”, e eu gravei. Ficou, sem dúvida, a faixa mais afetiva do disco, muita emoção, de onde eu vim pra onde vou. Por isso, inclusive, convidar o Luís Filipe de Lima que, além de amigo querido de minha mãe, compôs um lindo caminho no 7 cordas pra essa faixa, trazendo também uma sonoridade mais tradicional, evocando as gravações da Beth. A ideia de continuidade, do amor de três gerações, é o contraste mais bonito pro discurso sobre a elitização do carnaval a que a letra se refere, tão atual por sinal. Este também foi motivo fundamental pra escolha dessa canção: a conveniência, a pertinência da letra, que é ainda muito bem escrita. Os versos tangenciam minha reflexão sobre quarentena e carnaval. Circunstâncias em que a desigualdade fica evidenciada, e tem como consequência o recorrente o paradoxo da veneração e do desprezo pelos negros e menos favorecidos.

05) “Dia Seguinte” (J. Petrolino/Carlinhos Vergueiro)
É uma das canções mais bonitas do repertório da minha mãe. Nessa letra a imagem dos camarotes e da avenida, a diferença dos privilégios, tá tudo ali. E agora, em plena pandemia, nós, nas nossas casas, nossos camarotes, enquanto quem trabalha nas ruas inevitavelmente, entregadores, desfilam pra nos manter possíveis em casa, felizes em casa, seguros assistindo a vida útil. Depois esses mesmos trabalhadores, e os integrantes das alas da comunidade (que se matam de trabalhar o ano todo por sua família e sua Escola), voltam pras suas casas, barracos, marquises, sem que saibamos seus paradeiros. O “Rei que perdeu a coroa consentida/Volta a ser camelô, biscateiro ou gari e de berro na mão por aí reinar/Poderá ser mais um pingente que cai que no ano que vem ninguém vai notar”. Nesse arranjo, começamos um processo de robotização que se refere também à questão da seleção social (não natural) por que estamos passando. Morrem os mais pobres, findam cada vez mais os empregos, máquinas tomam seus lugares. Minha voz aí já começa a entrar mais dentro das programações eletrônicas, e fica também mais próxima do som da voz sampleada da minha mãe, dos mortos. É também um caminho narrativo do álbum, o fim dos corpos, o fim da vida, o lugar pra onde todos vamos, onde possivelmente reencontrarei minha mãe. Destaque carinhoso pros teclados do Rodrigo Tavares que fazem do instrumental dessa faixa um dos mais belos que já ouvi, como os de João Donato.

06) “Minha Festa” (Nelson Cavaquinho/Guilherme de Brito)
Aqui partimos pro Vocoder na introdução (parte que supostamente o povo canta), radicalizamos: a festa da despedida, quando a máquina tenta tudo dominar. Mas não consegue. Escolhida por ser a única canção otimista de Nelson Cavaquinho (e Guilherme de Britto), e talvez a única em tom maior, ela vem como o paradoxo maior: a morte, a festa, o fim. Aglomeração-isolamento. Tem muita ironia nessa escolha, além da óbvia reverência a este samba perfeito. O arranjo com as palmas destorcidas (um som de pastiche), muitas transgressões, pontuam o sarcasmo que eu queria. É também uma enorme celebração por esse disco ter acontecido, pela união, mesmo remota, desses profissionais, essa honra pra mim. A introdução proposta pelo VovôBebê, que me lembra os forrobodós da Chiquinha Gonzaga, deu a melhor onda e o Kassin aproveitou isso muito bem. Pedi que esticasse o fim da música como fazem as baterias de Escola de Samba em gravação de samba-enredo, e o Kassin chamou o Pretinho da Serrinha pro cavaco, além da percussão, que tem muita intimidade com o universo do samba tradicional, o que fideliza a composição e comunica essa mistura que me interessava. Porque afinal tudo fica mais divertido com os lasers. Tudo fica mais divertido com a cabeça ilimitada do Kassin, com a liberdade nerd do VovôBebê, e esses músicos todos que me traduziram com profunda sensibilidade.

– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Também colabora com o Monkeybuzz. A foto que abre o texto é de Ana Alexandrino / Divulgação.

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